EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO E. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Protocolado nº 52.694/09

Assunto: Inconstitucionalidade parcial das Leis Complementares nº 10/95; 14/95; 33/98; 34/98; 40/99; 51/03; 53/03; 56/04; 58/04; 64/05; 65/05; e 66/05, do Município de Araçariguama.

Ementa: Leis Complementares nº 10/95; 14/95; 33/98; 34/98; 40/99; 51/03; 53/03; 56/04; 58/04; 64/05; 65/05; e 66/05, do Município de Araçariguama, que criam ou mantêm cargos de provimento em comissão, aos quais não correspondem funções de direção, chefia e assessoramento, mas funções próprias dos cargos de provimento efetivo.  Violação do art. 115, inc. II e V, da Constituição do Estado de São Paulo. Pedido para que se declare a inconstitucionalidade material das expressões da lei que identificam tais cargos.

O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, inciso VI da Lei Complementar Estadual nº 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo), em conformidade com o disposto no art. 125, § 2º e art. 129, inciso IV da Constituição Federal, e ainda art. 74, inciso VI e art. 90, inciso III da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado, vem, respeitosamente, perante esse Egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE das Leis Complementares nº 10/95; 14/95; 33/98; 34/98; 40/99; 51/03; 53/03; 56/04; 58/04; 64/05; 65/05; e 66/05, do Município de Araçariguama, pelos fundamentos a seguir expostos.

I – DOS ATOS NORMATIVOS IMPUGNADOS

A presente ação direta de inconstitucionalidade decorre do acolhimento de representação formulada pela Dra. (...), Promotora de Justiça dos Direitos Constitucionais do Cidadão de São Roque.

A ilustre Promotora de Justiça constatou que houve, no Município de Araçariguama, profusão de cargos de provimento em comissão, muitos dos quais incompatíveis com a parte final do inciso II do art. 115 da Constituição do Estado de São Paulo, que admite sua existência em caráter excepcional, para os postos de estrita confiança.

Para a instrução dos autos, solicitou-se ao Prefeito do Município de Araçariguama a relação de todos os cargos, empregos e funções públicas, o que foi atendido a fls. 930 e ss.

O Presidente da Câmara Municipal remeteu as leis criadoras desses cargos, bem como certidão de vigência dos referidos atos normativos. Esclareceu, outrossim, que o Município de Araçariguama editou as seguintes leis para criar os cargos do Poder Executivo Municipal: Lei nº 9, de 16 de março de 1993; Lei nº 34, de 26 de julho de 1993; Lei nº 58, de 20 de janeiro de 1994; Lei nº 59, de 20 de janeiro de 1994; Lei nº 62, de 20 de janeiro de 1994; Lei nº 63, de 20 de janeiro de 1994; Lei nº 64, de 25 de janeiro de 1994; e Lei nº 84, de 8 de agosto de 1994 (fls. 718/719).

Essas leis, segundo a mesma informação, foram tacitamente revogadas pela Lei Complementar nº 10, de 26 de abril de 1995, dispondo sobre a “organização administrativa da Prefeitura Municipal de Araçariguama, criando Secretarias Municipais; bem como criando, modificando, alterando, transformando, extinguindo cargos, escala de referência, tabela de vencimentos e dando outras providências”.

Foi informado, também, que a Lei Complementar nº 10, de 26 de abril de 1995, foi alterada pelas seguintes leis: Lei Complementar nº 14, de 16 de novembro de 1995; Lei Complementar nº 34, de 29 de janeiro de 1998; Lei Complementar nº 40, de 20 de julho de 1999; Lei Complementar nº 53, de 23 de outubro de 2003; Lei Complementar nº 56, de 11 de fevereiro de 2004; Lei Complementar nº 64, de 23 de maio de 2005; e Lei Complementar nº 65, de 18 de agosto de 2005, todas elas trazidas aos autos.

Em diligência, foi requisitada cópia da Lei Complementar nº 33/98 e sua certidão de vigência, diante da constatação de que, na relação de cargos fornecida pela Prefeitura, havia a previsão de um cargo de provimento em comissão (Diretor de Escola) que não estava relacionado aos textos legais até então fornecidos.

