Excelentíssimo Senhor Doutor Desembargador Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

 

 

Protocolado n. 54.996/09

Assunto: Inconstitucionalidade do art. 79 e §§ da Lei Complementar n. 01, de 01 de fevereiro de 1993, na redação dada pela Lei Complementar n. 203, de 19 de fevereiro de 2010 e em sua redação original, do Município de Ilha Solteira

 

 

Ementa: Constitucional e Administrativo. Art. 79, Lei Complementar n. 01/93, na redação dada pela Lei Complementar n. 203/10. Servidor público. Vantagem pecuniária (gratificação por regime especial de trabalho). Inconstitucionalidade (legalidade. moralidade, impessoalidade, interesse público e necessidade do serviço). 1. É inconstitucional lei local que outorga gratificação por regime especial de trabalho (além da jornada de trabalho) baseada na exclusiva vontade do servidor público, desassociada da especial natureza do serviço exigente de maior grau de disponibilidade do servidor público e que também não constitui retribuição por serviço comum prestado em condições anormais ou gerador de despesas extraordinárias ao servidor público, pois, apesar de não se cumular, concorre com adicional de serviços extraordinários ou gratificação de representação de gabinete. 2. Norma que subtrai o poder decisório da Administração Pública e confere indiscriminado aumento indireto e dissimulado da remuneração, estando alheada aos parâmetros de razoabilidade, interesse público e necessidade do serviço que devem presidir a concessão de vantagens pecuniárias aos servidores públicos como retribuição ou compensação propter laborem ou ex facto officii. 3. Se na redação primitiva a regra não indicava a natureza especial da função, a redação vigente não sanou o vício ao indicar situação que não ostenta esse predicado. 4. Serviços prestados além da jornada de trabalho devem ser remunerados pelo adicional correspondente previsto na lei. 5. Cotejo com gratificação por representação de gabinete a revelar que a gratificação por regime especial de trabalho permite na prática a difusão indistinta de status similar ao do encargo de disponibilidade que anima aquela a todos os servidores públicos, à margem da natureza especial da função ou da prestação do serviço comum em condições extraordinárias. 6. Deturpação da natureza contingente de gratificação propter laborem, que deve ser sempre pro labore faciendo, transformada em vantagem pecuniária pro labore facto por sua natureza antecipatória, e não compensatória. 7. Fixação do quantum da gratificação, constante da redação original da norma, cujo percentual era livre e subjetivamente escolhido em ato administrativo individual determinante do regime de trabalho, possibilitando escolha aleatória, subjetiva, pessoal e diferenciada dos percentuais de gratificação, agravada com ofensa à legalidade, à moralidade, à impessoalidade e ao interesse público, a inspirar arrastamento para evitar repristinação nociva, corolário da declaração de inconstitucionalidade. 8. Constituição Estadual: arts. 19, caput, III, 24, § 2º, 1, 111 e 128. 9. Inconstitucionalidade do caput e do § 3º do art. 79 da LC 01/93 e, por dependência, de seus §§ 1º, 2º e 4º, na redação dada pela LC 203/10, e, por arrastamento, do caput e dos §§ 1º e 2º na redação original.

 

     

         

          O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, VI, da Lei Complementar Estadual n. 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo), em conformidade com o disposto no art.125, § 2º, e art. 129, IV, da Constituição Federal, e ainda art. 74, VI, e art. 90, III, da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado, vem, respeitosamente, perante esse Egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE em face do art. 79 e §§ da Lei Complementar n. 01, de 01 de fevereiro de 1993, do Município de Ilha Solteira, pelos fundamentos a seguir expostos:

I – O Ato Normativo Impugnado

1.                 A Lei Complementar n. 01, de 01 de fevereiro de 1993, na redação dada pelo art. 1º da Lei Complementar n. 203, de 19 de fevereiro de 2010, do Município de Ilha Solteira, dispõe sobre a gratificação por regime especial de trabalho, nos seguintes termos:

“Art. 79. A gratificação por regime especial de trabalho será concedida ao servidor que durante o desempenho de suas funções necessite estender sua jornada mensal de trabalho por no mínimo 30% (trinta por cento), ficando ainda à disposição do serviço público, se convocado a trabalhar a qualquer momento.

