Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

 

 

 

 

 

 

 

                            O Procurador-Geral de Justiça de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, inciso VI, da Lei Complementar Estadual n.º 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo), e em conformidade com o disposto nos arts. 125, § 2.º, e 129, inciso IV, da Lei Maior, e arts. 74, inciso VI, e 90, inciso III, da Constituição Estadual, com base nos elementos de convicção existentes no incluso protocolado (PGJ n. 44.694/08), vem perante esse Egrégio Tribunal de Justiça promover a presente

 

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE

 

com pedido de liminar, da Lei Complementar Municipal n. 80, de 15 de dezembro de 2006, do município de Porto Feliz, que institui no Município a Taxa de Serviços de Bombeiros, pelos motivos e fundamentos a seguir expostos:

 

 

 

A Lei Complementar n. 80, de 15 de dezembro de 2006, do Município de Porto Feliz, em seu art. 1º, institui a Taxa de Serviços de Bombeiros nos seguintes termos:

 

“Art. 1º. Fica instituída a Taxa de Serviço de Bombeiros para custear os serviços prestados efetiva ou potencialmente pelo Corpo de Bombeiros de Porto Feliz, através de convênio com a Secretaria de Estado dos Negócios da Segurança Pública, com a finalidade de dar cobertura exclusiva às despesas de manutenção e ampliação dos serviços e instalações, bem como aquisição de veículos, equipamentos e despesas com treinamento da unidade local”.

 

 

O art. 2º da Lei Complementar n. 80, por sua vez, dispõe:

 

“Art. 2º. O sujeito passivo da Taxa de Serviço de Bombeiros é o proprietário do imóvel, o titular do seu domínio útil ou o seu possuidor a qualquer título, inclusive o promitente comprador imitido na posse, os posseiros, os ocupantes ou os comodatários de imóveis na circunscrição do Município”.

 

                            A lei municipal impugnada afronta diversos dispositivos da Constituição do Estado de São Paulo. Podem ser destacados os seguintes:

 

Art. 1º - O Estado de São Paulo, integrante da República Federativa do Brasil, exerce as competências que não lhe são vedadas pela Constituição Federal.

 

Art. 139 - A Segurança Pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e incolumidade das pessoas e do patrimônio.

§ 1º - O Estado manterá a Segurança Pública por meio de sua polícia, subordinada ao Governador do Estado.

§ 2º - A polícia do Estado será integrada pela Polícia Civil, Polícia Militar e Corpo de Bombeiros.

§ 3º - A Polícia Militar, integrada pelo Corpo de Bombeiros, é força auxiliar, reserva do Exército.      

 

Art. 142 - Ao Corpo de Bombeiros, além das atribuições definidas em lei, incumbe a execução de atividades de defesa civil, tendo seu quadro próprio e funcionamento definidos na legislação prevista no § 2.º do artigo anterior.

 

Art. 144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.

 

 

Art. 160 - Compete ao Estado instituir:                                      (....)

II - taxas em razão do exercício do poder de polícia, ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos de sua atribuição, específicos ou divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição;”.

 

                            Na ordem constitucional vigente, os Municípios integram a federação e têm assegurada sua autonomia, atendidos os princípios estabelecidos na Carta Magna e na Constituição do respectivo Estado (CF, art. 29). Essa autonomia se revela pela competência outorgada a essas entidades estatais para legislarem sobre assuntos de interesse local; suplementarem a legislação federal e a estadual no que couber; instituírem e arrecadarem os tributos que lhes são próprios (CF, art. 30, inciso III), ao lado de outras.

 

                            Entretanto, a competência tributária dos Municípios - e que é consubstanciada na capacidade de instituir e arrecadar tributos - encontra limites nas normas da Constituição da República atinentes ao Sistema Tributário Nacional (CF., art. 145 e seguintes), que envolvem princípios incontornáveis, dentre os quais as regras matrizes dos tributos.

 

                            De fato, mesmo reconhecendo-se que a Constituição da República não criou tributos, é certo que, além de discriminar as competências tributárias de cada pessoa política (União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios), ela traçou a “norma padrão de incidência” de cada um dos tributos que podem ser instituídos por essas entidades estatais.

 

                            Ou seja, a Constituição Federal, no seu art. 145, ao conferir às pessoas políticas competência para a instituição de impostos, taxas e contribuições de melhoria, classifica juridicamente os tributos, traçando o modelo de cada um deles e vinculando ao legislador ordinário.

 

                            Examinando o tema, Roque Antonio Carrazza deixou anotado que “a Constituição, ao discriminar as competências tributárias, estabeleceu - ainda que, por vezes, de modo implícito e com uma certa margem de liberdade para o legislador - a norma padrão de incidência (o arquétipo genérico, a regra matriz) de cada exação. Noutros termos, ela apontou a hipótese de incidência possível, o sujeito ativo possível, o sujeito passivo possível, a base de cálculo possível e a alíquota possível, das várias espécies e subespécies de tributos. Em síntese, o legislador, ao exercitar a competência tributária, deverá ser fiel à norma padrão de incidência do tributo, pré-traçada na Constituição. O legislador (federal, estadual, municipal ou distrital) enquanto cria o tributo, não pode fugir deste arquétipo constitucional[1]”.

 

                            No seu art. 145, a Constituição Federal estabelece que:

 

Art. 145 - A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir os seguintes tributos:

(....)

II - taxas, em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição

 

 

                            Essa norma constitucional (que foi reproduzida no art. 160, inciso II, da Constituição do Estado de São Paulo) autoriza a cobrança de taxas e é de observância obrigatória pelos Municípios, por força do estabelecido no art. 144 desta mesma Carta, que impõe limites à autonomia municipal nos princípios estabelecidos na Constituição Republicana e nela própria.

 

                            A taxa é um tributo comum, podendo ser instituída e arrecadada por qualquer das entidades federativas, para a remuneração de seus serviços ou custeio de suas obras[2]. Para cobrá-la, porém, “a pessoa política (União, Estado, Distrito Federal e Município) precisa possuir competência político-administrativa para prestar o serviço público ou praticar o ato do poder de polícia, que são os suportes fáticos das taxas (atuações do Estado relacionadas ao contribuinte)[3]”.  

 

                            Nessa mesma linha de raciocínio, Geraldo Ataliba observa que “a pessoa pública competente para desempenhar a atuação, e só ela, é competente para legislar sobre sua atividade e colocar essa atuação no núcleo da hipótese de incidência de taxa sua[4]”.

 

                            Assim, por força da autonomia financeira de que foram dotados, “os Municípios estão autorizados a criar as taxas que forem necessárias ao policiamento administrativo originário de sua competência ou à manutenção dos serviços específicos e divisíveis prestados aos munícipes ou postos à sua disposição[5]”.

 

                            E, de outro lado, a regra matriz constitucional das taxas fixa como hipótese de incidência uma atuação estatal (poder de polícia ou serviço específico e divisível) direta e imediatamente referida ao obrigado[6].

 

                            Para José Afonso da Silva, “o fato gerador da taxa é uma situação dependente de atividade estatal: o exercício do poder de polícia ou a oferta de serviço público ao contribuinte[7]”.

 

                            Daí que a atuação estatal, hipótese de incidência das taxas, pode consistir tanto num serviço público como num ato de polícia, donde se é possível inferir que o nosso sistema constitucional prevê a cobrança tanto de taxas de serviço como de taxas de polícia.

 

                            As taxas de serviço, por expressa definição constitucional, são aquelas cobradas pelo Poder Público, “pela utilização, efetiva ou potencial de serviços públicos de sua atribuição, específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição”.

 

                            Serviço público, na ilustrada dicção de Celso Antonio Bandeira de Mello, “é toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material fruível diretamente pelos administrados, prestado pelo Estado ou por quem lhe faça as vezes, sob um regime de direito público[8]”.

 

                            É bem de ver que nem todo serviço público pode ser remunerado com a cobrança de taxa de serviço, mas apenas e tão-somente o serviço público específico e divisível, como definido constitucionalmente, em contraste com o serviço público geral e indivisível, este passível de manutenção apenas pela receita resultante da arrecadação de impostos em geral.

 

                            Para Roque Antonio Carrazza “os serviços públicos gerais, ditos também universais, são os prestados uti universi, isto é, indistintamente a todos os cidadãos. Eles alcançam a comunidade, como um todo considerada, beneficiando número indeterminado (ou, pelo menos, indeterminável) de pessoas. É o caso dos serviços de iluminação pública, de segurança pública, de diplomacia, de defesa externa do País, etc. Todos eles não podem ser custeados, no Brasil, por meio de taxas, mas, sim, das receitas gerais do Estado, representadas basicamente pelos impostos. Já os serviços públicos específicos, também chamados de singulares, são os prestados uti singuli. Referem-se a uma pessoa ou a um número determinado (ou, pelo menos, determinável) de pessoas. São de utilização individual e mensurável. Gozam, portanto, de divisibilidade, é de dizer, da possibilidade de avaliar-se a utilização efetiva ou potencial, individualmente considerada. É o caso dos serviços de telefone, de transporte coletivo, de fornecimento domiciliar de água potável, de gás, de energia elétrica, etc. Estes, sim, podem ser custeados por meio de taxas de serviço[9]”.

 

                            Assim sendo, para instituir a cobrança de taxa de serviço público, há necessidade do preenchimento das seguintes condições: (a) a entidade tributante deve ser competente para a prestação do serviço público, (b) que esse serviço seja efetivamente prestado ou posto à disposição do contribuinte e, finalmente, (c) que o serviço seja específico e divisível. 

 

                            No presente caso, a Câmara Municipal de Porto Feliz editou a lei impugnada para custear os serviços prestados efetiva ou potencialmente pelo Corpo de Bombeiros de Porto Feliz, através de convênio com a Secretaria de Estado dos Negócios da Segurança Pública, com a finalidade de dar cobertura exclusiva às despesas de manutenção e ampliação dos serviços e instalações, bem como aquisição de veículos, equipamentos e despesas com treinamento da unidade local”, e cobrada proporcionalmente ao potencial calorífico das ocupações de imóveis.

 

                            Data venia”, essa taxa é manifestamente inconstitucional, pois o Município de Porto Feliz não pode remunerar-se por serviço ao qual não concorre para a sua prestação e que é da competência do Estado de São Paulo, nos termos do art. 139, “caput”, da Carta Paulista, que dispõe ser a Segurança Pública dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, a ser mantida, dentre outros órgãos, pelo Corpo de Bombeiros, que integra a estrutura da Polícia Militar (CE., art. 139, §§ 1.º, 2.º e 3.º), a quem incumbe, além das atribuições definidas em lei, a execução de atividades de defesa civil (CE., art. 142).

 

                            Pouco importa que essa cobrança decorra de um convênio celebrado entre o Estado de São Paulo e o Município de Porto Feliz, no qual este último se comprometeu a custear parte das despesas com a manutenção do Corpo de Bombeiros. Como visto linhas atrás, somente a pessoa política que presta o serviço público é que possui competência para tributá-lo.

 

                            E, de mais a mais, em se tratando a Segurança Pública de serviço público “geral” ou “universal”, que é prestado indistintamente à coletividade, sem que sejam identificáveis os seus beneficiários, ele é insuscetível de ser remunerado por taxa, pois, como já teve a oportunidade de assentar o SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, “sendo a Segurança Pública dever do Estado e direito de todos, exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através entre outras da polícia militar, só pode ser sustentada por impostos e não por taxa” (ADInMC 1.942-DF, rel. Min. Moreira Alves, j. em 5 de maio de 1999, Informativo n.º 148 do STF, de 7 de maio de 1999).

 

                            Em suma, a Lei Complementar n. 80, de 15 de dezembro de 2006, é verticalmente incompatível com a Constituição do Estado de São Paulo, em especial com os seus arts. 1.º, 139, §§ 1.º a 3.º, 142, 144, e 160, inciso II.

 

                            Remanesce, no caso, a necessidade da concessão de MEDIDA LIMINAR. A plausibilidade do direito invocado (“fumus boni iuris”) decorre dos fundamentos jurídicos acima relacionados, ou seja, essa taxa refere-se a serviços gerais ou universais e da competência do Estado de São Paulo.

 

                            Registre-se que, em condições semelhantes, esse Órgão Especial desse Egrégio Tribunal de Justiça decidiu, por maioria de votos, que:

 

 

 “É o Estado quem continua a prestar os serviços, ficando a cargo do Município tão-somente o apoio material, num quadro que jamais autoriza a instituição da taxa de sinistro pelo Município, que unicamente pode postular ser remunerado pelo Estado. De toda forma, somente este último – na qualidade de prestador dos serviços – tem capacidade para figurar no pólo ativo da relação tributária.” (ADIn n.º 082.021.0/6-00, Rel. Des. NIGRO CONCEIÇÃO, j. em 20 de novembro de 2002).

 

 

                            Mais recentemente, ao julgar a Ação Declaratória de Constitucionalidade de Lei n. 137.157-0/0-00[10], em acórdão da lavra do Desembargador Relator ROBERTO VALLIM BELLOCCHI, esse Órgão Especial voltou a decidir:

 

 

“Ação Direta de Inconstitucionalidade de Lei municipal denominada "taxa de Serviços de bombeiros" - Matéria afeta à competência do Estado, por força dos artigos 139 e 142, da Carta Estadual - Inconstitucionalidade decretada”.

 

 

                            Além disso, tal exigência continuará sendo indevidamente cobrada dos contribuintes, ensejando o enriquecimento sem causa da Administração e gerando dificuldades de toda ordem na restituição dos valores pagos indevidamente.

 

                            E, é bom acrescentar, a manutenção dessa norma no ordenamento vigente irá tumultuar ainda mais os trabalhos do Poder Judiciário, submetendo os credores do Poder Público a longo e penoso processo judicial, com desdobramentos inesperados e indesejáveis, ante a resistência oposta por grande parte dos Municípios paulistas ao cumprimento dos precatórios judiciais.

 

                            Todas essas conseqüências indesejáveis evidenciam o “periculum in mora” e poderão ser evitadas com a concessão da liminar que ora se pleiteia, suspendendo-se de imediato a cobrança dessa malfadada taxa.

 

                            Posto isso, requeiro seja concedida liminarmente a suspensão dos efeitos da legislação impugnada, e aguardo seja autorizado o processamento da presente ação, colhendo-se as informações pertinentes do Prefeito e da Câmara Municipal de Porto Feliz, sobre as quais me manifestarei oportunamente, vindo, no final, a ser declarada a inconstitucionalidade material da Lei Complementar Municipal n. 80, de 15 de dezembro de 2006, do município de Porto Feliz, devendo, após, ser oficiado aos membros daquela Comuna solicitando a adoção das providências necessárias à suspensão definitiva dos efeitos de suas execuções.

 

 

São Paulo, 8 de agosto de 2008.

 

 

 

 

FERNANDO GRELLA VIEIRA

Procurador-Geral de Justiça

 



[1] Curso de direito constitucional tributário, 4.ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 257.

[2] José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo, Revista dos Tribunais, São Paulo, 6.ª ed., p. 604; Hely Lopes Meirelles, Direito Municipal Brasileiro, Malheiros, São Paulo, 1996, 8.ª ed., p. 197.

[3] Cf. Sacha Calmon Navarro Coêlho, Curso de Direito Tributário Brasileiro, Forense, Rio de Janeiro, 3.ª ed., p. 148.

[4] Hipótese de Incidência Tributária, Malheiros, São Paulo, 5.ª ed., p. 137.

[5] Hely Lopes Meirelles, ob. cit., p. 198.

[6]  Geraldo Ataliba, em “Hipótese de Incidência Tributária”, 2.ª ed., pág. 164.

[7]  “Curso de Direito Constitucional Positivo”, 11.ª edição, pág. 645.

[8] "Curso de Direito Administrativo", Malheiros, São Paulo, 7.ª ed., p. 399.

[9] “Curso de Direito Constitucional Tributário”, RT, 4.ª ed., p. 271/272.

[10] Data do julgamento: 05/09/2007. Data de registro: 17/04/2008.