Feita essa observação, seguem os atos normativos e os cargos de provimento em comissão por eles criados:

1. A Lei Complementar nº 10, de 26 de abril de 1995, dispondo sobre a “organização administrativa da Prefeitura Municipal de Araçariguama, criando Secretarias Municipais; bem como criando, modificando, alterando, transformando, extinguindo cargos, escala de referência, tabela de vencimentos e dando outras providências”, prevê os cargos em comissão nos anexos II (quadro analítico da distribuição dos funcionários por órgãos), III (cargos em comissão e referências numéricas), V (quadro de cargos em comissão criados), VII (quadro de cargos em comissão mantidos), IX (quadro de cargos em comissão com denominação alterada), e XII (descrição de cargos).

Os cargos em comissão previstos na Lei Complementar nº 10/95 (fls. 973/1033) são os seguintes:

1.1.     Na Assessoria Técnica: a) Assessor de Agricultura e Abastecimento; b) Assessor de Planejamento e Meio Ambiente; c) Assessor de Programação de Computador; e d) Assessor Jurídico;

1.2.     Na Secretaria Municipal de Administração: a) Secretário Municipal de Administração; b) Diretor do Departamento de Administração do Pessoal; c) Diretor do Departamento de Compras, Controle Patrimonial e Licitação; d) Diretor do Departamento de Serviços Gerais; e) Chefe de Setor; e f) Supervisor de Setor;

1.3.     Na Secretaria Municipal de Assuntos Jurídicos: a) Secretário Municipal de Assuntos Jurídicos; b) Diretor do Departamento de Estudos Legislativos e Assuntos Legais; c) Diretor do Departamento da Procuradoria Municipal; d) Chefe de Setor; e e) Supervisor de Setor;

1.4.     Na Secretaria Municipal de Educação e Cultura: a) Secretário Municipal de Educação e Cultura; b) Diretor do Departamento de Orientação e Formação; c) Diretor do Departamento de Educação Infantil; d) Diretor do Departamento de Educação Complementar; e) Diretor do Departamento de Cultura; f) Chefe de Setor; g) Assistente de EMEI; h) Supervisor de Setor; e i) Encarregado do Serviço Educacional;

1.5.     Na Secretaria Municipal de Esporte, Lazer e Turismo: a) Secretário Municipal de Esporte, Lazer e Turismo; b) Diretor do Departamento de Esportes; c) Diretor do Departamento de Lazer e Turismo; d) Chefe de Setor; e e) Supervisor de Setor;

1.6.     Na Secretaria Municipal de Governo: a) Secretário Municipal de Governo; b) Diretor do Departamento de Coordenação Administrativa; c) Diretor do Departamento de Coordenação Política; d) Chefe de Setor; e) Supervisor de Setor; e f) Encarregado de Serviço de Atendimento;

1.7.     Na Secretaria Municipal de Obras e Serviços Municipais: a) Secretário Municipal de Obras e Serviços Municipais; b) Diretor do Departamento de Obras Públicas e Particulares; c) Diretor do Departamento de Manutenção e Serviços Urbanos; d) Chefe de Setor; e) Supervisor de Setor; e f) Líder de Equipe;

1.8.     Na Secretaria Municipal de Orçamento, Finanças e Contabilidade: a) Secretário Municipal de Orçamento, Finanças e Contabilidade; b) Diretor do Departamento de Contabilidade; c) Diretor do Departamento de Fiscalização; d) Diretor do Departamento de Rendas; e) Diretor do Departamento de Tesouraria; f) Assessor da Diretoria Contábil; g) Chefe de Setor; h) Assistente de Fiscalização do Exercício de Atividades; i) Assistente de Fiscalização Tributária; e j) Supervisor de Setor;

1.9.     Na Secretaria Municipal de Planejamento, Desenvolvimento e Gestão Estratégica: a) Secretário Municipal de Planejamento, Desenvolvimento e Gestão Estratégica; b) Diretor do Departamento de Habitação e Meio Ambiente; c) Diretor do Departamento de Desenvolvimento Urbano e Rural; d) Chefe de Setor; e e) Supervisor de Setor;

1.10. Na Secretaria Municipal de Promoção Humana: a) Secretário Municipal de Promoção Humana; b) Diretor do Departamento de Assistência à Criança e ao Adolescente; c) Diretor do Departamento de Programas Assistenciais; d) Chefe de Setor; e) Supervisor de Setor; f) Encarregado do Serviço de Merenda; e g) Encarregado do Serviço Social;

1.11. Na Secretaria Municipal da Saúde: a) Secretário Municipal de Saúde; b) Diretor do Departamento de Atendimento à Saúde; c) Diretor do Departamento de Assistência à Programas de Saúde; d) Coordenador de Plantão Médico; e) Chefe de Setor; f) Superintendente de Enfermagem; g) Superintendente de Farmácia; h) Supervisor de Setor; e i) Encarregado do Serviço de Saúde.

2. A Lei Complementar nº 14, de 16 de novembro de 1995, “cria a gratificação de atividade médica e dá outras providências” (fls. 847/849), instituiu os seguintes cargos de provimento em comissão: a) Coordenador de Plantão – 20h; b) Coordenador de Plantão – 10h; e c) Coordenador de Ambulatório;

3. A Lei Complementar nº 33, de 29 de janeiro de 1998, “dispõe sobre o plano de carreira e remuneração do magistério” (fls. 1131/1160), instituiu os seguintes cargos de provimento em comissão: a) Diretor de Escola; e b) Supervisor de Ensino;

4. A Lei Complementar nº 34, de 29 de janeiro de 1998, “cria cargos no Quadro de Funcionários da Prefeitura e dá outras providências” (fls. 1039/1041), instituiu os seguintes cargos de provimento em comissão:

4.1.     25 (vinte e cinco) cargos de Professor Substituto de Educação Infantil, nível I (art. 1º, inc. II);

4.2.     25 (vinte e cinco) cargos de Professor Substituto de Ensino Fundamental, I Ciclo, nível I ou nível II (art. 1º, inc. V);

4.3.     10 (dez) cargos de Professor Substituto de Ensino Complementar (art. 1º, inc. V, b);

4.4.     5 (cinco) cargos de Vice-Diretor de Escola (art. 1º, inc. VII);

4.5.     5 (cinco) cargos de Orientador Educacional (art. 1º, inc. VIII); e

4.6.     5 (cinco) cargos de Coordenador Educacional (art. 1º, inc. IX).

5. A Lei Complementar nº 40, de 20 de julho de 1999, que “altera disposições da Lei Complementar nº 33/98, de 29 de janeiro de 1998, e cria cargos de Supervisor de Ensino, professor especialista de língua estrangeira e dá outras providências” (fls. 856/859) criou o seguinte cargo de provimento em comissão: Supervisor de Ensino;

6. A Lei Complementar nº 51, de 28 de fevereiro de 2003, “cria a Secretaria Municipal de Habitação e altera a Lei Complementar nº 10, de 26 de abril de 1995, e dá outras providências” (fls. 1053/1059). De acordo com essa lei, ficam criados ou mantidos os seguintes cargos de provimento em comissão:

6.1.     Na Secretaria Municipal de Planejamento, Desenvolvimento e Gestão Estratégica: a) Secretário Municipal de Planejamento, Desenvolvimento e Gestão Estratégica; b) Diretor do Departamento de Meio Ambiente; c) Diretor do Departamento de Desenvolvimento Urbano e Rural; d) Chefe de Setor; e e) Supervisor de Setor;

6.2.     Na Secretaria Municipal de Habitação: a) Secretário Municipal de Habitação; b) Diretor do Departamento de Habitação; e c) Supervisor de Setor.