§ 1º. O servidor cuja atividade corresponder ao descrito no ‘caput’ deste artigo fará jus à gratificação equivalente a 50% (cinqüenta por cento) de seus vencimentos.

§ 2º. O controle das sobrejornadas de trabalho do servidor gratificado nos termos deste artigo será realizado pelo Setor de Recursos Humanos da Prefeitura.

§ 3º. O servidor que receber a gratificação mencionada e não cumprir os requisitos desta Lei perderá automaticamente o benefício.

§ 4º. O recebimento da gratificação de que trata este artigo exclui o direito ao recebimento do adicional de serviços extraordinários, assim como também da gratificação de função por chefia, assessoria e direção” (fl. 204).

2.                 A redação do art. 79 destacado resultou do Projeto de Lei n. 43/2009, de iniciativa do Chefe do Poder Executivo, apresentado em 23 de dezembro de 2009 (fls. 225/237).

3.                 Conveniente o registro histórico do processo legislativo. O Prefeito do Município apresentou o Projeto de Lei n. 25/2009, em 09 de outubro de 2009, que revogava o art. 79 da Lei Complementar n. 01/93, face à perspectiva de declaração judicial de sua inconstitucionalidade (fls. 209/210). A propositura, no entanto, foi retirada a seu pedido em 14 de outubro de 2009 (fl. 212).  

4.                 Nova proposta (Projeto de Lei n. 28/2009) no mesmo sentido foi apresentada em 19 de outubro de 2009 (fls. 213/214), mas, a Câmara de Vereadores a rejeitou, em primeiro turno (fl. 223), motivando novo pedido de retirada em 21 de dezembro de 2009 (fl. 224).

5.                 Anteriormente à edição da Lei Complementar n. 203, de 19 de fevereiro de 2010, assim dispunha o art. 79 da Lei Complementar n. 01, de 01 de fevereiro de 1993:

“Art. 79. A gratificação por regime especial de trabalho será devida ao servidor que, por determinação da autoridade, concordar em permanecer todo o tempo à disposição do serviço público podendo, neste caso, ser convocado a trabalhar a qualquer momento, durante as 24 (vinte e quatro) horas do dia.

§ 1º. O percentual da gratificação será estabelecido no ato que determinar o regime de trabalho e não será superior a 50% (cinqüenta por cento) do vencimento do servidor.

§ 2º. O recebimento de gratificação por regime especial de trabalho exclui o direito ao percebimento do adicional por serviços extraordinários” (fls. 129/130).

6.                 Porém, tanto a redação original do art. 79 da Lei Complementar n. 01/93, quanto a que foi dada pela Lei Complementar n. 203/10, padecem de inconstitucionalidade como será demonstrado.

II – O parâmetro da fiscalização abstrata de constitucionalidade

4.                 O art. 79 da Lei Complementar n. 01/93, do Município de Ilha Solteira, quer em sua redação original, quer na que foi dada pela Lei Complementar n. 203/10, contraria frontalmente a Constituição do Estado de São Paulo, a qual está subordinada a produção normativa municipal por força dos seguintes preceitos (ante a previsão dos arts. 1º, 18, 29 e 31 da Constituição Federal):

“Art. 144. Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.

(...)

Art. 297. São também aplicáveis no Estado, no que couber, os artigos das Emendas à Constituição Federal que não integram o corpo do texto constitucional, bem como as alterações efetuadas no texto da Constituição Federal que causem implicações no âmbito estadual, ainda que não contempladas expressamente pela Constituição do Estado”.

5.                 Na espécie, a incompatibilidade vertical da lei local com a Constituição do Estado de São Paulo se manifesta pelo contraste direto com a seguinte disposição constitucional estadual:

“Art. 19. Compete à Assembléia Legislativa, com sanção do Governador, dispor sobre todas as matérias de competência do Estado, ressalvadas as especificadas no art. 20, e especialmente sobre:

(...)

Art. 24. (...)

§ 2º. Compete, exclusivamente, ao Governador do Estado a iniciativa das leis que disponham sobre:

1 – criação e extinção de cargos, funções e empregos públicos na administração direta e autárquica, bem como a fixação da respectiva remuneração;

(...)

