Excelentíssimo
Senhor Desembargador Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São
Paulo
Protocolado
nº 46.540/08
Objeto:
Lei Municipal nº 4488, de 14 de novembro de 2007, de Mogi Mirim
Ementa: 1)Lei Municipal que concede a particular autorização para construção de
prédio residencial ou comercial em determinado imóvel, bem como autoriza a
Municipalidade a receber imóveis em doação. 2)Atos de concessão de autorização para construir, e recebimento de
imóvel em doação, sem encargo, que configuram atos de gestão administrativa.
Hipótese em que, a autorização legislativa é dispensável, bem como ilegítima.
Configuração de verdadeira delegação inversa de poder, do Chefe do Executivo
ao Poder Legislativo, que efetivamente o exerceu, ao editar o ato normativo
(violação do art.5º §1º, e art.47 II e XIV, c.c. o art.144 da Constituição do
Estado). 3)Licença para construção. Descaracterização do zoneamento originário,
sob pena de desnecessidade da autorização legislativa. Falta de planejamento,
bem como participação popular na lei editada em matéria urbanística (violação
do art.180 II e 181 §1º, c.c. o art.144 da Constituição do Estado). 4)Inconstitucionalidade reconhecida. |
O
Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício de suas atribuições
(art.116 VI da Lei Complementar Estadual nº 734/93 - Lei Orgânica do Ministério
Público de São Paulo -; art.125 §2º e 129 IV da Constituição Federal; art.74 VI
e art.90 III da Constituição do Estado de São Paulo), com amparo nas
informações colhidas no incluso protocolado (PGJ nº 46.540/08) vem perante esse
Egrégio Tribunal de Justiça promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE da Lei Municipal nº 4488, de 14 de novembro de 2007, de Mogi Mirim, pelos
fundamentos expostos a seguir.
1)Ato normativo impugnado.
A Lei Municipal nº 4488, de 14 de novembro de 2007, de
Mogi Mirim, fruto de projeto de lei de autoria do Senhor Prefeito Municipal
daquela cidade, conforme respectiva rubrica, “Autoriza o Poder Executivo a aprovar projeto de edificações de prédio
residencial e comercial, em propriedade de (...) e outros, a receber área em
doação e determina outras providências”, tem a seguinte redação:
“Art.1ª. Fica
o Poder Executivo Municipal autorizado a aprovar projeto de edificações de
prédio residencial e comercial, com direito de construção, em terreno com área
de
Art.2º. Fica o Poder Executivo Municipal autorizado a receber em doação sem ônus, para implantação de articulação do sistema viário e Núcleo Integrado de Atividade Social (NIAS) da Zona Leste, conforme prescrito no Plano Diretor de Desenvolvimento de Mogi Mirim (Lei Complementar nº 210/07), as seguintes áreas:
(...)
Art.3º. Fica a Prefeitura Municipal de Mogi Mirim autorizada a implantação de infra-estrutura nas áreas de articulação do sistema viário até 31 de dezembro de 2009.
Art.4º. O proprietário das áreas a serem doadas para o Município, de acordo com a matrícula nº 49.338, área de 66.361,78 m2 e matrícula nº 61.309, área de 30.078,505 m2, totalizando uma área e terreno de 96.440,285 metros quadrados, ficará responsável pela desocupação e entrega do imóvel.
Art.5º. Fica autorizada a cessão do direito de construção de que cuida o art.1º desta lei em caso de não viabilidade de construção para outro empreendimento nas mesmas condições.
Art.6º. As áreas remanescentes 1, 2, e 3 da matrícula 61.303, poderão ser utilizadas pelos proprietários de acordo com a legislação vigente.
Art.7º. As despesas referentes ao registro das matrículas nºs 49.338 e 61.309, decorrentes da escritura, correrão a cargo da Prefeitura Municipal de Mogi Mirim.
Art.8º. As despesas decorrentes da presente lei correrão por conta de dotação orçamentária própria, suplementada se necessário.”
A
descrição dos imóveis doados para a Municipalidade está no corpo da lei, e não
será reproduzida nesta petição inicial por apego à brevidade.
O ato normativo, como será demonstrado
a seguir, é verticalmente incompatível com nossa ordem constitucional.
2)Violação da regra da separação de
poderes.
A Lei Municipal nº 4488, de 14 de novembro de 2007, de
Mogi Mirim fere o princípio da separação de poderes previsto no art.5º e §1º,
47 II e XIV, c.c. o art.144 da Constituição do Estado, que têm a seguinte
redação:
“Art.5º. São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
§1º. É vedado a qualquer dos Poderes delegar atribuições.
(...)
Art.47. Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:
(...)
II – exercer, com auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;
(...)
XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;
(...)
Art.144. Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organização por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”
A
Lei Municipal nº 4488, de 14 de novembro de
2007, de Mogi Mirim, essencialmente, tem duas finalidades: (a) autorizar a
Municipalidade a receber imóveis em doação; e (b) autorizar a
Municipalidade a aprovar projeto de edificações de prédio residencial e
comercial em área determinada, pertencente a particular, indicada na lei.
Recebimento de bens em doação, ou mesmo
aprovação de projeto de edificação em imóvel particular, são atos de
característica essencialmente administrativa, e devem ser praticados, deste
modo, pela Administração Pública, sendo dispensável autorização legislativa.
Em outras palavras, não é necessário
que a lei autorize o Município, através do Chefe do Executivo, a fazer aquilo
que, pela própria natureza das coisas, já se insere na sua esfera de
atribuições.
Note-se que a única hipótese em que há
exigência de autorização legislativa para recebimento de imóveis por força de
doação, pelo Poder Público, é o caso da doação com encargos, nos termos do art.19
IV da Constituição do Estado (aplicável aos Municípios por força do art.144 da
referida Carta), não considerada como tal a “simples destinação específica do
bem”.
Aliás, não é por outra razão que o
respeitável magistério de Hely Lopes Meirelles pontua que, de modo geral,
apenas a aquisição onerosa de imóvel depende de autorização legislativa
e de avaliação prévia (Direito
Administrativo Brasileiro, 34ªed., São Paulo, Malheiros, 2008, p.553), no
que é secundado por outros respeitáveis doutrinadores. Confira-se: Edmir Netto
de Araújo, Curso de Direito
Administrativo, São Paulo, Saraiva, 2005, p.1109/1110; Maria Sylvia Zanella
Di Pietro, Direito Administrativo, 19ªed.,
São Paulo, Atlas, 2006, p.673.
E não nos levará a conclusão diversa a
afirmação de que o projeto de lei que deu ensejo ao ato normativo impugnado é
de autoria do próprio Poder Executivo. Isso apenas reforça a demonstração de
que houve violação da regra da separação de poderes, por delegação de
atribuições (do Prefeito à Câmara Municipal, que as recebeu e exerceu, ao
editar a lei), o que também é vedado pelo art.5º §1º da Constituição Paulista.
É
ponto pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo
cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de
planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder
Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a
função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e
abstração.
O legislador municipal, na hipótese
analisada, praticou verdadeiro ato materialmente administrativo, na
prática, (a) ao conceder autorização para construção de edifício residencial ou
comercial em determinado local, e (b) ao autorizar o recebimento de bem em
doação, algo que o Município poderia fazer, sem a necessidade de lei
autorizadora.
Aliás,
seria perfeitamente possível enquadrar os atos praticados pelo legislador, na
hipótese em exame, no contexto de determinadas espécies de atos
administrativos.
A autorização para construir em
determinado imóvel, concedida ao particular beneficiário da lei impugnada, nada
mais é que verdadeira “licença”, que, segundo Hely Lopes Meirelles, “é o ato administrativo vinculado e
definitivo pelo qual o Poder Público, verificando que o interessado atendeu a
todas as exigências legais, faculta-lhe o desempenho de atividades ou a
realização de fatos materiais antes vedados ao particular, como, p. ex., o
exercício de uma profissão, a construção de um edifício em terreno próprio”
(Direito Administrativo Brasileiro,
cit., p.190; cf. ainda, no mesmo sentido, Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, 25ªed.,
São Paulo, Malheiros, 2008, p.430).
De outro lado, a concordância contida
na lei com o recebimento de imóveis em doação, configura espécie de ato
administrativo qualificável como “autorização”, que, ordinariamente, “é ato administrativo discricionário e
precário pelo qual o Poder Público torna possível ao pretendente a realização
de certa atividade, serviço ou utilização de determinados bens particulares ou
públicos, de seu exclusivo ou predominante interesse, que a lei condiciona à
aquiescência prévia da Administração” (Direito
Administrativo Brasileiro, cit., p.191; cf. ainda, no mesmo sentido, Celso
Antônio Bandeira de Mello, Curso de
Direito Administrativo, cit., p.430). E a autorização é absolutamente
dispensável quando a doação é feita sem encargos para o Poder Público (contrario sensu do disposto no art.19 IV
da Constituição do Estado).
Referido diploma, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa,
que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento,
a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à
prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.
Cumpre recordar aqui o ensinamento de
Hely Lopes Meirelles, anotando que “a
Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos
órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a
Administração; a Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico
e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo
edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de
funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio
constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da
Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”.
Sintetiza, ademais, que “todo ato do
Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da
Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo,
por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local
(CF, art.2º c/c o art.31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15ªed.,
atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo,
Malheiros, 2006, p.708 e 712).
Deste modo, quando a pretexto de
legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na
prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência
que deve existir entre os poderes estatais.
Esse E. Tribunal de Justiça tem
declarado a inconstitucionalidade de leis municipais de iniciativa parlamentar
que interferem na gestão administrativa, com amparo na violação da regra da
separação de poderes. Confira-se os seguintes julgados: ADI 149.044-0/8-00, rel. des. Armando Toledo,
j.20.02.2008, v.u.; ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j. 05.03.2008; ADI
142.496-0/9-00, rel. Junqueira Sangirardi, j. 07.05.08, v.u.; ADI °
154.411-0/5-00, rel. Walter Swensson, j.02.04.08, v.u..
Não
bastasse isso, a doutrina e a jurisprudência já assentaram, de forma
consistente, que as denominadas “leis autorizativas” – como a Lei Municipal nº
4488/07 de Mogi Mirim - são inconstitucionais, essencialmente em razão da
quebra da regra da separação de poderes.
Em
trabalho publicado na Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos da
Instituição Toledo de Ensino (Bauru, n. 29, ago/nov. 2000, pp. 259-267),
disponível também na internet (Endereço eletrônico: www.srbarros.com.br), sustenta o Professor
Sérgio Resende de Barros:
“Em 17 de março de 1982 – ainda sob a Constituição (Emenda Constitucional nº 1/69) anterior à atual – o plenário do Supremo Tribunal Federal julgou representação (nº 993-9) por inconstitucionalidade de uma lei estadual (Lei nº 174, de 8/12/77, do Estado do Rio de Janeiro) que autorizava o Chefe do Poder Executivo a praticar ato que já era de sua competência constitucional privativa. Nesse julgamento, decidiu, textualmente: O só fato de ser autorizativa a lei não modifica o juízo de sua invalidade por falta de legítima iniciativa. Não obstante a clareza do acórdão (Diário da Justiça de 8/10/82, p. 10187, Ementário nº 1.270-1, RTJ 104/46), persistiu por toda a Federação brasileira, nos níveis estadual e municipal, a prática de "leis" autorizativas (....).
Insistente na prática legislativa brasileira, a "lei" autorizativa constitui um expediente, usado por parlamentares, para granjear o crédito político pela realização de obras ou serviços em campos materiais nos quais não têm iniciativa das leis, em geral matérias administrativas. Mediante esse tipo de "leis" passam eles, de autores do projeto de lei, a co-autores da obra ou serviço autorizado. Os constituintes consideraram tais obras e serviços como estranhos aos legisladores e, por isso, os subtraíram da iniciativa parlamentar das leis. Para compensar essa perda, realmente exagerada, surgiu "lei" autorizativa, praticada cada vez mais exageradamente. Autorizativa é a "lei" que – por não poder determinar – limita-se a autorizar o Poder Executivo a executar atos que já lhe estão autorizados pela Constituição, pois estão dentro da competência constitucional desse Poder. O texto da "lei" começa por uma expressão que se tornou padrão: "Fica o Poder Executivo autorizado a...". O objeto da autorização – por já ser de competência constitucional do Executivo – não poderia ser "determinado", mas é apenas "autorizado" pelo Legislativo. Tais "leis", óbvio, são sempre de iniciativa parlamentar, pois jamais teria cabimento o Executivo se autorizar a si próprio, muito menos onde já o autoriza a própria Constituição. Elas constituem um vício patente.
(...)
Pelo que, se uma lei fixa o que é próprio da Constituição fixar, pretendendo determinar ou autorizar um Poder constituído no âmbito de sua competência constitucional, essa lei é inconstitucional. Não é só inócua ou rebarbativa. É inconstitucional, porque estatui o que só o Constituinte pode estatuir, ferindo a Constituição por ele estatuída. O fato de ser mera autorização não elide o efeito de dispor, ainda que de forma não determinativa, sobre matéria de iniciativa alheia aos parlamentares. Vale dizer, a natureza teleológica da lei – o fim: seja determinar, seja autorizar – não inibe o vício de iniciativa. A inocuidade da lei não lhe retira a inconstitucionalidade. A iniciativa da lei, mesmo sendo só para autorizar, invade competência constitucional privativa.
(...)
Em suma, as "leis" autorizativas são inconstitucionais:
a. por vício formal de iniciativa, invadindo campos em que compete privativamente ao Chefe do Executivo iniciar o processo legislativo;
b. por usurparem a competência material do Poder Executivo, disposta na Constituição, nada importando se a finalidade é apenas autorizar;
c. por ferirem o princípio constitucional da separação de poderes, tradicional e atual na ordenação constitucional brasileira.”
Esse
entendimento já foi adotado pelo Egrégio Tribunal de Justiça do Rio Grande do
Sul:
“A lei que autoriza o Executivo a agir em matérias de sua iniciativa privada implica, em verdade, uma determinação, sendo, portanto inconstitucional”. (ADIN n. 593099377 – rel. Des. Maria Berenice Dias – j. 7.8.00).
Mutatis
mutandis, já proclamou esse Egrégio
Plenário que:
“Ao Executivo haverá de caber sempre o exercício de atos que impliquem no gerir as atividades municipais. Terá, também, evidentemente, a iniciativa das leis que lhe propiciem a boa execução dos trabalhos que lhe são atribuídos. Quando a Câmara Municipal, o órgão meramente legislativo, pretende intervir na forma pela qual se dará esse gerenciamento, está a usurpar funções que são de incumbência do Prefeito” (Adin n. 53.583-0, rel. Des. FONSECA TAVARES).
3)Violação
do princípio do planejamento e participação na legislação urbanística.
Não bastasse isso, o ato normativo impugnado
desrespeitou a necessidade de planejamento e participação, princípios que devem
ser observados na edição de leis relacionadas ao uso do solo, nos termos dos
seguintes dispositivos da Constituição Paulista:
“Art.180. No estabelecimento de diretrizes e normas relativas ao desenvolvimento urbano, o Estado e os Municípios assegurarão:
(...)
II – a participação das respectivas entidades comunitárias no estudo, encaminhamento e solução dos problemas, plano, programas e projetos que lhes sejam concernentes;
(...)
Art.181. Lei municipal estabelecerá em conformidade com as diretrizes do plano diretor, normas sobre zoneamento, loteamento, parcelamento uso e ocupação do solo, índices urbanísticos, proteção ambiental e demais limitações administrativas pertinentes.
§1º. Os planos diretores, obrigatórios a todos os Municípios, deverão considerar a totalidade de seu território municipal.”
Desses
dispositivos é que se pode extrair que planejamento e participação
são indispensáveis à legitimidade constitucional da legislação relacionada o
uso do solo.
E todo e qualquer regramento
individualizado (autorização para construção em determinado imóvel,
alteração do uso do solo para determinada via, etc.) é, intuitivamente,
contrário à idéia de planejamento e participação, que devem levar em
consideração a cidade em sua dimensão integral.
Cumpre
recordar que a exigência do plano diretor, como “instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana”,
está assentada no §1º do art.182 da Constituição Federal, cuja aplicabilidade à
hipótese decorre da regra contida no art.144 da Constituição do Estado de São
Paulo.
Anote-se, ademais, que o art.182 caput da CF disciplina que “a política de desenvolvimento urbano,
executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas
em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções
sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”.
Recorde-se também que o inciso VIII do
art.30 da Constituição Federal prevê a competência dos Municípios para “promover, no que couber, adequado
ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do
parcelamento, e da ocupação do solo urbano”.
É possível extrair dos dispositivos
acima apontados que: (a) a adequada política de ocupação e uso do solo é valor
que conta com assento constitucional (federal e estadual); (b) a política de
ocupação e uso adequado do solo se faz mediante planejamento e
estabelecimento de diretrizes através de lei; (c) as diretrizes para o
planejamento, ocupação e uso do solo devem constar do respectivo plano diretor,
cuja elaboração depende de avaliação concreta das peculiaridades de cada
Município; (d) a legislação específica sobre uso e ocupação do solo deve
pautar-se por adequado planejamento e participação popular.
A sistemática constitucional - relativa
à necessidade de planejamento, diretrizes, e ordenação global da ocupação e uso
do solo - evidencia que o casuísmo, nessa matéria, não é em hipótese alguma
admissível.
O ato normativo que altera
sensivelmente as condições, limites e possibilidades do uso do solo urbano em
zona residencial – ainda que em imóvel especificado - sem realização de
qualquer planejamento ou estudo específico, viola diretamente a sistemática
constitucional na matéria.
Entendimento diverso tornará sem valor
algum todo o trabalho previamente realizado para fins de elaboração e aprovação
da Lei do Plano Diretor e de Uso e Ocupação do Solo Urbano. Qualquer iniciativa
legislativa poderá – como se verificou no caso em exame – levar à alteração normativa
casuísta.
Tratando da elaboração do plano diretor
do ordenamento urbano, anota Hely Lopes Meirelles que ”Toda cidade há que ser planejada: a cidade nova, para sua formação; a
cidade implantada, para sua expansão; a cidade velha, para sua renovação”.
(Direito Municipal Brasileiro, cit.,
p.393).
Tratando especificamente do problema da
ocupação e uso do solo, anota José Afonso da Silva que a respectiva ordenação é
um dos aspectos fundamentais do planejamento urbanístico, salientando ainda que
“recomenda-se, nessas alterações, muito
critério, a fim de que não se façam modificações bruscas entre o zoneamento
existente e o que vai resultar da revisão. É preciso ter em mente que o
zoneamento constitui condicionamento geral à propriedade, não indenizável, de
tal maneira que uma simples liberação inconseqüente ou um agravamento menos
pensado podem valorizar demasiadamente alguns imóveis, ao mesmo tempo que
desvalorizam outros, sem propósito. É conveniente que o zoneamento resultante
da revisão ou da alteração constitua uma progressão harmônica do zoneamento
revisado ou alterado, para não causar impactos, que, por sua vez, geram
resistências que dificultam sua implantação e execução. É prudente avançar devagar,
mas com firmeza, energia e justiça” (Direito
Urbanístico, 4ªed., São Paulo, Malheiros, 2006, p.251).
Cumpre finalmente destacar a
importância do planejamento urbanístico e da necessária razoabilidade de que se
deve revestir a legislação elaborada nesta matéria, recordando Toshio Mukai,
que “a ocupação e o desenvolvimento dos
espaços habitáveis, sejam eles no campo ou na cidade, não podem ocorrer de
forma meramente acidental, sob as forças dos interesses privados e da
coletividade. Ao contrário, são necessários profundos estudos acerca da
natureza da ocupação, sua finalidade, avaliação da geografia local, da
capacidade de comportar essa utilização sem danos para o meio ambiente, de
forma a permitir boas condições de vida para as pessoas, permitindo o
desenvolvimento econômico-social, harmonizando os interesses particulares e os
da coletividade” (Temas atuais de
direito urbanístico e ambiental, Belo Horizonte, Editora Fórum, 2004,
p.29).
Deste modo, padece de
inconstitucionalidade o ato normativo que, sem qualquer estudo prévio
consistente, sem participação popular, e de forma casuística, altera o uso do
solo urbano, ferindo frontalmente o disposto nos art.180 caput e inciso II, art.181 caput
e §1º, ambos da Constituição Estadual; bem como, por força do art.144 da
Constituição Estadual, os princípios constitucionais estabelecidos nos art.182 caput e §1º, e o art.30 e inciso VIII da
Constituição Federal.
Nem se diga que o ato normativo em
exame apenas autorizou a construção em local onde já seria possível construir,
em conformidade com o plano diretor ou a legislação de zoneamento municipal.
Se isso fosse verdadeiro, não haveria
necessidade da autorização legislativa em questão.
Não se faz, nesse passo, qualquer juízo
de valor quanto à oportunidade e conveniência da solução contida no ato
normativo – doação de imóveis para o Município, e construção de edifício em
determinado imóvel -, observando que a exposição de motivos do Projeto de lei
nº154/2007, que acabou se convertendo na Lei Municipal nº4488/2007 fez
considerações dessa ordem quanto à propositura legislativa. Ponderações a esse
propósito vão além dos limites à cognição judicial no processo de controle
abstrato de constitucionalidade das leis.
A ação direta de inconstitucionalidade,
como já assentou o E. STF é instrumento que serve exclusivamente para análise
abstrata e objetiva da compatibilidade vertical entre o ato normativo e determinado
parâmetro constitucional. Avalia-se, em confronto direto - jamais reflexo ou
calcado na análise de questões de fato - a adequação do diploma examinado ao
ordenamento constitucional (STF, ADI 2.714, Rel. Min. Maurício Corrêa,
julgamento em 13-3-03, DJ de 27-2-04; ADI-MC 1347 /DF, Rel. Min. CELSO DE
MELLO, j. 05/09/1995, Tribunal Pleno, DJ 01-12-1995, p.41685, EMENT
VOL-01811-02, p.00241, g.n.; ADI-MC n.º 842 - DF, RTJ 147/545-546).
Assim, ainda que o ato legislativo
tenha sido editado a partir de positiva intenção do Chefe do Executivo e do
Poder Legislativo, que acolheu a iniciativa daquele, os parâmetros
constitucionais de produção legislativa devem ser obsequiados, não comportando
qualquer deflexão.
4)Da liminar.
Estão presentes, na hipótese examinada, os
pressupostos do fumus bonis iuris e
do periculum in mora, a justificar a
suspensão liminar da vigência e eficácia do ato normativo impugnado.
A razoável fundamentação jurídica
decorre dos motivos expostos anteriormente, que indicam, de forma clara, que a
lei impugnada na presente ação padece de vício de inconstitucionalidade.
O perigo da demora decorre
especialmente da idéia de que, sem a imediata suspensão da vigência e eficácia
do ato normativo impugnado, instalar-se-á, provavelmente, situação consumada,
decorrente da utilização ilegítima do imóvel alcançado pela autorização para
construção prevista na lei.
A
não concessão da liminar gerará fato consumado, bastando imaginar as
dificuldades que surgirão para a concretização da eficácia do controle
concentrado de constitucionalidade, caso a decisão favorável, nesta ação
direta, ocorra após a conclusão de obra autorizada pela lei.
A idéia do fato consumado, com
repercussão concreta, guarda relevância para a apreciação da necessidade da
concessão da liminar na ação direta de inconstitucionalidade. Válida tal
afirmação, na medida em que providências administrativas que ulteriormente
serão necessárias para o restabelecimento do status quo ante, com a esperada procedência da ação, trarão ônus e
custos para a Administração Pública e para a ordem urbanística.
Assim, a imediata suspensão da eficácia
do ato normativo, cuja inconstitucionalidade é palpável, evita qualquer
desdobramento no plano dos fatos que possa significar, na prática, prejuízo
concreto tanto no aspecto administrativo, como do ponto de vista urbanístico.
De
resto, ainda que não houvesse essa singular situação de risco, restaria, ao
menos, a excepcional conveniência da medida. Com efeito, no contexto das ações
diretas e da outorga de provimentos cautelares para defesa da Constituição, o
juízo de conveniência é um critério relevante, que vem condicionando os
pronunciamentos do Supremo Tribunal Federal, preordenados à suspensão liminar
de leis aparentemente inconstitucionais (cf. ADIN-MC 125, j. 15.2.90, DJU de
4.5.90, p. 3.693, rel. Min. Celso de Mello; ADIN-MC 568, RTJ 138/64; ADIN-MC
493, RTJ 142/52; ADIN-MC 540, DJU de 25.9.92, p. 16.182).
Diante do exposto, requer-se a
concessão da liminar, para fins de suspensão
imediata da eficácia da Lei Municipal nº4488, de 14 de novembro de 2007, de
Mogi Mirim.
É
a solução mais adequada ao caso.
5)Conclusão e pedido.
Por todo o exposto, evidencia-se a
necessidade de reconhecimento da inconstitucionalidade da norma aqui apontada.
Assim, aguarda-se o recebimento e
processamento da presente ação declaratória, para que ao final seja julgada
procedente, reconhecendo-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº4488, de
14 de novembro de 2007, de Mogi Mirim.
.
Requer-se ainda sejam requisitadas
informações à Câmara Municipal e à Prefeitura Municipal de Mogi Mirim, bem como
posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para manifestar-se sobre o
ato normativo impugnado.
Posteriormente, aguarda-se vista para
fins de manifestação final.
São Paulo, 18 de setembro de 2008.
Fernando Grella Vieira
Procurador-Geral de Justiça
Protocolado
PGJ nº 46.540/08
Interessado:
Promotoria de Justiça de Mogi Mirim
1.Distribua-se a petição inicial da ação direta de
inconstitucionalidade, em face da Lei nº 4.488, de 14 de novembro de 2007, do
Município de Mogi Mirim, junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São
Paulo.
2.Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com
cópia da petição inicial.
São Paulo, 18 de setembro de 2008
FERNANDO GRELLA VIEIRA
Procurador-Geral de Justiça