7. A Lei Complementar nº 53, de 23 de outubro de 2003, “cria a Secretaria Municipal de Cultura e altera a Lei Complementar nº 10, de 26 de abril de 1995, e dá outras providências” (fls. 1060/1067). De acordo com essa lei, ficam criados ou mantidos os seguintes cargos de provimento em comissão:

7.1.     Na Secretaria Municipal de Educação: a) Secretário Municipal de Educação; b) Diretor do Departamento de Orientação e Formação; c) Diretor do Departamento de Educação Infantil; d) Diretor do Departamento de Educação Complementar; e) Chefe de Setor; f) Supervisor de Setor; g) Assistente de EMEI; e h) Encarregado do Serviço Educacional;

7.2.     Na Secretaria Municipal de Cultura: a) Secretário Municipal de Cultura; b) Diretor do Departamento de Cultura; e c) Supervisor de Setor;

8. A Lei Complementar nº 56, de 11 de fevereiro de 2004, “altera a Lei Complementar nº 10, de 26 de abril de 1995, cria a Guarda Civil Municipal de Araçariguama e dá outras providências” (fls. 1068/1072). Essa lei cria os seguintes cargos de provimento em comissão: a) Comandante; b) Subcomandante; e c) Inspetor.

9. A Lei Complementar nº 58, de 13 de maio de 2004, “cria a Secretaria Municipal de Indústria, Comércio e Abastecimento e altera a Lei Complementar nº 10, de 26 de abril de 1995, e dá outras providências (fls. 1073/1077). Essa lei criou os seguintes cargos de provimento em comissão: a) Secretário Municipal de Indústria, Comércio e Abastecimento; b) Diretor de Departamento; e c) Supervisor de Setor.

10. A Lei Complementar nº 64, de 23 de maio de 2005, “extingue cargos da Lei Complementar nº 10, de 26 de abril de 1995, e da Lei Complementar nº 34, de 29 de janeiro de 2008; cria e altera cargos nos Anexos II, III, IV, V e XII, da Lei Complementar nº 10, de 26 de abril de 1995 e dá outras providências” (fls. 1078/1082). Pela lei foram instituídos os seguintes cargos de provimento em comissão:

10.1. Na Secretaria Municipal de Administração: a) Encarregado de Grupo de Trabalho;

10.2. Na Secretaria Municipal de Saúde: a) Encarregado de Grupo de Trabalho;

10.3. Na Secretaria Municipal de Educação: a) Encarregado de Grupo de Trabalho;

10.4. Na Secretaria Municipal de Cultura: a) Encarregado de Grupo de Trabalho; e

10.5. Na Secretaria Municipal de Governo: a) Encarregado de Grupo de Trabalho;

11. A Lei Complementar nº 65, de 18 de agosto de 2005, que “extingue, cria e mantém cargos da Lei Complementar nº 14, de 16 de novembro de 1995, alterando os Anexos II, III e XII da Lei Complementar nº 10, de 26 de abril de 1995, e dá outras providências” (fls. 884/889) criou e manteve os seguintes cargos de provimento em comissão: a) Médico Plantonista 12h; b) Coordenador de Plantão 20h; e c) Coordenador de Ambulatório;

12. A Lei Complementar nº 66, de 3 de novembro de 2005, “institui o Departamento Municipal de Transporte e Trânsito – DEMUTTRANS – na Organização Administrativa da Prefeutura Municipal de Araçariguama, instituída pela Lei Complementar Municipal nº 10, de 26 de abril de 1995; e institui a Junta Administrativa de Recursos de Infrações – JARI e dá outras providências (fls. 1083/1097). Foram criados os seguintes cargos de provimento em comissão: a) Diretor Municipal de Transportes e Trânsito; b) Chefe do Setor de Transportes Públicos; e c) Chefe do Setor de Educação, Engenharia, Planejamento, Controle de Dados Estatísticos, Operação e Fiscalização de Trânsito.

Ocorre que aos cargos destacados em negrito, instituídos pelas leis impugnadas, não correspondem funções de direção, chefia e assessoramento. São lotações que não se situam na administração superior, nem demandam a estrita confiança, cujas missões devem ser realizadas por servidores de carreira, até mesmo para não haver solução de continuidade por sucessão de administradores.

A previsão normativa desses cargos de provimento em comissão não condiz com o artigo 37, incisos II e V, da Constituição Federal ou com o artigo 115, incisos II e V, da Constituição Estadual.

É o que será demonstrado a seguir.

 

II – DO DIREITO

A Constituição em vigor consagrou o Município como entidade federativa indispensável ao nosso sistema federativo, integrando-o na organização político-administrativa e garantindo-lhe plena autonomia, como se observa da análise dos arts. 1.º, 18, 29, 30 e 34, VI, “c” da CF (cf. Alexandre de Moraes, “Direito Constitucional”, São Paulo: Atlas, 7.ª ed., p. 261).

A autonomia concedida aos Municípios não tem caráter absoluto e soberano. Pelo contrário, encontra limites nos princípios emanados dos poderes públicos e dos pactos fundamentais, que instituíram a soberania de um povo (cf. De Plácido e Silva, “Vocabulário Jurídico”, Rio de Janeiro: Forense, v. I, 1984, p. 251), sendo definida por José Afonso da Silva como “a capacidade ou poder de gerir os próprios negócios, dentro de um círculo prefixado por entidade superior”, que no caso é a Constituição (Curso de Direito Constitucional Positivo, 8ª. ed., São Paulo: Malheiros, 1992, p. 545).

A autonomia municipal se assenta em quatro capacidades básicas: (a) auto-organização, mediante a elaboração de lei orgânica própria, (b) autogoverno, pela eletividade do Prefeito e dos Vereadores as respectivas Câmaras Municipais, (c) autolegislação, mediante competência de elaboração de leis municipais sobre áreas que são reservadas à sua competência exclusiva e suplementar, (d) auto-administração ou administração própria, para manter e prestar os serviços de interesse local (cf. José Afonso da Silva, ob. cit., p. 546).

Nessas quatro capacidades, encontram-se caracterizadas a autonomia política (capacidades de auto-organização e autogoverno), a autonomia normativa (capacidade de fazer leis próprias sobre matéria de sua competência), a autonomia administrativa (administração própria e organização dos serviços locais) e a autonomia financeira (capacidade de decretação de seus tributos e aplicação de suas rendas, que é uma característica da auto-administração) (ob. e loc. cits).

Assim, por força da autonomia administrativa de que foram dotadas, as entidades municipais são livres para organizar os seus próprios serviços, segundo suas conveniências locais. E, na organização desses serviços públicos, a Administração cria cargos e funções, institui classes e carreiras, faz provimentos e lotações, estabelece vencimentos e vantagens e delimita os deveres e direitos de seus servidores (cf. Hely Lopes Meirelles, Direito Municipal Brasileiro, 8ª. ed., São Paulo: Malheiros, 1996, p. 420).

Contudo, a liberdade conferida aos Municípios para organizar os seus próprios serviços não é ampla e ilimitada; ela se subordina às seguintes regras fundamentais e impostergáveis: (a) a que exige que essa organização se faça por lei; (b) a que prevê a competência exclusiva da entidade ou Poder interessado; e (c) a que impõe a observância das normas constitucionais federais pertinentes ao servidor público (ob. e loc. cits.)

No caso em exame, o Legislador Municipal criou cargos e empregos de provimento em comissão para o exercício de funções estritamente técnicas ou profissionais, próprias dos cargos de provimento efetivo. São funções que denotam a natureza profissional do vínculo entre seus agentes e a Administração Pública e que, por essa razão, só poderiam ser preenchidas por concurso público.

Segundo Ruy Cirne Lima (Princípios de Direito Administrativo, RT, 6.ª ed., p. 162), o funcionário público profissional se peculiariza por quatro característicos básicos, a saber: (a) natureza técnica ou prática do serviço prestado; (b) retribuição de cunho profissional; (c) vinculação jurídica à Administração Direta; (d) caráter permanente dessa vinculação.

Desse modo, nitidamente diferenciado dos cargos que reclamam provimento em comissão, as funções profissionais devem ser exercidas em caráter permanente, ou seja, pelo quadro estável de servidores públicos municipais, os quais, em conformidade com o disposto no art. 115, inciso II, da Constituição do Estado de São Paulo, só podem ser arregimentados por concurso público de provas ou de provas e títulos.

Na verdade, o cargo em comissão destina-se apenas às atribuições de “direção, chefia e assessoramento” (CF., art. 37, inciso V, com a redação dada pela EC n.º 19/98) e tem por finalidade propiciar ao governante o controle das diretrizes políticas traçadas. Exige, portanto, das pessoas indicadas a titularizá-los, absoluta fidelidade à orientação fixada pela autoridade nomeante. Em outras palavras, o cargo de provimento em comissão está diretamente ligado ao dever de lealdade à linha fixada pelo agente político superior.

Daí porque a exceção contida na parte final do inciso II, do artigo 115, da Constituição do Estado de São Paulo - “ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração” -, que, no ponto, reproduz a dicção do artigo 37, inciso II, da Constituição da República, tem alcance limitado a situações excepcionais, relativas aos cargos cuja natureza especial justifique a dispensa de concurso público.

Torna-se evidente, portanto, que a limitação apontada não tem caráter puramente formal, de simples e incriteriosa indicação legal de cargos de provimento em comissão, que pudesse afastar o princípio constitucional da igual acessibilidade aos cargos públicos.

Bem a propósito, ao estudar com profundidade esse assunto, Márcio Cammarosano deixou anotado que o princípio democrático implica no princípio da igualdade “e este no princípio da igual acessibilidade dos cargos públicos, com o que se resguarda também o princípio da probidade administrativa” (Provimento de Cargos Públicos no Direito Brasileiro, São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 45).

Assim, para que a lei criadora de um cargo em comissão não venha a se constituir em burla ao princípio constitucional arrolado, enunciado expressamente pelo artigo 37, incisos I e II, da Constituição da República, deverá observar criteriosamente a natureza das funções a serem desempenhadas, pois, no dizer de Celso Antonio Bandeira de Mello (O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, Editora Revista dos Tribunais, 1.ª edição, pág. 49), “impende que exista uma adequação racional entre o tratamento diferençado construído e a razão diferencial que lhe serviu de supedâneo”.

Afinado a esse mesmo entendimento, Hely Lopes Meirelles (Direito Administrativo Brasileiro, 18ª. ed, São Paulo: Malheiros, p. 378) adverte sobre pronunciamento do Supremo Tribunal Federal no sentido de que “a criação de cargo em comissão em moldes artificiais e não condizentes com as praxes de nosso ordenamento jurídico e administrativo, só pode ser encarada como inaceitável esvaziamento da exigência constitucional de concurso”.

E, da mesma forma, já decidiu o Pretório Excelso que “a exigência constitucional do concurso público não pode ser contornada pela criação arbitrária de cargos em comissão para o exercício de funções que não pressuponham o vínculo de confiança que explica o regime de livre nomeação e exoneração que os caracteriza.” (STF, RTJ 156/793)

Na esteira desse raciocínio, é inescusável que a parte final do inciso II do art. 115 da Constituição do Estado de São Paulo, tem alcance circunscrito a situações em que o requisito da confiança seja predicado indispensável ao exercício do cargo. De fato, como se trata de uma exceção à regra do concurso público, a criação de cargos em comissão pressupõe o atendimento do interesse público e só se justifica para o exercício de funções de “direção, chefia e assessoramento”, em que seja necessário o estabelecimento de vínculo de confiança entre a autoridade nomeante e o servidor nomeado. Fora desses parâmetros, é inconstitucional qualquer tentativa de criação de cargos dessa natureza.

É incontestável que os cargos abaixo relacionados, cuja validade jurídico-constitucional ora se examina, não se apresentam como cargos ou funções da administração superior, ou mesmo de “direção, chefia e assessoramento”, que exijam relação de confiança ou especial fidelidade às diretrizes traçadas pela autoridade nomeante, mas sim de cargos comuns, de natureza profissional, que devem ser assumidos em caráter permanente por servidores aprovados em concurso.

Em recente julgado (ADIN n° 157 951-0/0. Rel. Des. Sousa Lima. j. 25.6.2008), aliás, esse E. Tribunal de Justiça declarou a inconstitucionalidade de dispositivos de lei municipal que instituiu os seguintes cargos de provimento em comissão, alguns dos quais análogos e/ou com denominações equivalentes aos impugnados, a saber: 1) Assistente Administrativo Escolar; 2) Diretor de Escola; 3) Supervisor de Ensino Fundamental; 4) Agente Municipal de Crédito; 5) Assistente Administrativo Escolar; 6) Chefe de Serviços de Acervo Histórico e Difusão Cultural; 7) Chefe de Serviços de Cadastro Único; 8) Chefe de Serviços de Comunicação; 9) Chefe de Serviços de Esportes Comunitários e de Rendimento; 10) Chefe de Serviços de Fiscalização de Tributos e Posturas; 11) Chefe de Serviços de Turismo; 12) Chefe de Serviços de Gerenciamento da Patrulha Agrícola; 13) Administrador do Ginásio de Esportes; 14) Administrador do Centro de Convivência; 15) Coordenador Geral de Creches; 16) Coordenador Médico; 17) Coordenador Odontológico; 18) Agente Administrativo Financeiro; 19) Agente Administrativo de Recursos Humanos; 20) Supervisor de Saneamento; 21) Assessor Administrativo; 22) Diretor Técnico do Centro de Reabilitação; 23) Assessor Administrativo da Guarda Municipal; 24) Assessor Pedagógico; e 25) Assessor de Diretor.

Na atual formação desse Sodalício, tem-se exigido também que a lei descreva as atribuições de cada um dos cargos, para que seja possível ao Judiciário sindicar se foram criados, efetivamente, para as situações permitidas:

Ação direta de inconstitucionalidade – Lei Complementar n° 1.800, de 8 de março de 2005 – Criação de cargos de provimento em comissão, destinados, muitos deles, a funções burocráticas ou técnicas de caráter permanente - Inadmissibilidade - Dispositivo, ademais, que deixou de descrever as atribuições e responsabilidades de cada um dos cargos, impossibilitando a verificação de que foram criados exclusivamente para os casos constitucionalmente permitidos (direção, chefia e assessoramento) – Violação dos artigos 5°, § 1º, 111, 115, I e II e 144 da Constituição do Estado de São Paulo - Ação procedente (ADIN nº 152.958-0/6, j. 4/03/2009, rel. Des. Debatin Cardoso, g.n.).

Desse último julgado, aliás, extrai-se preciosa lição:

... o dispositivo deixou de descrever as atribuições e responsabilidades de cada um dos cargos criados, necessários para que se possa analisar e concluir que foram criados exclusivamente para os casos constitucionalmente permitidos.

Não basta denominar os cargos como sendo de diretor, chefe ou assessor para que se abra uma exceção à regra do concurso público e se justifique seu provimento em comissão, pois o que importa não é o rótulo, mas a substância deles, fazendo-se necessário examinar as atribuições a serem exercidas por seus titulares e tais atribuições devem estar definidas na lei.

Aliás, Márcio Cammarosano, em artigo intitulado CARGOS EM COMISSÃO - BREVES CONSIDERAÇÕES QUANTO AOS LIMITES À SUA CRIAÇÃO (http://www.sertoledo.org.br/limites.html - pesquisado em 18.06.08) ensina que: "... ofende a ordem jurídica em vigor criar cargos em comissão que não consubstanciem competências de direção, chefia e assessoramento, ainda que a denominação que lhes atribua seja própria de cargos daquela espécie, pois o que importa não é o rótulo, mas a substância de cada qual. Em outras palavras: denominar cargos públicos como sendo de diretor, chefia ou assessor não lhes atribui, por si só, a natureza que os permita ser de provimento em comissão. Faz-se necessário examinar as atribuições a serem exercidas por seus titulares, pois cargos públicos consubstanciam, como já assinalado, plexos de competências. Se estas não forem de direção, chefia ou assessoramento, haverá descompasso entre a denominação e as atribuições inerentes ao mesmo, entre o rótulo e a substância. Estar-se-á diante de expediente artificioso, mal disfarçada burla à exigência constitucional de concurso; de concurso público se devessem, em rigor, ter sido criados como cargos isolados ou iniciais de determinada carreira; de concurso interno se devessem ter sido criados como de classe intermediária ou final de carreira ".

Para finalizar, lembra-se que o Órgão Especial desse Egrégio Tribunal de Justiça entende ser possível declarar a inconstitucionalidade material de expressões de lei criadora de cargos em comissão (ADIN n.º 11.939-0, relator Des. OLIVEIRA COSTA), cuja natureza não correspondia às características próprias dessas funções, daí porque, também aqui se impõe declarar a insubsistência dos seguintes cargos previstos nas leis impugnadas (aqui transcritos em ordem alfabética), por serem incompatíveis com os arts. 111; 115, incisos I, II e V e 144, da Constituição do Estado de São Paulo, a saber: 1) Assessor da Diretoria Contábil; 2) Assessor de Agricultura e Abastecimento; 3) Assessor de Planejamento e Meio Ambiente; 4) Assessor de Programação de Computador; 5) Assessor Jurídico; 6) Assistente de EMEI; 7) Assistente de Fiscalização do Exercício de Atividades; 8) Assistente de Fiscalização Tributária; 9) Chefe de Setor; 10) Chefe do Setor de Educação, Engenharia, Planejamento, Controle de Dados Estatísticos, Operação e Fiscalização de Trânsito; 11) Chefe do Setor de Transportes Públicos; 12) Coordenador de Ambulatório; 13) Coordenador de Plantão – 10h; 14) Coordenador de Plantão – 20h; 15) Coordenador de Plantão Médico; 16) Coordenador Educacional; 17) Diretor de Escola; 18) Encarregado de Grupo de Trabalho; 19) Encarregado de Serviço de Atendimento; 20) Encarregado do Serviço de Merenda; 21) Encarregado do Serviço de Saúde; 22) Encarregado do Serviço Educacional; 23) Encarregado do Serviço Social; 24) Inspetor; 25) Líder de Equipe; 26) Médico Plantonista 12h; 27) Orientador Educacional; 28) Professor Substituto de Educação Infantil, nível I; 29) Professor Substituto de Ensino Complementar; 30) Professor Substituto de Ensino Fundamental, I Ciclo, nível I ou nível II; 31) Subcomandante; 32) Superintendente de Enfermagem; 33) Superintendente de Farmácia; 34) Supervisor de Ensino; 35) Supervisor de Setor; e 36)Vice-Diretor de Escola.

 

III – CONCLUSÃO

Por todo o exposto, evidencia-se a necessidade de reconhecimento da inconstitucionalidade das normas aqui apontadas.

Assim, aguarda-se o recebimento e processamento da presente Ação Declaratória, para que ao final seja julgada procedente, reconhecendo-se a inconstitucionalidade parcial das Leis Complementares nº 10/95; 14/95; 33/98; 34/98; 40/99; 51/03; 53/03; 56/04; 58/04; 64/05; 65/05; e 66/05, do Município de Araçariguama, nas partes em que foram previstos os cargos de provimento em comissão destacados, bem assim de todos os anteriores atos normativos que contenham as mesmas previsões, para se evitar o efeito repristinatório.

Requer-se ainda sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Prefeito Municipal, bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para se manifestar sobre os atos normativos impugnados.

Posteriormente, aguarda-se vista para fins de manifestação final.

 

São Paulo, 21 de agosto de 2009.

 

                        Fernando Grella Vieira

                        Procurador-Geral de Justiça

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Protocolado nº 52.694/09

Interessado:  Promotoria de Justiça de São Roque

Assunto: Inconstitucionalidade parcial das Leis Complementares nº 10/95; 14/95; 33/98; 34/98; 40/99; 51/03; 53/03; 56/04; 58/04; 64/05; 65/05; e 66/05, do Município de Araçariguama

 

 

 

 

 

1.     Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade, em face, parcialmente, das Leis Complementares nº 10/95; 14/95; 33/98; 34/98; 40/99; 51/03; 53/03; 56/04; 58/04; 64/05; 65/05; e 66/05, do Município de Araçariguama, junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

2.     Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.

 

                   São Paulo, 21 de agosto de 2009.

 

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

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