Art. 111. A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência.

(...)

Art. 128. As vantagens de qualquer natureza só poderão ser instituídas por lei e quando atendam efetivamente ao interesse público e às exigências do serviço”.

6.                 Lembre-se que, antes do advento da Emenda Constitucional n. 21, de 14 de fevereiro de 2006, dispunha a Constituição Estadual:

“Art. 19. Compete à Assembléia Legislativa, com sanção do Governador, dispor sobre todas as matérias de competência do Estado, ressalvadas as especificadas no art. 20, e especialmente sobre:

(...)

III – criação e extinção de cargos públicos e fixação de vencimentos e vantagens”.

7.                 As vantagens pecuniárias são acréscimos permanentes ou efêmeros ao vencimento dos servidores públicos, compreendendo adicionais e gratificações.

8.                 Enquanto o adicional significa recompensa ao tempo de serviço (ex facto temporis) ou retribuição pelo desempenho de atribuições especiais ou condições inerentes ao cargo (ex facto officii), a gratificação constitui recompensa pelo desempenho de serviços comuns em condições anormais ou adversas (condições diferenciadas do desempenho da atividade – propter laborem) ou retribuição em face de condições pessoais ou situações onerosas do servidor (propter personam) [Hely Lopes Meirelles. Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 2001, 26ª ed., p. 449; Diógenes Gasparini. Direito Administrativo, São Paulo: Saraiva, 2008, 13ª ed., p. 233; Marçal Justen Filho. Curso de Direito Administrativo, São Paulo: Saraiva, 2008, 3ª ed., p. 760].

9.                 Se tradicional ensinança assinala que “o que caracteriza o adicional e o distingue da gratificação é o ser aquele uma recompensa ao tempo do serviço do servidor, ou uma retribuição pelo desempenho de funções especiais que refogem da rotina burocrática, e esta, uma compensação por serviços comuns executados em condições anormais para o servidor, ou uma ajuda pessoal em face de certas situações que agravam o orçamento do servidor” (Hely Lopes Meirelles. Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 2001, 26ª ed., p. 452), agrega-se a partir de uma distinção mais aprofundada que “a gratificação é uma vantagem relacionada a circunstâncias subjetivas do servidor, enquanto o adicional se vincula a circunstâncias objetivas. (...) dois servidores que desempenhem um mesmo cargo farão jus a adicionais idênticos. Já as gratificações serão a eles concedidas em vista das características individuais de cada um. No entanto, é evidente que tais gratificações se sujeitam ao princípio da isonomia, de modo a que dois servidores que apresentem idênticas circunstâncias objetivas farão jus a benefícios iguais” (Marçal Justen Filho. Curso de Direito Administrativo, São Paulo: Saraiva, 2008, 3ª ed., p. 761).

10.               Ou seja, os adicionais são compensatórios dos encargos decorrentes de funções especiais apartadas da atividade administrativa ordinária e as gratificações dos riscos ou ônus de serviços comuns realizados em condições extraordinárias. Com efeito, “se o adicional de função (ex facto officii) tem em mira a retribuição de uma função especial exercida em condições comuns, a gratificação de serviço (propter laborem) colima a retribuição do serviço comum prestado em condições especiais” (Wallace Paiva Martins Junior. Remuneração dos agentes públicos, São Paulo: Saraiva, 2009, p. 85).  

11.               Ademais, oportuno admoestar que “as vantagens pecuniárias, sejam adicionais, sejam gratificações, não são meios para majorar a remuneração dos servidores, nem são meras liberalidades da Administração Pública. São acréscimos remuneratórios que se justificam nos fatos e situações de interesse da Administração Pública” (Diógenes Gasparini. Direito Administrativo, São Paulo: Saraiva, 2008, 13ª ed., p. 233).   

12.               Os adicionais são devidos em razão do tempo de serviço (adicionais de vencimento ou por tempo de serviço) ou do exercício de cargo (condições inerentes ao cargo) que exige conhecimentos especializados ou regime especial de trabalho (adicionais de função) como melhora de retribuição. O adicional de função (ex facto officii) repousa no trabalho que está sendo feito (pro labore faciendo), razão pela qual cessado seu motivo, elide-se o respectivo pagamento, e compreende as seguintes espécies: “de tempo integral (regime em que o servidor fica inteiramente à disposição da pessoa a que se liga e proibido de exercer qualquer outra atividade pública ou privada), de dedicação plena (regime em que o servidor desempenha suas atribuições exclusivamente à pessoa pública a que se vincula, sem estar impedido de desempenhar outras em entidade pública ou privada, diversas das que desempenha para a pessoa pública em regime de dedicação plena) e de nível universitário (desempenho de atribuições que exige um conhecimento especializado, só alcançado pelos detentores de títulos universitários)” (Diógenes Gasparini. Direito Administrativo, São Paulo: Saraiva, 2008, 13ª ed., pp. 230-231).

13.               A natureza do adicional de tempo integral é sedimentada na necessidade do desempenho mais eficiente de determinado cargo público, exigindo regime especial de trabalho em razão de serviço técnico ou científico a ser prestado (pro labore faciendo). Por isso, “a ampliação da jornada de trabalho entra, tão-somente, como pressuposto do regime, e não como causa da vantagem pecuniária, a qual assenta, precipuamente, na realização de certas atividades que exigem maior assistência do funcionário, que há de ficar integralmente à disposição da Administração, e somente dela”, exclusividade distintiva em relação ao adicional de dedicação plena, e, ademais, “não deve ser estendido, indistintamente, a cargos e funções de atividades burocráticas, porque isto importa desvirtuar o regime e anular sua finalidade, convertendo-o num simples meio de majoração de vencimento, quando seu objetivo institucional é o de aprimorar o trabalho técnico e incrementar a investigação técnica” (Hely Lopes Meirelles. Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 2001, 26ª ed., pp. 453-456).

14.               As gratificações são precária e contingentemente instituídas para o desempenho de serviços comuns em condições anormais de segurança, salubridade ou onerosidade (gratificações de serviço) ou a título de ajuda em face de certos encargos pessoais (gratificações pessoais). A gratificação de serviço é propter laborem e “é outorgada ao servidor a título de recompensa pelos ônus decorrentes do desempenho de serviços comuns em condições incomuns de segurança ou salubridade, ou concedida para compensar despesas extraordinárias realizadas no desempenho de serviços normais prestados em condições anormais” (Diógenes Gasparini. Direito Administrativo, São Paulo: Saraiva, 2008, 13ª ed., p. 232), albergando, por exemplo, situações como risco de vida ou saúde, serviços extraordinários (prestação fora da jornada de trabalho), local de exercício ou da prestação do serviço, razão do trabalho (bancas, comissões).

15.               É assaz relevante destacar que “o que caracteriza essa modalidade de gratificação é sua vinculação a um serviço comum, executado em condições excepcionais para o funcionário, ou a uma situação normal do serviço mas que acarreta despesas extraordinárias para o servidor”, razão pela qual “essas gratificações só devem ser percebidas enquanto o servidor está prestando o serviço que as enseja, porque são retribuições pecuniárias pro labore faciendo e propter laborem. Cessado o trabalho que lhes dá causa ou desaparecidos os motivos excepcionais e transitórios que as justificam, extingue-se a razão de seu pagamento” (Hely Lopes Meirelles. Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 2001, 26ª ed., pp. 457-458).

16.               Convém insistir que as vantagens pecuniárias podem ser, (como os adicionais por tempo de serviço) instituídas pelo trabalho já realizado (pro labore facto), mas, a regra é que as demais (adicionais de função, gratificações de serviço ou pessoais), sejam ex facto officii ou propter laborem tem em mira o trabalho que está sendo feito, ou seja, são pro labore faciendo, de auferimento condicionado à efetiva prestação do serviço nas condições estabelecidas pela Administração Pública (Hely Lopes Meirelles. Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 2001, 26ª ed., pp. 450-451, 453).

17.               Feito essa digressão, cumpre assinalar que a latere de a Lei Complementar n. 01/93 prever a gratificação por regime especial de trabalho contém tanto gratificação por representação de gabinete quanto adicional pela prestação de serviços extraordinários nos incisos V, VI e X do art. 69, assim regrados:

“Art. 78. A gratificação por representação de gabinete será devida ao servidor que prestar serviços junto ao Gabinete do Prefeito, do Presidente da Câmara ou do Dirigente Superior da autarquia ou fundação e ficar todo o tempo à disposição da autoridade ou dirigente, podendo ser convocado a trabalhar a qualquer momento, durante as 24 (vinte e quatro) horas do dia.

