Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

Protocolado nº47.853/08

Assunto: Inconstitucionalidade da Lei Complementar nº004, de 29 de dezembro de 2001, de Avanhandava.

 

 

Ementa: 1)Lei Municipal. Tributário. Taxas de conservação de vias e logradouros públicos. Serviços públicos prestados de forma genérica e indivisível. Violação do disposto no art.144 e 160 II da Constituição do Estado. 2)Inconstitucionalidade reconhecida.

 

 

         O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício de suas atribuições (art.116 VI da Lei Complementar Estadual nº734/93 - Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo -; art.125 §2º e 129 IV da Constituição Federal; art.74 VI e art.90 III da Constituição do Estado de São Paulo), com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado (PGJ nº47.853/08) vem perante esse Egrégio Tribunal de Justiça promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE do art.189 ao art.194 da Lei Complementar nº004, de 29 de dezembro de 2001, de Avanhandava, pelos fundamentos a seguir expostos.

 

1)Do ato normativo impugnado.

 

         O protocolado que rendeu ensejo à propositura da presente ação direta foi instaurado em razão de representação ofertada pelo DD. 4º Promotor de Justiça de Penápolis, (...).

 

         A Lei Complementar nº004, de 29 de dezembro de 2001, de Avanhandava, “Dispõe sobre o sistema tributário Municipal e as normas gerais de direito tributário aplicáveis ao Município”, sendo certo que merecem atenção os dispositivos da referida lei a seguir transcritos:

 

“CAPÍTULO V - TAXA DE SERVIÇOS PÚBLICOS URBANOS

SEÇÃO I

Hipótese de Incidência

Art. 189 - A hipótese de incidência da taxas de serviços públicos urbanos é a utilização efetiva ou potencial, dos serviços de conservação de vias e logradouros públicos e de limpeza pública, prestados pelo Município ao contribuinte ou colocados à sua disposição, com a regularidade necessária. (Redação da Lei Complementar nº 007, de 21 de dezembro de 2004)

 

§ 1º - Entende-se por serviço de conservação de vias e logradouros públicos a reparação e a manutenção de guias, vias, praças, jardins e similares, que visam manter ou melhorar as condições de utilização desses locais, quais sejam: (Redação da Lei Complementar nº 007, de 21 de dezembro de 2004)

 

a) raspagem e reparos do leito carroçável com o uso de ferramentas ou máquinas;

b) conservação e reparação do calçamento;

c) recondicionamento do meio-fio e sarjetas;

d) manutenção de aterros e serviços correlatos;

e) sustentação e fixação de encostas laterais e remoção de barreiras;

f) fixação, poda e tratamento de árvores e plantas ornamentais e serviços correlatos;

g) manutenção de lagos, fontes e bancos;

h) reparos em galerias pluviais, córregos, valas e canais.

 

§ 2º - Entende-se por serviço de limpeza pública a realização, em vias e logradouros públicos, de: (Redação da Lei Complementar nº 007, de 21 de dezembro de 2004)

 

I- varrição, lavagem e irrigação;

II- limpeza e desobstrução de bueiros, bocas-de-lobo, galerias de águas pluviais, córregos, valas, canais e rios;

III- capinação; desinfecção de locais insalubres.

 

Seção II - Sujeito Passivo

 

Art. 190 - O contribuinte da taxa é o proprietário, o titular do domínio útil ou o possuidor a qualquer título de bem imóvel lindeiro ao local onde o Município mantenha, com a regularidade necessária, os serviços referidos no artigo anterior. (Redação da Lei Complementar nº 007, de 21 de dezembro de 2004)

 

Parágrafo único - Considera-se também lindeiro o bem imóvel que tenha acesso por ruas ou passagens particulares, entradas de vielas ou assemelhados, à via ou logradouro público. (Redação da Lei Complementar nº 007, de 21 de dezembro de 2004)

 

SEÇÃO III - Base de Cálculo e Alíquotas

 

Art. 191 - A base de cálculo das taxas de limpeza pública e de conservação de vias e logradouros públicos é o custo dos serviços utilizados pelo contribuinte ou colocados à sua disposição, mediante a aplicação de custo unitário do serviço, apurado conforme planilha ‘de composição de custos dos serviços por metro linear de testada e de acordo com os melhoramentos lindeiros ao imóvel. (Redação da Lei Complementar nº 007, de 21 de dezembro de 2004)

 

§ 1º - Tratando-se de imóvel com mais de uma testada, considerar-se-á, para efeito de aplicação da taxa, somente a testada para a qual faz frente o imóvel; (Redação da Lei Complementar nº 007, de 21 de dezembro de 2004)

 

§ 2º - Quando no mesmo terreno houver mais de uma unidade autônoma edificada, será calculada a testada ideal, conforme a fórmula abaixo, onde: (Redação da Lei Complementar nº 007, de 21 de dezembro de 2004)

 

TI = T x Au

     Ac

TI = testada ideal

T = testada do terreno datada pelo serviço

Au = área construída da unidade

Ac = área total construída

 

§ 3º - Caso no mesmo terreno haja duas ou mais construções com número de pavimentos distintos, considerar-se-á, para efeito de aplicação da fórmula do parágrafo anterior, o número médio de pavimentos. (Redação da Lei Complementar nº 007, de 21 de dezembro de 2004)

 

Art. 192 - A atualização das taxas levará em consideração o custo dos serviços prestados ao contribuinte ou colocados à sua disposição, conforme apurado em planilhas de custos dos respectivos serviços. (Redação da LEI Complementar nº 007, de 21 de dezembro de 2004)

 

SEÇÃO IV - Lançamento

Art. 193 - A taxa será lançada anualmente, juntamente com o lançamento do IPTU em nome do contribuinte, com base nos dados do cadastro imobiliário. (Redação da Lei Complementar nº 007, de 21 de dezembro de 2004)

 

SEÇÃO V - Arrecadação

 

Art. 194 - A taxa será paga de uma vez ou parcelada, na forma e nos prazos regulamentares, observados o disposto no parágrafo 1º do artigo 22. (Redação da Lei Complementar nº 007, de 21 de dezembro de 2004)

 

Parágrafo único. O pagamento das parcelas vincendas só poderá ser efetuado após o pagamento das parcelas vencidas. (Redação da Lei Complementar nº 007, de 21 de dezembro de 2004)”.

 

         Entretanto, as referidas taxas de serviço, cuja cobrança foi instituída pela Lei Complementar nº004/2001, são verticalmente incompatíveis com os seguintes dispositivos da Carta Política Estadual: art.144 e art.160 II.

 

2)Vício material: impossibilidade de instituição das taxas.

 

         Na ordem constitucional vigente, os Municípios integram a federação e têm assegurado sua autonomia política, legislativa, administrativa e financeira, atendidos os princípios estabelecidos na Carta Magna e também na Constituição do respectivo Estado (art. 29 caput da CR/88). A autonomia financeira dos Municípios é revelada pela capacidade de instituir e arrecadar os tributos que lhes são próprios e aplicar as suas rendas (art. 30 III da CR/88).

 

         A competência tributária dos municípios – que se consubstancia na capacidade de instituir e arrecadar tributos - encontra limite nas normas da Constituição da República atinentes ao Sistema Tributário Nacional (art. 145 e ss. da CR/88), que envolvem princípios incontornáveis, dentre os quais as regras matrizes dos tributos.

 

         Mesmo reconhecendo-se que a Constituição em vigor não criou tributos, é certo que – além de discriminar competências – ela traçou a “norma padrão de incidência” de cada um dos tributos que podem ser instituídos pelos entes federativos. Ou seja, a Carta Magna, no seu art. 145, ao conferir às pessoas políticas a competência para a instituição de impostos, taxas e contribuições de melhoria, classificou juridicamente os tributos, de molde a traçar o modelo de cada um deles e vincular o legislador ordinário.

 

         Nesta mesma linha de raciocínio, Roque Antonio Carrazza anota que “A Constituição, ao discriminar as competências tributárias, estabeleceu - ainda que, por vezes, de modo implícito e com uma certa margem de liberdade para o legislador - a norma padrão de incidência (o arquétipo genérico, a regra matriz) de cada exação. Noutros termos, ela apontou a hipótese de incidência possível, o sujeito ativo  possível, o sujeito passivo possível, a base de cálculo possível e a alíquota possível, das várias espécies e subespécies de tributos. Em síntese, o legislador, ao exercitar a competência tributária, deverá ser fiel à norma padrão de incidência do tributo, pré-traçada na Constituição. O legislador (federal, estadual, municipal ou distrital) enquanto cria o tributo, não pode fugir deste arquétipo constitucional.” (Curso de Direito Constitucional Tributário, 4.ª ed., São Paulo, Malheiros, p. 257).

 

         A Constituição Federal, no seu art. 145, inciso II, estabelece que:

 

 “Art. 145 - A União, os Estados, o Distrito Federal e os municípios poderão instituir os seguintes tributos:

     

 I - ...................          

 II - taxas, em razão do exercício do poder de polícia  ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição.”

 

         Como se vê, a regra matriz constitucional das taxas fixa como hipótese de incidência uma atuação estatal (poder de polícia ou serviço específico e divisível) direta e imediatamente referida ao obrigado (Cf. Geraldo Ataliba, em Hipótese de Incidência Tributária, 2.ª ed., São Paulo, Malheiros, pág. 164).

 

         Esta norma constitucional federal foi reproduzida no art. 160, inciso II, da Constituição do Estado de São Paulo, cuja observância é obrigatória pelos Municípios, por força do disposto no art. 144, dessa mesma Carta Política, o qual impõe limites à autonomia municipal nos princípios estabelecidos na Constituição da República e nela própria.

 

         Segundo José Afonso da Silva “... o fato gerador da taxa é uma situação dependente de atividade estatal: o exercício do poder de polícia ou a oferta de serviço público ao contribuinte” (Curso de Direito Constitucional Positivo, São Paulo, Malheiros, 11.ª edição, p. 645).

 

         Daí que a atuação estatal - hipótese de incidência das taxas - pode consistir tanto num serviço público como num ato de polícia, donde se pode inferir que o nosso sistema constitucional prevê a instituição de taxas de serviço e de taxas de polícia.

 

         As taxas de serviço, por força de expressa definição constitucional, são aquelas cobradas pelo Poder Público “pela utilização, efetiva ou potencial de serviços públicos de sua atribuição, específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição.”

 

         Na definição de Celso Antonio Bandeira de Mello, serviço público é “...toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material fruível diretamente pelos administrados, prestado pelo Estado ou por quem lhe faça as vezes, sob um regime de direito público” (Curso de Direito Administrativo, 7.ª ed. São Paulo, Malheiros, p. 399)

 

         Não é, porém, todo e qualquer serviço público que admite a tributação por meio de taxa de serviço, mas exclusivamente o “serviço público específico e divisível”, como definido constitucionalmente, em contraste com o serviço público universal e indivisível, este passível de ser mantido, em regra, com a receita resultante da arrecadação de impostos.

 

         De fato, consoante o abalizado magistério de Roque Antonio Carrazza, “...os serviços públicos gerais, ditos também universais, são os prestados ‘uti universi’, isto é, indistintamente a todos os cidadãos. Eles alcançam a comunidade, como um todo considerada, beneficiando número indeterminado (ou, pelo menos, indeterminável) de pessoas. É o caso dos serviços de iluminação pública, de segurança pública, de diplomacia, de defesa externa do País, etc. Todos eles não podem ser custeados, no Brasil, por meio de taxas, mas, sim, das receitas gerais do Estado, representadas basicamente pelos impostos. Já os serviços públicos específicos, também chamados de singulares, são os prestados ‘uti singuli’. Referem-se a uma pessoa ou a um número determinado (ou, pelo menos, determinável) de pessoas. São de utilização individual e mensurável. Gozam, portanto, de divisibilidade, é de dizer, da possibilidade de avaliar-se a utilização efetiva ou potencial, individualmente considerada. É o caso dos serviços de telefone, de transporte coletivo, de fornecimento domiciliar de água potável, de gás, de energia elétrica, etc. Estes, sim, podem ser custeados por meio de taxas de serviço”. (ob. cit., p. 271/272).

 

         Neste contexto, os art. 189 a 194 da Lei Complementar Municipal nº 004, de 29 de dezembro de 2001, de Avanhandava, são materialmente inconstitucionais por instituir a cobrança de taxas cuja hipótese de incidência é a prestação de serviços públicos gerais e indivisíveis, que beneficiam um número indeterminado (ou indeterminável) de pessoas.

 

         A limpeza pública e a conservação de vias e logradouros públicos correspondem a serviços oferecidos indistintamente à coletividade, beneficiada como um todo; daí que, em se tratando de serviços de interesse geral ou universal, as despesas com a sua manutenção devem ser suportadas por toda a comunidade, por meio de impostos.

 

         Não basta, portanto, que na lei instituidora de uma taxa conste que se está prestando um serviço público específico e divisível ao contribuinte em razão da utilidade ou comodidade a este proporcionada, quantificando-se o benefício aleatoriamente. Bem a propósito, o Excelso Pretório já assentou que “o benefício especial objetivo, mensurável é condição essencial para que o tributo seja conceituado como taxa” (RDA, 110-212, rel. Ministro LUIZ GALLOTTI).

 

         Em tais circunstâncias, não poderia a lei municipal em exame disciplinar a cobrança de tributo cuja hipótese de incidência é diversa daquela prevista na regra matriz constitucional.  Em outros termos, o Município de Avanhandava não pode se remunerar pela prestação de serviços gerais ou universais, indivisíveis e imensuráveis, mediante a cobrança de taxas.

 

         No âmbito desse E. Tribunal de Justiça, aliás, é tranqüilo o entendimento de que os serviços de limpeza pública e conservação de vias e logradouros públicos não podem ser remunerados por taxa (ADI 59.663.0/SP, Rel. Des. HERMES PINOTTI, j. em 14.06.00; ADI 97.301-0/9.00/SP, Rel. Des. BARBOSA PEREIRA, j. em 02.04.03; ADI 19.927.0/SP, Rel. Des. CUNHA BUENO, j. em 24.08.94; ADIn 22.533.0/SP, Rel. Des. NELSON SCHIESARI, j. em 08.02.95; ADI 95.676-0/4-00/SP, Rel. Des. OLIVEIRA RIBEIRO, j. em 18.06.03), na mesma linha da orientação predominante no Supremo Tribunal Federal (RE 361.437/MG, Rel. Min. ELLEN GRACIE; RE 199.969/SP, Rel. Min. ILMAR GALVÃO).

 

3)Conclusão e pedido.

 

         Diante de todo o exposto, requeiro seja determinado o processamento desta ação direta, sendo, ao final, julgada procedente a ação, com a declaração da inconstitucionalidade dos art. 189 a 194 da Lei Complementar Municipal nº004/2001, de Avanhandava.

 

         Requer-se ainda sejam requisitadas informações à Câmara Municipal de Avanhandava, bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para manifestar-se sobre o ato normativo impugnado.

 

         Posteriormente, aguarda-se vista para fins de manifestação final.

São Paulo, 16 de junho de 2008.

 

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça