EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO E. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
Protocolado nº 55.765/09
Assunto: Inconstitucionalidade da Lei Complementar n. 072/2009, do Município de Maracaí.
Ementa: Lei Complementar n. 072/2009, do Município de Maracaí, que institui cargos de provimento em comissão, aos quais não correspondem funções de direção, chefia e assessoramento, mas funções próprias dos cargos de provimento efetivo. Violação do art. 115, inc. II e V, da Constituição do Estado de São Paulo. Pedido para que se declare a inconstitucionalidade material das expressões da lei que identificam tais cargos.
O
Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição
prevista no art. 116, inciso VI da Lei Complementar Estadual nº 734, de 26 de
novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo), em
conformidade com o disposto no art. 125, § 2º e art. 129, inciso IV da
Constituição Federal, e ainda art. 74, inciso VI e art. 90, inciso III da Constituição
do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso
protocolado, vem, respeitosamente, perante esse Egrégio Tribunal de Justiça,
promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE da Lei
Complementar n. 072/2009, do Município de Maracaí, pelos fundamentos a seguir
expostos.
I – DOS ATOS NORMATIVOS IMPUGNADOS
QUANT. DESCRIÇÃO
DO EMPREGO SIGLA REMUN.
02 Assessor Técnico Desportivo ASA
I
01 Encarregado do CAPS ESA
05 Assessor de Secretaria I ASA I
05 Assessor de Secretaria II ASA II
Ocorre
que aos cargos, instituídos pela lei impugnada, não correspondem funções de
direção, chefia e assessoramento. São lotações que não se situam na
administração superior, nem demandam a estrita confiança, cujas missões devem
ser realizas por servidores de carreira, até mesmo para não haver solução de
continuidade por sucessão de administradores.
A
previsão normativa desses cargos de provimento em comissão não condiz com o
artigo 37, incisos II e V, da Constituição Federal ou com o artigo 115, incisos
II e V, da Constituição Estadual.
É o que será demonstrado a seguir.
II – DO DIREITO
A
Constituição em vigor consagrou o Município como entidade federativa
indispensável ao nosso sistema federativo, integrando-o na organização
político-administrativa e garantindo-lhe plena autonomia, como se
observa da análise dos arts. 1.º, 18, 29, 30 e 34, VI, “c” da CF (cf. Alexandre
de Moraes, “Direito Constitucional”, São Paulo: Atlas, 7.ª ed., p. 261).
A
autonomia concedida aos Municípios não tem caráter absoluto e soberano.
Pelo contrário, encontra limites nos princípios emanados dos poderes públicos e
dos pactos fundamentais, que instituíram a soberania de um povo (cf. De Plácido
e Silva, “Vocabulário Jurídico”, Rio de Janeiro: Forense, v. I, 1984, p. 251),
sendo definida por José Afonso da Silva como “a capacidade ou poder de gerir os
próprios negócios, dentro de um círculo prefixado por entidade superior”, que
no caso é a Constituição (Curso de Direito Constitucional Positivo, 8ª. ed.,
São Paulo: Malheiros, 1992, p. 545).
A
autonomia municipal se assenta em quatro capacidades básicas: (a)
auto-organização, mediante a elaboração de lei orgânica própria, (b)
autogoverno, pela eletividade do Prefeito e dos Vereadores as respectivas
Câmaras Municipais, (c) autolegislação, mediante competência de
elaboração de leis municipais sobre áreas que são reservadas à sua competência
exclusiva e suplementar, (d) auto-administração ou administração
própria, para manter e prestar os serviços de interesse local (cf. José Afonso
da Silva, ob. cit., p. 546).
Nessas
quatro capacidades, encontram-se caracterizadas a autonomia política
(capacidades de auto-organização e autogoverno), a autonomia normativa
(capacidade de fazer leis próprias sobre matéria de sua competência), a
autonomia administrativa (administração própria e organização dos serviços
locais) e a autonomia financeira (capacidade de decretação de seus tributos e aplicação
de suas rendas, que é uma característica da auto-administração) (ob. e loc.
cits).
Assim,
por força da autonomia administrativa de que foram dotadas, as entidades
municipais são livres para organizar os seus próprios serviços, segundo suas
conveniências locais. E, na organização desses serviços públicos, a
Administração cria cargos e funções, institui classes e carreiras, faz
provimentos e lotações, estabelece vencimentos e vantagens e delimita os
deveres e direitos de seus servidores (cf. Hely Lopes Meirelles, Direito
Municipal Brasileiro, 8ª. ed., São Paulo: Malheiros, 1996, p. 420).
Contudo,
a liberdade conferida aos Municípios para organizar os seus próprios serviços
não é ampla e ilimitada; ela se subordina às seguintes regras fundamentais e impostergáveis:
(a) a que exige que essa organização se faça por lei; (b) a que
prevê a competência exclusiva da entidade ou Poder interessado; e (c) a
que impõe a observância das normas constitucionais federais pertinentes ao
servidor público (ob. e loc. cits.)
No
caso em exame, o Legislador Municipal criou cargos e empregos de provimento em
comissão para o exercício de funções estritamente técnicas ou profissionais,
próprias dos cargos de provimento efetivo. São funções que denotam a natureza
profissional do vínculo entre seus agentes e a Administração Pública e que, por
essa razão, só poderiam ser preenchidas por concurso público.
Segundo
Ruy Cirne Lima (Princípios de Direito Administrativo, RT, 6.ª ed., p. 162), o
funcionário público profissional se peculiariza por quatro característicos
básicos, a saber: (a) natureza técnica ou prática do serviço prestado; (b)
retribuição de cunho profissional; (c) vinculação jurídica à Administração
Direta; (d) caráter permanente dessa vinculação.
Desse
modo, nitidamente diferenciado dos cargos que reclamam provimento em comissão,
as funções profissionais devem ser exercidas em caráter permanente, ou seja,
pelo quadro estável de servidores públicos municipais, os quais, em
conformidade com o disposto no art. 115, inciso II, da Constituição do Estado
de São Paulo, só podem ser arregimentados por concurso público de provas ou de
provas e títulos.
Na
verdade, o cargo em comissão destina-se apenas às atribuições de “direção,
chefia e assessoramento” (CF., art. 37, inciso V, com a redação dada pela EC
n.º 19/98) e tem por finalidade propiciar ao governante o controle das
diretrizes políticas traçadas. Exige, portanto, das pessoas indicadas a
titularizá-los, absoluta fidelidade à orientação fixada pela autoridade
nomeante. Em outras palavras, o cargo de provimento em comissão está
diretamente ligado ao dever de lealdade à linha fixada pelo agente político
superior.
Daí
porque a exceção contida na parte final do inciso II, do artigo 115, da
Constituição do Estado de São Paulo - “ressalvadas as nomeações para
cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração” -,
que, no ponto, reproduz a dicção do artigo 37, inciso II, da Constituição da
República, tem alcance limitado a situações excepcionais, relativas aos
cargos cuja natureza especial justifique a dispensa de concurso público.
Torna-se
evidente, portanto, que a limitação apontada não tem caráter puramente formal,
de simples e incriteriosa indicação legal de cargos de provimento em comissão,
que pudesse afastar o princípio constitucional da igual acessibilidade aos
cargos públicos.
Bem
a propósito, ao estudar com profundidade esse assunto, Márcio Cammarosano
deixou anotado que o princípio democrático implica no princípio da igualdade “e
este no princípio da igual acessibilidade dos cargos públicos, com o que se
resguarda também o princípio da probidade administrativa” (Provimento de
Cargos Públicos no Direito Brasileiro, São Paulo: Revista dos Tribunais, p.
45).
Assim,
para que a lei criadora de um cargo em comissão não venha a se constituir em
burla ao princípio constitucional arrolado, enunciado expressamente pelo artigo
37, incisos I e II, da Constituição da República, deverá observar
criteriosamente a natureza das funções a serem desempenhadas, pois, no dizer de
Celso Antonio Bandeira de Mello (O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade,
Editora Revista dos Tribunais, 1.ª edição, pág. 49), “impende que exista uma
adequação racional entre o tratamento diferençado construído e a razão
diferencial que lhe serviu de supedâneo”.
Afinado
a esse mesmo entendimento, Hely Lopes Meirelles (Direito Administrativo
Brasileiro, 18ª. ed, São Paulo: Malheiros, p. 378) adverte sobre pronunciamento
do Supremo Tribunal Federal no sentido de que “a criação de cargo em
comissão em moldes artificiais e não condizentes com as praxes de nosso
ordenamento jurídico e administrativo, só pode ser encarada como inaceitável
esvaziamento da exigência constitucional de concurso”.
E,
da mesma forma, já decidiu o Pretório Excelso que “a exigência constitucional
do concurso público não pode ser contornada pela criação arbitrária de cargos
em comissão para o exercício de funções que não pressuponham o vínculo de
confiança que explica o regime de livre nomeação e exoneração que os
caracteriza.” (STF, RTJ 156/793)
Na
esteira desse raciocínio, é inescusável que a parte final do inciso II do art.
115 da Constituição do Estado de São Paulo, tem alcance circunscrito a
situações em que o requisito da confiança seja predicado indispensável ao
exercício do cargo. De fato, como se trata de uma exceção à regra do concurso
público, a criação de cargos em comissão pressupõe o atendimento do interesse
público e só se justifica para o exercício de funções de “direção, chefia e
assessoramento”, em que seja necessário o estabelecimento de vínculo de
confiança entre a autoridade nomeante e o servidor nomeado. Fora desses
parâmetros, é inconstitucional qualquer tentativa de criação de cargos dessa
natureza.
É
incontestável que os cargos relacionados, cuja validade jurídico-constitucional
ora se examina, não se apresentam como cargos ou funções da administração
superior, ou mesmo de “direção, chefia e assessoramento”, que exijam relação de
confiança ou especial fidelidade às diretrizes traçadas pela autoridade nomeante,
mas sim de cargos comuns, de natureza profissional, que devem ser assumidos em
caráter permanente por servidores aprovados em concurso.
Em
recente julgado (ADIN n° 157 951-0/0. Rel. Des. Sousa Lima. j. 25.6.2008),
aliás, esse E. Tribunal de Justiça declarou a inconstitucionalidade de
dispositivos de lei municipal que instituiu os seguintes cargos de provimento
em comissão, alguns dos quais análogos e/ou com denominações equivalentes aos
impugnados, a saber: 1) Assistente Administrativo Escolar; 2) Diretor de
Escola; 3) Supervisor de Ensino Fundamental; 4) Agente Municipal de Crédito; 5)
Assistente Administrativo Escolar; 6) Chefe de Serviços de Acervo Histórico e
Difusão Cultural; 7) Chefe de Serviços de Cadastro Único; 8) Chefe de Serviços
de Comunicação; 9) Chefe de Serviços de Esportes Comunitários e de Rendimento;
10) Chefe de Serviços de Fiscalização de Tributos e Posturas; 11) Chefe de
Serviços de Turismo; 12) Chefe de Serviços de Gerenciamento da Patrulha
Agrícola; 13) Administrador do Ginásio de Esportes; 14) Administrador do Centro
de Convivência; 15) Coordenador Geral de Creches; 16) Coordenador Médico; 17)
Coordenador Odontológico; 18) Agente Administrativo Financeiro; 19) Agente
Administrativo de Recursos Humanos; 20) Supervisor de Saneamento; 21) Assessor
Administrativo; 22) Diretor Técnico do Centro de Reabilitação; 23) Assessor
Administrativo da Guarda Municipal; 24) Assessor Pedagógico; e 25) Assessor de
Diretor.
Na
atual formação desse Sodalício, tem-se exigido também que a lei descreva as
atribuições de cada um dos cargos, para que seja possível ao Judiciário
sindicar se foram criados, efetivamente, para as situações permitidas:
“Ação
direta de inconstitucionalidade – Lei Complementar n° 1.800, de 8 de março de
2005 – Criação de cargos de provimento em comissão, destinados, muitos deles, a
funções burocráticas ou técnicas de caráter permanente - Inadmissibilidade - Dispositivo,
ademais, que deixou de descrever as atribuições e responsabilidades de cada um
dos cargos, impossibilitando a verificação de que foram criados exclusivamente
para os casos constitucionalmente permitidos (direção, chefia e assessoramento)
– Violação dos artigos 5°, § 1º, 111, 115, I e II e 144 da Constituição do
Estado de São Paulo - Ação procedente (ADIN nº 152.958-0/6, j. 4/03/2009, rel.
Des. Debatin Cardoso, g.n.).”
Desse
último julgado, aliás, extrai-se preciosa lição:
“... o dispositivo
deixou de descrever as atribuições e responsabilidades de cada um dos cargos
criados, necessários para que se possa analisar e concluir que foram criados
exclusivamente para os casos constitucionalmente permitidos.”
Não
basta denominar os cargos como sendo de diretor, chefe ou assessor para que se
abra uma exceção à regra do concurso público e se justifique seu provimento em
comissão, pois o que importa não é o rótulo, mas a substância deles, fazendo-se
necessário examinar as atribuições a serem exercidas por seus titulares e tais
atribuições devem estar definidas na lei.
Aliás,
Márcio Cammarosano, em artigo intitulado CARGOS EM COMISSÃO - BREVES
CONSIDERAÇÕES QUANTO AOS LIMITES À SUA CRIAÇÃO (http://www.sertoledo.org.br/limites.html
- pesquisado em 18.06.08) ensina que: "... ofende a ordem jurídica em
vigor criar cargos em comissão que não consubstanciem competências de direção,
chefia e assessoramento, ainda que a denominação que lhes atribua seja própria
de cargos daquela espécie, pois o que importa não é o rótulo, mas a substância
de cada qual. Em outras palavras: denominar cargos públicos como sendo de
diretor, chefia ou assessor não lhes atribui, por si só, a natureza que os
permita ser de provimento em comissão. Faz-se necessário examinar as
atribuições a serem exercidas por seus titulares, pois cargos públicos consubstanciam,
como já assinalado, plexos de competências. Se estas não forem de direção,
chefia ou assessoramento, haverá descompasso entre a denominação e as
atribuições inerentes ao mesmo, entre o rótulo e a substância. Estar-se-á
diante de expediente artificioso, mal disfarçada burla à exigência
constitucional de concurso; de concurso público se devessem, em rigor, ter sido
criados como cargos isolados ou iniciais de determinada carreira; de concurso
interno se devessem ter sido criados como de classe intermediária ou final de
carreira ".
Para
finalizar, lembra-se que o Órgão Especial desse Egrégio Tribunal de Justiça
entende ser possível declarar a inconstitucionalidade material de expressões
de lei criadora de cargos em comissão (ADIN n.º 11.939-0, relator Des.
OLIVEIRA COSTA), cuja natureza não correspondia às características próprias
dessas funções, daí porque, também aqui se impõe declarar a insubsistência dos
seguintes cargos previstos na lei impugnada, por serem incompatíveis com os
arts. 111; 115, incisos I, II e V e 144, da Constituição do Estado de São
Paulo, a saber: a) Assessor Técnico
Desportivo (02); b) Encarregado do CAPS
(01); c) Assessor de Secretaria I
(05); d) Assessor de Secretaria II (05).
III – CONCLUSÃO
Por
todo o exposto, evidencia-se a necessidade de reconhecimento da
inconstitucionalidade da norma aqui apontada.
Assim,
aguarda-se o recebimento e processamento da presente Ação Declaratória, para
que ao final seja julgada procedente, reconhecendo-se a inconstitucionalidade Lei
Complementar n. 072/2009, do Município de Maracaí, bem assim de todos os
anteriores atos normativos que contenham as mesmas previsões, para se evitar o
efeito repristinatório.
Requer-se
ainda sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Prefeito Municipal,
bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para se manifestar
sobre os atos normativos impugnados.
Posteriormente,
aguarda-se vista para fins de manifestação final.
São Paulo, 24 de
novembro de 2009.
Fernando Grella Vieira
Procurador-Geral de Justiça
fjyd
FERNANDO GRELLA
VIEIRA
Procurador-Geral de Justiça
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