§ 1º. O percentual da gratificação por representação de gabinete será fixado por ato da autoridade competente de cada Poder ou do Dirigente superior da autarquia ou fundação e não será superior a 50% (cinqüenta por cento) do vencimento do servidor.

§ 2º. O recebimento da gratificação por representação de gabinete exclui o direito ao percebimento do adicional por serviços extraordinários.

(...)

Art. 87. Somente será permitido o serviço extraordinário para atender situações excepcionais e temporárias, respeitado o limite máximo de 2 (duas) horas diárias, podendo ser prorrogado por igual período, se o interesse público exigir.

§ 1º. O serviço extraordinário previsto neste artigo será precedido de autorização da chefia imediata que justificará o fato.

§ 2º. O serviço extraordinário realizado no horário previsto no art. 89 será acrescido, ainda, de percentual relativo ao serviço noturno, em função de cada hora extra.

Art. 88. O recebimento da gratificação de função de direção ou chefia, gratificação por representação de gabinete por regime por regime especial de trabalho ou, ainda, o exercício de cargo em comissão, exclui o direito ao adicional por serviços extraordinários”.    

18.               A cabeça do art. 79 expressa que a gratificação por regime especial de trabalho tem sua concessão subordinada a ato da vontade exclusiva do servidor público, condicionamento visível pela expressão “será concedida ao servidor que durante o desempenho de suas funções necessite estender sua jornada mensal de trabalho por no mínimo 30% (trinta por cento)”.

19.               Para o preceito normativo basta ao servidor público para perceber a vantagem pecuniária – que acresce em 50% (cinqüenta por cento) sua remuneração - a necessidade de extensão de, no mínimo, 30% (trinta) por cento da jornada mensal de trabalho.

20.               Ora, a norma em foco não se justifica porquanto não institui regime especial baseado na especial natureza do serviço exigente de maior grau de disponibilidade do servidor público nem constitui serviço comum prestado em condições anormais ou gerador de despesas extraordinárias ao servidor público.

21.               Ademais, a norma, à míngua de qualquer outro elemento objetivo calcado na necessidade do serviço e no interesse público, subordina a outorga da gratificação a um juízo pura e exclusivamente subjetivo do servidor público, subtraindo o poder decisório da Administração Pública e tendo a potencialidade de premiar a ineficiência e indiscriminadamente conferir aumento indireto e dissimulado da remuneração.

22.               Atenta, pois, à lógica, à racionalidade, à objetividade e ao senso comum, vetores amparados pelo princípio de razoabilidade e, mormente, ao interesse público e à necessidade do serviço que devem presidir a concessão de vantagens pecuniárias aos servidores públicos como retribuição ou compensação pela prestação de serviços comuns em situações especiais ou pela prestação de serviços de natureza extraordinária.

23.               Ora, se a gratificação por regime especial de trabalho é incompossível com o adicional de serviços extraordinários, referido no § 4º do art. 79 (§ 2º antes da redação dada pela Lei Complementar n. 203/10) e previsto nos arts. 87 e 88 da Lei Complementar n. 01/93, é evidente que a prestação de serviços comuns fora da jornada de trabalho deve ser recompensada pelo adicional construído nos arts. 87 e 88 da lei local, representando, portanto, desarrazoadamente, a gratificação por regime especial de trabalho subterfúgio para assegurar remuneração extraordinária além de situações excepcionais e temporárias, como exigido para o adicional (art. 87).

24.               Embora a lei declare a não-cumulação a existência da gratificação por regime especial de trabalho – que também não visa à remuneração pelo exercício de funções de assessoramento, chefia e direção (art. 78), que impõe dedicação integral – representa duplicidade de título jurídico para o pagamento da prestação de serviços comuns em situação anormal (para além da jornada de trabalho).

25.               Aliás, e com base na mesma argumentação, a falta de razoabilidade e o distanciamento com a necessidade do serviço e o interesse público se manifestam na previsão adicional da gratificação por regime especial de trabalho, reverberada pela fórmula “ficando ainda à disposição do serviço público, se convocado a trabalhar a qualquer momento”, constante do mesmo caput do art. 79.

26.               Isso já era perceptível na sua redação original que a outorgava “ao servidor que, por determinação da autoridade, concordar em permanecer todo o tempo à disposição do serviço público podendo, neste caso, ser convocado a trabalhar a qualquer momento, durante as 24 (vinte e quatro) horas do dia”.

27.               De fato, se na redação primitiva a regra não indicava a natureza especial da função, a redação vigente não sanou o vício ao indicar situação que não ostenta esse predicado. Acrescente-se que, quanto à redação originária da norma, a essência do regime unilateral e legal (estatutário) repele a sujeição de convocação ao trabalho à vontade do servidor público. De qualquer maneira, incorpora-se da análise do Tribunal de Contas do Estado que:

“(...) seria mais economicamente viável o pagamento pela execução de serviços extraordinários para atender a situações excepcionais e temporárias, do que a fixação de um preço pela disponibilidade diuturna do servidor” (fl. 81).

28.               Aliás, o cotejo do caput do art. 79, na redação primitiva e na vigente, com a gratificação por representação de gabinete (art. 78) revela que a gratificação por regime especial de trabalho permite na prática a difusão indistinta de status similar ao do encargo de disponibilidade que anima a gratificação por representação de gabinete a todos os servidores públicos, à margem da natureza especial da função ou da prestação do serviço comum em condições extraordinárias. Cuida-se, em suma, de vantagem pecuniária que não é propter laborem nem ex facto officii.

29.               Patente a violação dos arts. 111 e 128 da Constituição Estadual.

30.               Para agravar, o § 3º do art. 79 ofende, igualmente, a razoabilidade e o interesse público, constantes dos arts. 111 e 128 da Constituição do Estado.

31.               O preceito legal deturpa a natureza contingente da gratificação - cujo escopo é indenização dos ônus decorrente de serviço comum em situação anormal (propter laborem) – e que deve ser sempre pro labore faciendo, transformada em vantagem pecuniária pro labore facto, que independe do trabalho desenvolvido porque pressupõe o desempenho efetivo da função. A norma institui gratificação antecipatória, e não compensatória, tanto que subordina sua cessação ao descumprimento de seus requisitos após sua percepção.

32.               Não obstante o § 1º do art. 79 tenha prestigiado a legalidade, a redação original do preceito implicava sério gravame à reserva de lei para fixação da gratificação.

33.               A ofensa ao art. 19, III, da Constituição Estadual era patente, mercê da nova redação implantada pela Emenda n. 21/06 não eliminar, dado o caráter exemplificativo do caput do mesmo art. 19, a necessidade de lei. Ademais, não se verifica óbice à ação ao color de que “a alteração da Carta inviabiliza o controle concentrado de constitucionalidade de norma editada quando em vigor a redação primitiva” (STF, ADI-MC 3.833-DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, 19-12-2006, m.v., DJe 13-11-2008) porquanto só se julga “prejudicada a ação direta quando, de emenda superveniente à sua propositura, resultou inovação substancial da norma constitucional que — invocada ou não pelo requerente — compunha necessariamente o parâmetro de aferição da inconstitucionalidade do ato normativo questionado” (STF, ADI 2.112-MC, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 15-05-2002, DJ 18-05-2001).

34.               De qualquer maneira, a violação da reserva legal para fixação da gratificação e de seu quantum se infere também do art. 128 da Constituição Estadual. Pois, segundo disposto na lei local seu valor não seria superior a 50% (cinqüenta por cento) do vencimento do servidor público – o que era um limite -, mas, o percentual respectivo era livre e subjetivamente escolhido no ato administrativo individual determinante do regime de trabalho. Em outras palavras, há possibilidade de escolha aleatória, subjetiva, pessoal e diferenciada dos percentuais de gratificação.

35.               Isso possibilitava ao administrador público arbitrariamente conceder percentuais diferentes a cada servidor público, segundo critérios subjetivos e secretos, o que, para além de violação à reserva de lei expressa nos arts. 19, caput e III, 24, § 2º, 1, e 128, da Constituição Estadual, caracteriza ofensa aos princípios de moralidade e impessoalidade, bem como à necessidade do serviço e ao interesse público, constantes dos arts. 111 e 128, da Constituição Estadual.

36.               Tal argumentação é imprescindível porque o corolário da declaração de inconstitucionalidade do art. 79 da Lei Complementar n. 01/93 na redação dada pela Lei Complementar n. 203/10 não é outro senão a integral nulidade do preceito legal que se esparge, por dependência, a todos os seus parágrafos - na medida em que o instituto da gratificação por regime especial de trabalho é completamente discrepante do ordenamento jurídico – e, de outra sorte, seu efeito será a repristinação da original redação do preceito legal que, como visto também agride a Constituição, situação que se deve evitar pela adoção da técnica do arrastamento.

37.                  A propósito do quanto exposto acima, conveniente a invocação à jurisprudência:

“O tema concernente à disciplina jurídica da remuneração funcional submete-se ao postulado constitucional da reserva absoluta de lei, vedando-se, em conseqüência, a intervenção de outros atos estatais revestidos de menor positividade jurídica, emanados de fontes normativas que se revelem estranhas, quanto à sua origem institucional, ao âmbito de atuação do Poder Legislativo, notadamente quando se tratar de imposições restritivas ou de fixação de limitações quantitativas ao estipêndio devido aos agentes públicos em geral. - O princípio constitucional da reserva de lei formal traduz limitação ao exercício das atividades administrativas e jurisdicionais do Estado. A reserva de lei - analisada sob tal perspectiva - constitui postulado revestido de função excludente, de caráter negativo, pois veda, nas matérias a ela sujeitas, quaisquer intervenções normativas, a título primário, de órgãos estatais não-legislativos. Essa cláusula constitucional, por sua vez, projeta-se em uma dimensão positiva, eis que a sua incidência reforça o princípio, que, fundado na autoridade da Constituição, impõe, à administração e à jurisdição, a necessária submissão aos comandos estatais emanados, exclusivamente, do legislador. Não cabe, ao Poder Executivo, em tema regido pelo postulado da reserva de lei, atuar na anômala (e inconstitucional) condição de legislador, para, em assim agindo, proceder à imposição de seus próprios critérios, afastando, desse modo, os fatores que, no âmbito de nosso sistema constitucional, só podem ser legitimamente definidos pelo Parlamento. É que, se tal fosse possível, o Poder Executivo passaria a desempenhar atribuição que lhe é institucionalmente estranha (a de legislador), usurpando, desse modo, no contexto de um sistema de poderes essencialmente limitados, competência que não lhe pertence, com evidente transgressão ao princípio constitucional da separação de poderes” (STF, ADI-MC 2.075-RJ, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 07-02-2001, v.u., DJ 27-06-2003, p. 28).

“Em tema de remuneração dos servidores públicos, estabelece a Constituição o princípio da reserva de lei. É dizer, em tema de remuneração dos servidores públicos, nada será feito senão mediante lei, lei específica. CF, art. 37, X, art. 51, IV, art. 52, XIII. Inconstitucionalidade formal do Ato Conjunto n. 01, de 5-11-2004, das Mesas do Senado Federal e da Câmara dos Deputados” (STF, ADI 3.369-MC, Rel. Min. Carlos Velloso, 16-12-2004, DJ 01-02-2005).

“Ação direta de inconstitucionalidade. Resoluções n.ºs 26, de 22/12/94; 15, de 23/10/97, e 16, de 30/10/97, todas do Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo, havendo a primeira criado a gratificação de representação, correspondente a 40% do valor global atribuído a diversos cargos, estendendo-a, inclusive, aos inativos que se aposentaram em cargos de igual denominação ou equivalente. 2. Alegação de ofensa a funções privativas dos Poderes Legislativo e Executivo. 3. Medida cautelar deferida e suspensa, com eficácia ex nunc, a eficácia das Resoluções impugnadas. 4. Procedência da alegação de ofensa a funções privativas dos Poderes Legislativo e Executivo, eis que há necessidade de lei em sentido formal para a criação de vantagens pecuniárias a servidores do Poder Judiciário. 5. A Lei Magna não assegura aos Tribunais fixar, sem lei, vencimentos ou vantagens a seus membros ou servidores. 6. Jurisprudência do STF no sentido de que ‘não cabe ao Poder Judiciário, que não tem função legislativa, aumentar vencimentos de servidores públicos, sob o fundamento da isonomia’ (Súmula 339 e ADINs n.º 1776, 1777 e 1782). 7. Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente”(STF, ADI 1.732-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Néri da Silveira, 17-04-2002, v.u., DJ 07-06-2002, p. 81).

“Ação Direta de Inconstitucionalidade – Ato normativo municipal que confere ao Chefe do Poder Executivo a possibilidade de, mediante portaria e a seu alvedrio, conceder gratificações de 20 e até 100% sobre os vencimentos dos servidores – Violação da cláusula da reserva legal, visto que somente por lei, em sentido formal, podem ser fixadas gratificações e vantagens – Precedente do Colendo Supremo Tribunal Federal – Preceito normativo que, ademais, vulnera a moralidade, o princípio da impessoalidade e da razoabilidade – Ofensa aos artigos 5º, 24, § 2º, nº 1, 111, 115, XI, todos da Constituição Estadual, aplicáveis aos Municípios ex vi o artigo 144 da mesma Carta – Inconstitucionalidade do § 1º do artigo 5º da Lei nº 3.122 do Município de Cruzeiro reconhecida – Inconstitucionalidade também do § 2º do mesmo preceito por arrastamento – Ação procedente” (TJSP, ADI 169.057-0/3-00, Órgão Especial, Rel. Des. A. C. Mathias Coltro, 28-01-2009, v.u.).

38.               Por estas razões, deve ser declarada a inconstitucionalidade, eis que, em síntese, o art. 79 e §§ da Lei Complementar n. 01/93, na redação da Lei Complementar n. 203/10, viola os arts. 19, 24, § 2º, 1, 111 e 128, da Constituição Estadual, mácula já verificada na redação original do preceito legal a justificar seu arrastamento para evitar nociva repristinação.

III – Pedido liminar

39.               À saciedade demonstrado o fumus boni iuris, pela ponderabilidade do direito alegado, soma-se a ele o periculum in mora. A atual tessitura da norma impugnada, apontada como violadora de princípios e regras da Constituição do Estado de São Paulo é sinal, de per si, para suspensão de sua eficácia até final julgamento desta ação porque permite dispêndio público de maneira ilegítima, periclitando as forças do erário com a potencialidade real e concreta de danos irreversíveis ou de difícil reparação.

40.               À luz deste perfil, requer-se a concessão de liminar para suspensão da eficácia, até final e definitivo julgamento desta ação, do art. 79 e §§ da Lei Complementar n. 01/93, na redação dada pela Lei Complementar n. 203/10 e em sua redação original, do Município de Ilha Solteira.

IV - Pedido

41.               Face ao exposto, requer o recebimento e processamento da presente ação que deverá ser julgada procedente para declaração da inconstitucionalidade do art. 79 e §§ da Lei Complementar n. 01/93, na redação dada pela Lei Complementar n. 203/10 e, por arrastamento, em sua redação original, do Município de Ilha Solteira.

42.               Requer-se, ainda, sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Prefeito Municipal de Ilha Solteira, bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para se manifestar sobre os atos normativos impugnados, protestando por nova vista, posteriormente, para manifestação final.

                    Termos em que, pede deferimento.

São Paulo, 26 de julho de 2010.

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

 

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Protocolado n. 54.996/09

Assunto: Inconstitucionalidade do art. 79 e §§ da Lei Complementar n. 01, de 01 de fevereiro de 1993, na redação dada pela Lei Complementar n. 203, de 19 de fevereiro de 2010 e em sua redação original, do Município de Ilha Solteira

 

 

 

 

1.    Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade, em face art. 79 e §§ da Lei Complementar n. 01, de 01 de fevereiro de 1993, na redação dada pela Lei Complementar n. 203, de 19 de fevereiro de 2010 e em sua redação original, do Município de Ilha Solteira, junto ao egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

2.    Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.

 

                    São Paulo, 5 de agosto de 2010.

 

 

 

 

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça