Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

 

Protocolado nº51.363/2008

Objeto: Lei Estadual nº12.520, de 02 de janeiro de 2007.

 

Ementa:

1)Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Estadual. Disciplina da instalação de aparelho eliminador de ar em unidades servidas por ligação de água e esgoto.

2)Violação da separação de poderes. Normas que criam imposições e obrigações para a Administração Pública Direta ou Indireta, encarregada da prestação do serviço público (art.5º, art.47 II e XII da Constituição Paulista).

3)Violação de preceitos fundamentais (princípio da liberdade da pessoa, princípio federativo, e razoabilidade). Previsão normativa que veda a retirada do equipamento, após sua colocação (art.1º, art.5º II, art.18, art.22 I, art.25 e §1º da CR/88; aplicáveis aos Estados por força do art.1º da Constituição Paulista).

4)Violação da razoabilidade. Previsão normativa que veda a retirada do equipamento após a sua instalação. (art.111 da Constituição do Estado).

 

 

 

 

         O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício de suas atribuições (art.116 VI da Lei Complementar Estadual nº734/93 - Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo -; art.125 §2º e 129 IV da Constituição Federal; art.74 VI e art.90 III da Constituição do Estado de São Paulo), com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado (PGJ nº51.363/2008) vem perante esse Egrégio Tribunal de Justiça promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE da Lei Estadual nº12.520, de 02 de janeiro de 2007, pelos fundamentos expostos a seguir.

 

1)Do ato normativo impugnado.

 

         Cumpre salientar que o procedimento que rendeu ensejo à propositura desta ação direta foi instaurado a partir de representação formulada pelo DD. 1º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital, Dr. (...) (fls.2/12).

 

         A Lei Estadual nº12.520, de 02 de janeiro de 2007, fruto de iniciativa parlamentar, que “Disciplina a instalação de aparelho eliminador de ar em unidades servidas por ligação de água e esgoto, e dá outras providências”, tem a seguinte redação:

 

“LEI N.º 12.520, DE 2 DE JANEIRO DE 2007

(Projeto de lei n.º 370, de 2003 do Deputado Milton Vieira - PFL)

Disciplina a instalação de aparelho eliminador de ar em unidades servidas por ligação de água e esgoto, e dá outras providências.

O PRESIDENTE DA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA:

Faço saber que a Assembléia Legislativa decreta e eu promulgo, nos termos do artigo 28, § 8º, da Constituição do Estado, a seguinte lei:

Artigo 1º- Fica assegurado aos usuários dos serviços de água e esgoto, no âmbito do Estado, o direito de aquisição e instalação de aparelho eliminador de ar, em cada unidade independente servida por ligação de água e esgoto.

Parágrafo único - O aparelho eliminador de ar será instalado na tubulação apropriada, de 15 (quinze) a 5 (cinco) centímetros antes do hidrômetro, por funcionário habilitado pela prestadora do serviço correspondente.

Artigo 2º- O aparelho de que trata o artigo anterior será submetido a rigorosos testes por órgãos de inspeção publicamente reconhecidos, de acordo com as normas do Inmetro - Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial.

Parágrafo único- Após aferido, o aparelho receberá um selo inviolável de garantia de funcionamento.

Artigo 3º- O consumidor que decidir pela aquisição e instalação do aparelho deverá encaminhar pedido escrito à empresa fornecedora de serviço de água e esgoto de seu município ou região.

§1º- O pedido deverá ser protocolizado em agência ou posto de atendimento da empresa fornecedora.

§ 2º- Em não havendo agência ou posto de atendimento da fornecedora do serviço de água e esgoto no município, deverá o consumidor encaminhar o pedido por meio de correspondência pelo correio, com aviso de recebimento, ao endereço da prestadora inserto na conta mensal.

Artigo 4º- O pedido previsto no artigo anterior deverá conter os seguintes dados extraídos da conta mensal:

I - codificação identificadora da empresa fornecedora;

II - número do RGI - Registro Geral do Imóvel;

III - número do hidrômetro;

IV - número da conta;

V - nome completo, número de identidade e assinatura do solicitante, se pessoa física;

VI - nome ou razão social da empresa, assinatura do responsável, o número do Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica - CNPJ correspondente e inscrição estadual, quando houver.

Artigo 5º- O consumidor pagará uma única vez pela aquisição e instalação do equipamento objeto desta lei, em lançamento a ser realizado pela fornecedora na conta imediatamente posterior à sua instalação.

Artigo 6º- Uma vez instalado anexo ao hidrômetro, o equipamento eliminador de ar passará a fazer parte integrante da instalação, não podendo ser removido por nenhuma das partes envolvidas na relação de consumo existente, salvo se produto de tecnologia mais avançada vier a ser produzido, sempre em benefício do consumidor e com a anuência deste.

Artigo 7º- A empresa prestadora de serviço de água e esgoto e a empresa produtora do aparelho eliminador de ar objeto desta lei são solidariamente responsáveis pelo seu eficaz funcionamento.

Artigo 8º- Para os efeitos desta lei são considerados consumidores todos os usuários, pessoas físicas e jurídicas, comerciais e industriais.

Artigo 9.º- O Poder Executivo regulamentará esta lei no prazo de 120 (cento e vinte) dias, a contar da data de sua publicação.

Artigo 10- As despesas decorrentes da aplicação desta lei correrão à conta de dotações orçamentárias próprias, consignadas no orçamento vigente.

Artigo 11- Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.

Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo, aos 2 de janeiro de 2007.

a) RODRIGO GARCIA - Presidente

Publicada na Secretaria da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo, aos 2 de janeiro de 2007.”

 

         Oportuno ressaltar que o projeto de lei foi vetado integralmente pelo Senhor Governador do Estado (cf. fls.39/41), sendo ulteriormente promulgado pelo Presidente da Assembléia Legislativa.

 

            Entretanto, os dispositivos acima colocados em destaque (negrito) são verticalmente incompatíveis com nossa sistemática constitucional.

 

         São eles: (a) a parte final do parágrafo único do art.1º (“por funcionário habilitado pela prestadora do serviço correspondente”); (b) art.3º, 4º e 5º (que, de forma velada, impõem ao prestador do serviço público a aquisição do equipamento e posterior repasse do custo ao consumidor); (c) o art.6º (que impede a retirada do equipamento); (d) art.7º (dispõe sobre responsabilidade civil da concessionária do serviço público).

 

         É o que será exposto a seguir.

 

2)Violação da separação de poderes.

 

         Foi violada a regra da separação de poderes, contemplada nos seguintes dispositivos da Constituição Paulista:

 

“Art.5º. São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

(...)

Art.47. Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

(...)

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

(...)

XII – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;”

 

         A Lei Estadual nº12.520/2007, tratando da defesa do consumidor, assegura a faculdade, decorrente exclusivamente do direito de livre escolha do usuário do serviço público, de realização de instalação de aparelho eliminador de ar em unidades servidas por ligação de água e esgoto.

 

         Não se vislumbra genericamente, na iniciativa, vício formal, na medida em que, sendo fruto projeto de lei apresentado por parlamentar, não trata de hipótese de iniciativa reservada do Chefe do Executivo.

 

         Contudo, referida lei criou obrigações e impôs condutas ao prestador de serviço público, ou seja, ao Município e ao Estado, ainda que estes se desincumbam da prestação do serviço através de concessionárias, que integram a Administração Pública Indireta.

 

         Note-se que, a pretexto de assegurar aos usuários no Estado de São Paulo o direito de aquisição e instalação de aparelho eliminador de ar, em cada unidade independente servida por ligação de água e esgoto, a lei impôs à prestadora do serviço público (Estado ou Município, conforme o caso, direta ou indiretamente, através das concessionárias de serviço) as seguintes obrigações: (a) realizar a instalação do equipamento na unidade consumidora do serviço (art.1º parágrafo único); (b) efetuar a aquisição do equipamento de acordo com a solicitação do consumidor (art.3º e 4º); (c) efetuar o pagamento do equipamento e posteriormente realizar a cobrança do respectivo valor, para fins de ressarcimento, na conta do beneficiário do equipamento (art.5º); (d) responsabilidade da empresa prestadora de serviços (concessionária de serviço público) pelo eficaz funcionamento do aparelho eliminador de ar nela previsto (art.7º), que não é por ela produzido e, a rigor, nem deve ser por ela instalado.

 

         É visível que, assim o fazendo, a lei, de iniciativa parlamentar, cria obrigações para o Poder Executivo, e estabelece imposições relativas à prestação do serviço público. Isso significa quebra à regra da separação de poderes, prevista no art.5º, e no art.47 II e XIV da Constituição Bandeirante.

 

         Há quebra do princípio da separação de poderes nos casos em que o Poder Legislativo edita um ano normativo que configura, na prática, ato de gestão executiva. Quando o legislador, a pretexto de legislar, administra, configura-se o desrespeito à independência e harmonia entre os poderes.

 

         Nestes termos, a disciplina legal findou, efetivamente, invadindo a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, envolvendo o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos Poderes.

 

Não é necessário, adequado, ou legítimo, que a lei diga o que o Poder Executivo pode ou não fazer dentro de sua típica atividade administrativa. Se o faz, torna-se patente que a atividade legislativa imiscuiu-se no âmbito de atuação do administrador, fazendo-o de modo inconstitucional.

 

         Cumpre recordar, nesse passo, o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regras para a Administração; a Prefeitura as executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art.2º c/c o art.31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15ªed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p.708 e 712).

 

         Exatamente esta é a hipótese dos autos.

 

         Em situações análogas esse E. Órgão Especial tem reconhecido a inconstitucionalidade do ato normativo por quebra do princípio de separação de poderes.

 

         É o que se infere dos julgados a seguir transcritos, mutatis mutandis aplicáveis ao caso em exame:

 

“Ao executivo haverá de caber sempre o exercício de atos que impliquem no gerir as atividades municipais. Terá, também, evidentemente, a iniciativa das leis que lhe propiciem a boa execução dos trabalhos que lhe são atribuídos. Quando a Câmara Municipal, o órgão meramente legislativo, pretende intervir na forma pela qual se dará esse gerenciamento, está a usurpar funções que são de incumbência do Prefeito” (ADI n. 53.583-0, rel. Des. Fonseca Tavares).

 

“Ação direta de inconstitucionalidade. Artigo 2º da Lei Municipal 10975/2006, de Ribeirão Preto. Legislação, de iniciativa parlamentar, que determina a obrigatoriedade da inscrição ‘Patriota brasileira assassinada pela ditadura militar’ em placa indicativa de logradouro ou próprio municipal. Impossibilidade. Matéria de cunho eminentemente administrativo atinente a planejamento e ordenamento urbano. Função legislativa da Câmara de Vereadores possui caráter genérico e abstrato. Lei dispôs de maneira concreta, com caráter de obrigatoriedade, afrontando o princípio da separação dos poderes. Procedência” (ADI 147.772.0/5-00, rel. des. Maurício Ferreira Leite, j. 03.10.2007).

 

“Ação direta de inconstitucionalidade - Lei Municipal n° 6.641, de 31 de julho de 2006, que dispõe sobre a obrigatoriedade de fixação de quadro informativo com nome, registro e especialidade de profissional médico de plantão nos pronto-socorros e unidades básicas de saúde - Ato típico de administração, cujo exercício e controle cabe ao Chefe do Poder Executivo - Ofensa ao princípio da separação dos poderes - Criação de despesas não previstas no orçamento - Afronta aos artigos 5º, 25 e 144, ambos da Constituição Estadual - Ação procedente.”(ADI 149.363-0/3-00, rel. des. Debatin Cardoso, j. 03.10.2007).

 

3)Violação de preceitos fundamentais: princípio de liberdade, princípio federativo e razoabilidade.

 

         Foram também violados preceitos fundamentais, consistentes no princípio de liberdade da pessoa, princípio federativo, e princípio da razoabilidade, previstos tanto na Constituição da República como na Constituição do Estado (aqueles aplicáveis por força de remissão desta), transcritos a seguir:

 

“Constituição da República:

(...)

Art.1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos

(...)

Art.5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;

(...)

Art.18. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.

(...)

Art.22. Compete privativamente à União legislar sobre:

I – direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho;

(...)

Art.25. Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios estabelecidos desta Constituição.

§1º. São reservadas aos Estados as competências que não lhes sejam vedadas por esta Constituição.

 

(...)

 

Constituição do Estado de São Paulo:

(...)

Art.1º. O Estado de São Paulo, integrante da República Federativa do Brasil, exerce as competências que não lhe sejam vedadas pela Constituição Federal.

(...)

Art.111. A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência.”

 

         Além do que foi exposto anteriormente, o art.6º da Lei Estadual nº12.520/2007, ao vedar a retirada do equipamento após sua instalação – ainda que com a ressalva quanto à produção de produto de tecnologia mais avançada – cria indevida restrição à liberdade de opção, que deve ser assegurada ao consumidor, impondo a manutenção de contratação de determinada modalidade de serviço que não se compatibiliza com a autonomia da vontade que rege as relações de direito privado.

 

         Isso significa violação ao princípio e garantia fundamental da liberdade de escolha, decorrente do art.5º caput e inciso II da CR/88, pelo qual ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei, aplicável no âmbito dos Estados por força do art.1º da Constituição Bandeirante, dispositivo este contrariado pela normativa em exame.

 

         A propósito, anota José Afonso da Silva que “o texto constitucional supra (...) prevê a liberdade de fazer, a liberdade de atuar, a liberdade de agir, como princípio. Vale dizer, o princípio é o de que todos têm a liberdade de fazer e de não fazer o que bem entenderem, salvo quando a lei determine em contrário.” (Comentário Contextual à Constituição, São Paulo, Malheiros, 2005, p.82).

 

         Ora, adquirir ou não adquirir o equipamento, como assenta a própria Lei Estadual nº12.520/2007, é uma faculdade assegurada ao usuário do serviço público de fornecimento de água; corolário disso é que o usuário não pode ser compelido a continuar utilizando referido equipamento.

 

         Basta imaginar uma situação hipotética: suponha-se que, adquirido o equipamento, não tenha, na prática, o desempenho desejado ou suposto pelo consumidor inicialmente. Pela disciplina estabelecida pelo art.6º da Lei Estadual nº12.520/2007, o mecanismo não poderá ser retirado pelo particular, e nem mesmo pelo prestador do serviço (Poder Público ou concessionária de serviço de água).

 

         Isso também equivale, na prática, a criar obrigação de contratar, ou de manter determinada espécie de prestação de serviço, que se afigura, ainda que de forma velada, matéria de direito civil.

 

         Em outras palavras, a lei estadual tratou de direito civil (disciplina de contrato, em especial, obrigatoriedade de sua manutenção), violando os limites da repartição de competências decorrente do art.22 I, art.25 e §1º da CR/88, e por isso, representando, desse modo, violação ao art.1º da Constituição Paulista.

 

         Note-se que não se trata, nesse passo, de ação direta tomando como parâmetro de controle norma da Constituição da República, o que seria inviável no âmbito dos Estados.

 

         O problema é que os dispositivos impugnados violaram preceitos fundamentais: princípio da liberdade e o princípio federativo. No exercício de sua competência legislativa, o legislador estadual deve observar os limites que decorrem destes princípios constitucionais estabelecidos, aplicáveis ao Estado de São Paulo e seus Municípios por força do art.1º da Constituição Paulista.

 

José Afonso da Silva, fazendo menção aos princípios fundamentais da Constituição, que revelam as opções políticas essenciais do Estado, aponta que entre eles devem ser reconhecidos, entre outros, “os princípios relativos à existência, forma, estrutura e tipo de Estado: República Federativa do Brasil, soberania, Estado Democrático de Direito (art.1º)” (Curso de direito constitucional positivo, 13ªed., ed., São Paulo, Malheiros, 1997, p.96).

 

         Ora, a repartição constitucional de competências entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios, bem como os princípios fundamentais assentes na Constituição da República, são elementos que, de modo concreto, delimitam e caracterizam o princípio federativo, sendo certo que este, sem dúvida, é um dos princípios fundamentais ou estabelecidos pela Constituição Federal, ditando, pois, o exato perfil do Estado Brasileiro.

 

Atos normativos que violam a repartição constitucional de competências, ou princípios e garantias fundamentais, desrespeitam não apenas regras relativas à divisão do poder de editar normas infraconstitucionais, mas desautorizam diretamente uma das opções fundamentais da República Federativa do Brasil, ou seja, o próprio princípio federativo.

 

            A possibilidade de reconhecimento da inconstitucionalidade da lei municipal por violação ao princípio constitucional estabelecido consubstanciado na denominada repartição constitucional de competências, que se apresenta através do princípio federativo, foi reconhecida por esse E. Tribunal de Justiça quando do julgamento da ADI 130.227.0/0-00, rel. des. Renato Nalini, v.u., julgada em 24 de outubro de 2007. Na oportunidade, o des. Walter Guilherme formulou declaração de voto vencedor, do qual é oportuno extrair o seguinte excerto:

 

“(...) Ora, um dos princípios da Constituição Federal – e de capital importância – é o princípio federativo, que se expressa, no Título I, denominado ‘dos Princípios Fundamentais’, logo no art.1º: ‘A república Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito...’

Sendo a organização federativa do Estado brasileiro um princípio fundamental da República do Brasil, e constituindo elemento essencial dessa forma de estado a distribuição de competência legislativa entre os entes federados, inescapável a conclusão de ser essa discriminação de competência um princípio estabelecido na Constituição Federal.

Assim, quando o referido art.144 ordena que os Municípios, ao ser organizarem, devem atender os princípios da Constituição Federal, fica claro que se estes editam lei municipal fora dos parâmetros de sua competência legislativa, invadindo a esfera de competência legislativa da União, não estão obedecendo ao princípio federativo, e, pois, afrontando estão o art.144 da constituição do Estado. (...), g.n.”

 

         Em recentes julgados, do mesmo modo, esse C. Órgão Especial reconheceu, na violação da repartição constitucional de competências e dos limites ao exercício da competência legislativa, o desrespeito ao próprio princípio federativo, como se infere dos seguintes julgados, proferidos em ações diretas ajuizadas por esta Procuradoria-Geral de Justiça: ADI 152.442-0/1-00, j. 07.05.08, v.u., rel. des. Penteado Navarro; ADI 150.574-0/9-00, j. 07.05.08, v.u., rel; des. Debatin Cardoso.

 

         Mas não é só.

 

         Não bastasse tudo o que foi acima exposto, a imposição ao particular, no sentido de que uma vez instalado o equipamento não poderá mais ser retirado, peca pela falta de razoabilidade, violando o disposto no art.111 da Constituição Bandeirante.

 

         A propósito, é correto observar que: (a) a solução imposta pelo legislador (vedação da retirada do equipamento instalado por solicitação do consumidor) é excessiva em relação ao fim pretensamente visado (suposta proteção aos consumidores do Município); (b) o fim em si mesmo é inadequado, pois não se pode impor ao usuário do serviço de água a manutenção de um equipamento que foi instalado por livre escolha daquele; (c) a lei impugnada acabou criando um ônus insuperável, em especial para aqueles consumidores que, uma vez utilizando o equipamento eliminador de ar, cheguem à conclusão de que suas expectativas não foram atendidas.

 

Eis, então, a nítida violação do princípio da razoabilidade.

 

         Como anota Diogo de Figueiredo Moreira Neto, o princípio da razoabilidade “visa a afastar o arbítrio que decorrerá da desadequação entre meios e fins”, tendo importância tanto quando da criação da norma como quando de sua aplicação. Ademais, prossegue o autor, “o princípio da proporcionalidade, uma vez admitido como um princípio substantivo autônomo, como é considerado na doutrina alemã do Direito Público, e não apenas com o sentido estrito contido no conceito de razoabilidade, prescreve, especificamente, o justo equilíbrio entre os sacrifícios e os benefícios resultantes da ação do Estado” (Curso de direito administrativo, 14ªed., Rio de Janeiro, Forense, 2006, p.101). Também nesse sentido Maria Sylvia Zanella Di Pietro (Direito administrativo, 19ªed., São Paulo, Atlas, 2006, p.95).

 

         Em sede doutrinária, Gilmar Ferreira Mendes, examinando a aplicação do princípio da proporcionalidade pelo E. STF, anotou “de maneira inequívoca a possibilidade de se declarar a inconstitucionalidade da lei em caso de sua dispensabilidade (inexigibilidade), inadequação (falta de utilidade para o fim perseguido) ou de ausência de razoabilidade em sentido estrito (desproporção entre o objetivo perseguido e o ônus imposto ao atingido)” (cf. A proporcionalidade na jurisprudência do STF, publicado em Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade, São Paulo, Instituto Brasileiro de Direito Constitucional e Celso Bastos Editor, 1998, p.83).

 

         Em outras palavras, a obrigatoriedade da manutenção do equipamento, mesmo contra a vontade do consumidor, mostra-se inadequada (levará a efeito contrário ao pretendido), desnecessária (o usuário do serviço é quem melhor pode aquilatar se deve ou não ser mantido o equipamento), e inconveniente (a pretexto de proteger, poderá acarretar desconfortos para o usuário).

 

         A ofensa ao princípio da razoabilidade tem servido, em julgados desse E. Tribunal de Justiça, ao reconhecimento da inconstitucionalidade de leis que criam ônus excessivos e desnecessários para seus destinatários. Confira-se, por exemplo, os julgados já mencionados acima (ADI 152.442-0/1-00, j. 07.05.08, v.u., rel. des. Penteado Navarro; ADI 150.574-0/9-00, j. 07.05.08, v.u., rel; des. Debatin Cardoso).

 

         Daí a violação ao art.111 da Constituição do Estado de São Paulo.

 

 4)Da liminar.

 

         Estão presentes, na hipótese examinada, os pressupostos do fumus bonis iuris e do periculum in mora, a justificar a suspensão liminar da vigência e eficácia do ato normativo impugnado.

 

         A razoável fundamentação jurídica decorre dos motivos expostos anteriormente, que indicam, de forma clara, que os dispositivos antes indicados, da lei impugnada na presente ação, padecem de inconstitucionalidade.

 

         O perigo da demora decorre especialmente da idéia de que sem a imediata suspensão da vigência e eficácia do ato normativo questionado, subsistirá a sua aplicação, com realização de despesas e imposição de obrigações ao Poder Público (diretamente ou através das concessionárias de prestação de serviço de fornecimento de água), que dificilmente poderão ser revertidas aos cofres públicos, na hipótese provável de procedência da ação direta.

 

         É nítida a ocorrência do risco do fato consumado, e da dificílima – para não dizer improvável - reparação dos danos que serão causados ao erário.

 

         A idéia do fato consumado, com repercussão concreta, guarda relevância para a apreciação da necessidade da concessão da liminar na ação direta de inconstitucionalidade. Note-se que, com a procedência da ação, pelas razões declinadas, não será possível restabelecer o status quo ante.

 

         Assim, a imediata suspensão da eficácia do ato normativo questionado, cuja inconstitucionalidade é palpável, evitará a ocorrência de maiores prejuízos, além dos que já se verificaram.

 

         De resto, ainda que não houvesse essa singular situação de risco, restaria, ao menos, a excepcional conveniência da medida. Com efeito, no contexto das ações diretas e da outorga de provimentos cautelares para defesa da Constituição, o juízo de conveniência é um critério relevante, que vem condicionando os pronunciamentos do Supremo Tribunal Federal, preordenados à suspensão liminar de leis aparentemente inconstitucionais (cf. ADIN-MC 125, j. 15.2.90, DJU de 4.5.90, p. 3.693, rel. Min. Celso de Mello; ADIN-MC 568, RTJ 138/64; ADIN-MC 493, RTJ 142/52; ADIN-MC 540, DJU de 25.9.92, p. 16.182).

 

         Diante do exposto, requer-se a concessão da liminar, para fins de suspensão imediata da eficácia dos seguintes dispositivos da Lei Estadual nº12.520, de 02 de janeiro de 2007: parte final do parágrafo único do art.1º (a expressão “por funcionário habilitado pela prestadora do serviço correspondente”), art.3º, art.4º, art.5º, art.6º, e art.7º.

 

5)Conclusão e pedido.

 

         Do exposto, aguarda-se o recebimento e o processamento desta ação direta, para que ao final seja julgada procedente, declarando-se a inconstitucionalidade da parte final do parágrafo único do art.1º (a expressão “por funcionário habilitado pela prestadora do serviço correspondente”), art.3º, art.4º, art.5º, art.6º, e art.7º, todos da Lei Estadual nº12.520, de 02 de janeiro de 2007.

 

         Requer-se ainda sejam requisitadas informações à Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo, bem como, seja posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para se manifestar sobre as normas impugnadas.

 

         Posteriormente, aguarda-se vista para fins de manifestação final.

 

 

São Paulo, 16 de julho de 2008.

 

 

 

 

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça