EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO E. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

 

Protocolado nº 42.745/09

Assunto: Inconstitucionalidade da Lei nº 4.793, de 26 de agosto de 2009, que “alterou o “caput”  do art. 3º, da Lei n. 4.643, de 21 de maio de 2008, que dispõe sobre a criação da Coordenadoria de Políticas Públicas para a mulher e para a igualdade racial da Prefeitura do Município de São Caetano do Sul e dá outras providências”, do Município de São Caetano do Sul.

 

Ementa: Lei nº 4.793, de 26 de agosto de 2009, que “alterou o “caput” do art. 3º,  da Lei n. 4.643, de 21 de maio de 2008, que dispõe sobre a criação da Coordenadoria de Políticas Públicas para a mulher e igualdade racial da Prefeitura do Município de São Caetano do Sul e dá outras providências”,  que instituem cargos de provimento em comissão (Coordenador de Políticas Públicas para a Mulher e Igualdade Racial; Assessor da Coordenadoria de Políticas Públicas para a Mulher e Igualdade racial e Assistente da Coordenadoria de Políticas Públicas para Mulher e Igualdade Racial), aos quais não correspondem funções de direção, chefia e assessoramento, mas funções próprias dos cargos de provimento efetivo, que denota subordinação a cargo de segundo ou terceiro escalão. Violação do art. 115, inc. II e V, da Constituição do Estado de São Paulo. Pedido para que se declare a inconstitucionalidade da Lei n. 4.793, de 26 de agosto de 2009, que “alterou o “caput’ do art. 3º, da  Lei n. 4.643, de 21 de maio de 2008, que dispõe sobre a criação da Coordenadoria de Políticas Públicas para a mulher e para a igualdade racial da Prefeitura do Município de São Caetano do Sul e dá outras providências, do Município de São Caetano do Sul.

 

O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, inciso VI da Lei Complementar Estadual nº 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo), em conformidade com o disposto no art. 125, § 2º e art. 129, inciso IV da Constituição Federal, e ainda art. 74, inciso VI e art. 90, inciso III da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado, vem, respeitosamente, perante esse Egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE da Lei nº 4.793, de 26 de agosto de 2009, que “alterou o “caput” do art. 3º, da Lei n. 4.643, de 21 de maio de 2008, que dispõe sobre a criação da Coordenadoria de Políticas Pública para a Mulher e Igualdade Racial da Prefeitura do Município de São Caetano do Sul e dá outras providências”, do Município de São Caetano do Sul, bem assim de todos os anteriores atos normativos que contenham as mesmas previsões, para se evitar o efeito repristinatório, pelos fundamentos a seguir expostos.

I – DO ATO NORMATIVO IMPUGNADO

1. A Lei nº 4.793, de 26 de agosto de 2009, que “altera a redação do caput do artigo 3º da Lei n. 4.643, de 21 de maio de 2008, que dispõe sobre a criação da coordenadoria de políticas públicas para a mulher e para a igualdade racial da Prefeitura do Município de São Caetano do Sul e dá outras providências”, do Município de São Caetano do Sul (fls. 117 e ss.), criou os seguintes cargos de provimento em comissão:

        I- Coordenador de Políticas Públicas para a Mulher e Igualdade Racial;

        II- Assessor da Coordenadoria de Políticas Públicas para a Mulher e Igualdade Racial;

        III- Assistente da Coordenadoria de Políticas Públicas para a Mulher e Igualdade Racial;

 

Ocorre que aos cargos em questão, instituídos pela lei impugnada, não correspondem funções de direção, chefia e assessoramento. São lotações que não se situam na administração superior, nem demandam a estrita confiança, cujas missões devem ser realizas por servidores de carreira, até mesmo para não haver solução de continuidade por sucessão de administradores.

A previsão normativa desses cargos de provimento em comissão não condiz com o artigo 37, incisos II e V, da Constituição Federal ou com o artigo 115, incisos II e V, da Constituição Estadual.

É o que será demonstrado a seguir.

II – DO DIREITO

A Constituição em vigor consagrou o Município como entidade federativa indispensável ao nosso sistema federativo, integrando-o na organização político-administrativa e garantindo-lhe plena autonomia, como se observa da análise dos arts. 1.º, 18, 29, 30 e 34, VI, “c” da CF (cf. Alexandre de Moraes, “Direito Constitucional”, São Paulo: Atlas, 7.ª ed., p. 261).

A autonomia concedida aos Municípios não tem caráter absoluto e soberano. Pelo contrário, encontra limites nos princípios emanados dos poderes públicos e dos pactos fundamentais, que instituíram a soberania de um povo (cf. De Plácido e Silva, “Vocabulário Jurídico”, Rio de Janeiro: Forense, v. I, 1984, p. 251), sendo definida por José Afonso da Silva como “a capacidade ou poder de gerir os próprios negócios, dentro de um círculo prefixado por entidade superior”, que no caso é a Constituição (Curso de Direito Constitucional Positivo, 8ª. ed., São Paulo: Malheiros, 1992, p. 545).

A autonomia municipal se assenta em quatro capacidades básicas: (a) auto-organização, mediante a elaboração de lei orgânica própria, (b) autogoverno, pela eletividade do Prefeito e dos Vereadores as respectivas Câmaras Municipais, (c) autolegislação, mediante competência de elaboração de leis municipais sobre áreas que são reservadas à sua competência exclusiva e suplementar, (d) auto-administração ou administração própria, para manter e prestar os serviços de interesse local (cf. José Afonso da Silva, ob. cit., p. 546).

Nessas quatro capacidades, encontram-se caracterizadas a autonomia política (capacidades de auto-organização e autogoverno), a autonomia normativa (capacidade de fazer leis próprias sobre matéria de sua competência), a autonomia administrativa (administração própria e organização dos serviços locais) e a autonomia financeira (capacidade de decretação de seus tributos e aplicação de suas rendas, que é uma característica da auto-administração) (ob. e loc. cits).

Assim, por força da autonomia administrativa de que foram dotadas, as entidades municipais são livres para organizar os seus próprios serviços, segundo suas conveniências locais. E, na organização desses serviços públicos, a Administração cria cargos e funções, institui classes e carreiras, faz provimentos e lotações, estabelece vencimentos e vantagens e delimita os deveres e direitos de seus servidores (cf. Hely Lopes Meirelles, Direito Municipal Brasileiro, 8ª. ed., São Paulo: Malheiros, 1996, p. 420).

Contudo, a liberdade conferida aos Municípios para organizar os seus próprios serviços não é ampla e ilimitada; ela se subordina às seguintes regras fundamentais e impostergáveis: (a) a que exige que essa organização se faça por lei; (b) a que prevê a competência exclusiva da entidade ou Poder interessado; e (c) a que impõe a observância das normas constitucionais federais pertinentes ao servidor público (ob. e loc. cits.)

No caso em exame, o Legislador Municipal criou cargos de provimento em comissão para o exercício de funções estritamente técnicas ou profissionais, próprias dos cargos de provimento efetivo. São funções que denotam a natureza profissional do vínculo entre seus agentes e a Administração Pública e que, por essa razão, só poderiam ser preenchidas por concurso público.

Segundo Ruy Cirne Lima (Princípios de Direito Administrativo, RT, 6.ª ed., p. 162), o funcionário público profissional se peculiariza por quatro característicos básicos, a saber: (a) natureza técnica ou prática do serviço prestado; (b) retribuição de cunho profissional; (c) vinculação jurídica à Administração Direta; (d) caráter permanente dessa vinculação.

Desse modo, nitidamente diferenciado dos cargos que reclamam provimento em comissão, as funções profissionais devem ser exercidas em caráter permanente, ou seja, pelo quadro estável de servidores públicos municipais, os quais, em conformidade com o disposto no art. 115, inciso II, da Constituição do Estado de São Paulo, só podem ser arregimentados por concurso público de provas ou de provas e títulos.

Na verdade, o cargo em comissão destina-se apenas às atribuições de “direção, chefia e assessoramento” (CF., art. 37, inciso V, com a redação dada pela EC n.º 19/98) e tem por finalidade propiciar ao governante o controle das diretrizes políticas traçadas. Exige, portanto, das pessoas indicadas a titularizá-los, absoluta fidelidade à orientação fixada pela autoridade nomeante. Em outras palavras, o cargo de provimento em comissão está diretamente ligado ao dever de lealdade à linha fixada pelo agente político superior.

Daí porque a exceção contida na parte final do inciso II, do artigo 115, da Constituição do Estado de São Paulo - “ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração” -, que, no ponto, reproduz a dicção do artigo 37, inciso II, da Constituição da República, tem alcance limitado a situações excepcionais, relativas aos cargos cuja natureza especial justifique a dispensa de concurso público.

Torna-se evidente, portanto, que a limitação apontada não tem caráter puramente formal, de simples e incriteriosa indicação legal de cargos de provimento em comissão, que pudesse afastar o princípio constitucional da igual acessibilidade aos cargos públicos.

Bem a propósito, ao estudar com profundidade esse assunto, Márcio Cammarosano deixou anotado que o princípio democrático implica no princípio da igualdade “e este no princípio da igual acessibilidade dos cargos públicos, com o que se resguarda também o princípio da probidade administrativa” (Provimento de Cargos Públicos no Direito Brasileiro, São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 45).

Assim, para que a lei criadora de um cargo em comissão não venha a se constituir em burla ao princípio constitucional arrolado, enunciado expressamente pelo artigo 37, incisos I e II, da Constituição da República, deverá observar criteriosamente a natureza das funções a serem desempenhadas, pois, no dizer de Celso Antonio Bandeira de Mello (O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, Editora Revista dos Tribunais, 1.ª edição, pág. 49), “impende que exista uma adequação racional entre o tratamento diferençado construído e a razão diferencial que lhe serviu de supedâneo”.

Afinado a esse mesmo entendimento, Hely Lopes Meirelles (Direito Administrativo Brasileiro, 18ª. ed, São Paulo: Malheiros, p. 378) adverte sobre pronunciamento do Supremo Tribunal Federal no sentido de que “a criação de cargo em comissão em moldes artificiais e não condizentes com as praxes de nosso ordenamento jurídico e administrativo, só pode ser encarada como inaceitável esvaziamento da exigência constitucional de concurso”.

E, da mesma forma, já decidiu o Pretório Excelso que “a exigência constitucional do concurso público não pode ser contornada pela criação arbitrária de cargos em comissão para o exercício de funções que não pressuponham o vínculo de confiança que explica o regime de livre nomeação e exoneração que os caracteriza.” (STF, RTJ 156/793)

Na esteira desse raciocínio, é inescusável que a parte final do inciso II do art. 115 da Constituição do Estado de São Paulo, tem alcance circunscrito a situações em que o requisito da confiança seja predicado indispensável ao exercício do cargo. De fato, como se trata de uma exceção à regra do concurso público, a criação de cargos em comissão pressupõe o atendimento do interesse público e só se justifica para o exercício de funções de “direção, chefia e assessoramento”, em que seja necessário o estabelecimento de vínculo de confiança entre a autoridade nomeante e o servidor nomeado. Fora desses parâmetros, é inconstitucional qualquer tentativa de criação de cargos dessa natureza.

É incontestável que os cargos relacionados, cuja validade jurídico-constitucional ora se examina, não se apresentam como cargos ou funções da administração superior, ou mesmo de “direção, chefia e assessoramento”, que exijam relação de confiança ou especial fidelidade às diretrizes traçadas pela autoridade nomeante, mas sim de cargos comuns, de natureza profissional, que devem ser assumidos em caráter permanente por servidores aprovados em concurso.

Prova disso é que, dentre as atribuições do Coordenador de Políticas Públicas para a Mulher e Igualdade Racional, encontram-se atividades burocráticas, como os relacionadas ao desenvolvimento de bancos de dados municipal, relativo à situação das mulheres, da população negra e demais grupos que sejam público alvo da atuação da Coordenadoria e mantê-lo atualizado. No rol também se identifica a subordinação desse “Coordenador” com autoridades superiores, cargo de segundo ou terceiro escalão, o que, por si só afasta a idéia de que a função em estudo é de natureza estratégica.

O mesmo pode ser dito do Coordenador de Assessor da Coordenadoria de Políticas Públicas para a Mulher e Igualdade Racial e do Assistente da Coordenadoria de Políticas Públicas para a Mulher e Igualdade Racial. Estes, aliás, encontram-se em nível até mais baixo da hierarquia administrativa, pois prestam contas respectivamente ao Coordenador de Políticas Públicas e ao Assessor da Coordenadoria de Políticas Públicas para a Mulher e Igualdade Racial, sendo que dentre outros (compete-lhes “desenvolver outras atividades correlatas por determinação do Coordenador).     

Para finalizar, lembra-se que o Órgão Especial desse Egrégio Tribunal de Justiça entende ser possível declarar a inconstitucionalidade material de expressões de lei criadora de cargos em comissão (ADIN n. 11.939-0, relator Des. OLIVEIRA COSTA), cuja natureza não correspondia às características próprias dessas funções, daí porque, também aqui se impõe declarar a insubsistência dos cargos previstos nas Lei impugnada, por serem incompatíveis com os arts. 111, 115, incisos i, II e V e 144, da Constituição do Estado de São Paulo.    

III – CONCLUSÃO

Por todo o exposto, evidencia-se a necessidade de reconhecimento da inconstitucionalidade da norma aqui apontada.

Assim, aguarda-se o recebimento e processamento da presente Ação Declaratória, para que ao final seja julgada procedente, reconhecendo-se a inconstitucionalidade da Lei nº 4.793, de 26 de agosto de 2009, que “alterou o “caput” do art. 3º, da Lei n. 4.643, de 21 de maio de 2008, que dispõe sobre a criação da Coordenadoria de Políticas Pública para a Mulher e Igualdade Racial da Prefeitura do Município de São Caetano do Sul e dá outras providências”, do Município de São Caetano do Sul, bem assim de todos os anteriores atos normativos que contenham as mesmas previsões, para se evitar o efeito repristinatório.

Requer-se, ainda, sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Prefeito Municipal, bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para se manifestar sobre os atos normativos impugnados.

Posteriormente, aguarda-se vista para fins de manifestação final.

 

São Paulo, 20 de outubro de 2009.

 

                         Fernando Grella Vieira

                         Procurador-Geral de Justiça

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Protocolado nº 42.745/09

Interessado: Promotor de Justiça de São Caetano do Sul

Assunto: Inconstitucionalidade das Leis nº 4.653, de 4 de junho de 2008, e 4.794, de 26 de agosto de 2009, do Município de São Caetano do Sul.

 

 

 

 

 

1.    Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade, em face das Leis nº 4.653, de 4 de junho de 2008, e 4.794, de 26 de agosto de 2009, do Município de São Caetano do Sul, junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

2.    Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.

 

 

                    São Paulo, 20 de outubro de 2009.

 

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

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