EXCELENTÍSSIMO
SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO E. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO
PAULO
Protocolado nº 61.672/10
Assunto: Inconstitucionalidade parcial da Lei Complementar nº 1.811, de 13 de julho de 2002, do Município de Itapeva
Ementa: 1) Lei Complementar nº 1.811, de 13 de julho de 2002, do Município de Itapeva, que ”dispõe o Plano de Cargos e Salários, Evolução Funcional e dá outras providências”; 2) Hipóteses de “transposição”; 3) Violação do princípio constitucional do concurso, da acessibilidade de cargos, empregos e funções públicas, da isonomia e da impessoalidade (art. 111, e 115, inc. I e II, da Constituição Paulista); 4) Inconstitucionalidade reconhecida.
O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, inciso VI da Lei Complementar Estadual nº 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo), em conformidade com o disposto no art. 125, § 2º e art. 129, inciso IV da Constituição Federal, e ainda art. 74, inciso VI e art. 90, inciso III da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado, vem, respeitosamente, perante esse Egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE parcial da Lei Complementar n. 1.811, de 13 de julho de 2002, do Município de Itapeva, que “dispõe o Plano de Cargos e Salários, Evolução Funcional e dá outras providências”, (arts. 12 e 24, I, II e III, bem como, a “transformação dos cargos” impugnada constante do Anexo III- Quadro de Pessoal – Parte Permanentes Mantidos ou Redenominados, a serem regidos pelo Estatuto dos Funcionários Públicos Municipais), pelos fundamentos a seguir expostos.
1.
DO
ATO NORMATIVO IMPUGNADO.
A Lei Complementar nº 1.811, de 13 de julho de 2002, “dispõe o Plano de Cargos e Salários, Evolução Funcional e dá outras providências”.
Alguns dispositivos legais da mencionada legislação
possibilitaram a “transformação de alguns cargos” de provimento efetivo.
Os dispositivos legais que permitiram a “transformação de cargos” ora impugnada são os seguintes:
“Art. 12- Ficam mantidos ou renominados os cargos permanentes constantes do Anexo III, que faz parte integrante desta Lei.
Art. 24 – Os servidores serão enquadrados no Quadro de Pessoal, através de portaria, observando o seguinte:
I – os servidores ocupantes de cargo de provimento efetivo e os nomeados no regime estatutário através de concurso público serão classificados nos cargos resultantes da reestruturação, independentemente do provimento/preenchimento dos requisitos exigidos por esta Lei.
II- Os servidores estáveis pela Constituição Federal serão classificados nas denominações resultantes da reestruturação, independentemente de um novo ato.
III- Os servidores não estáveis pela Constituição Federal serão enquadrados no padrão resultante da reestruturação, independentemente de um novo ato.
O Anexo III- QUADRO DE PESSOAL – PARTE PERMANENTE –CARGOS PERMANENTES
MANTIDOS OU REDENOMINADOS, A SEREM REGIDOS PELO ESTATUTO DOS FUNCIONÁRIOS
PÚBLICOS MUNICIPAIS da legislação em questão, por sua vez, transformou a nomenclatura
de inúmeros cargos de provimento efetivo, a saber:
Cargo Anterior |
Cargo Atual |
Agente Comunitário |
Auxiliar de Enfermagem |
Agente Comunitário |
Agente de Saneamento |
Agente Comunitário |
Oficial de Administração |
Agente de Saneamento |
Oficial de Administração |
Agente de Saneamento |
Auxiliar da Administração |
Atendente |
Auxiliar de Enfermagem |
Auxiliar de Serviço de Campo |
Motorista |
Auxiliar de Serviço de Campo |
Vigia |
Auxiliar Serviços Gerais |
Auxiliar de Desenvolvimento Infantil |
Auxiliar Serviços Gerais |
Orientador de Alunos |
Auxiliar Serviço Infantil |
Auxiliar de Laboratório |
Auxiliar Serviço Infantil |
Oficial de Administração |
Coveiro |
Auxiliar de Serviços Gerais |
Coveiro |
Auxiliar de Manutenção |
Eletricista de Autos |
Oficial de Manutenção |
Encarregado |
Fiscal Municipal |
Encarregado |
Oficial de Administração |
Escriturário |
Auxiliar de Enfermagem |
Escriturário |
Motorista |
Fiscal de Postura |
Auxiliar de Administração |
Inspetor de Alunos |
Oficial da Administração |
Jardineiro |
Monitor de Esporte |
Magarefe |
Motorista |
Magarefe |
Auxiliar Serviços Gerais |
Servente de Pedreiro |
Vigia |
Telefonista |
Auxiliar de Administração |
Visitador Sanitário |
Auxiliar de Enfermagem |
Padeiro |
Motorista |
Pintor de Autos |
Motorista |
Servente de Escola |
Auxiliar de Administração |
Servente de Pedreiro |
Oficial de Administração |
Agente de Saneamento |
Auxiliar da Administração |
Agente de Saneamento |
Fiscal Municipal |
Esses dispositivos legais que permitiram essa “transformação de cargos”, no entanto, ofendem frontalmente os seguintes dispositivos da Constituição do Estado de São Paulo: arts. 111, 115, incisos I e II, e 144.
É o que será demonstrado a seguir.
2. FUNDAMENTAÇÃO
Com
efeito, “a transformação de cargos” em
questão, viola princípios constitucionais que exigem a realização de concurso
público para acesso aos cargos e empregos na administração pública, e, por
conseqüência, viola também a regra da acessibilidade geral e da isonomia com
relação ao provimento de cargos na administração pública, que decorrem dos
seguintes dispositivos da Constituição Estadual:
Art.
Art.115. Para a organização da administração pública direta e indireta, inclusive as fundações instituídas ou mantidas por qualquer dos Poderes do Estado, é obrigatório o cumprimento das seguintes normas:
I – os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como os estrangeiros, na forma da lei;
II – a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia, em concurso público de provas ou de provas e títulos, ressalvadas as nomeações para cargo de provimento em comissão, declarado em lei, de livre nomeação e exoneração;
É
oportuno recordar que tais dispositivos são reproduções do disposto no art. 37,
incisos I e II, da CR/88, sendo todos (os da Constituição Federal e os da
Estadual), aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Constituição
Paulista.
Dispensa
maiores digressões a afirmação de que a realização de concurso público, para
acesso aos cargos, empregos, e funções públicas, é a regra. Ela só admite
exceções nas estritas hipóteses previstas na Constituição Federal e Estadual,
quais sejam, (a) a nomeação para cargos de provimento em comissão previstos em
lei específica de cada ente federativo (nos casos de cargos ou funções de
direção, chefia ou assessoramento superior da administração, em que deva
prevalecer o vínculo de especial confiança entre o servidor e o agente superior
ao qual se vincule), e (b) a contratação temporária, nas hipóteses previstas em
lei de cada ente federativo, para atendimento a necessidade temporária de
excepcional interesse público (cf. art. 115, incs. II, V e X, da Constituição
Paulista; art. 37, incs. I, II e IX, da CR/88).
Diante
disso, qualquer dispensa indevida da realização de concurso para fins de
ingresso no serviço público, ou mesmo a realização de provimentos a partir de
concursos internos, para que servidores ocupem cargos ou empregos situados em
carreira distinta, ou finalmente a
simples transformação de nomenclatura de cargos ou empregos de integrantes de
carreira distinta, são atos que significam, na prática, burla à regra do
concurso. Traduzem-se, do mesmo modo, em criação de óbice à acessibilidade de
todos os cidadãos aos cargos públicos previstos em lei, e, por conseguinte,
violação ao princípio da isonomia. Criam, finalmente, possibilidade de
favorecimento, com quebra do princípio da impessoalidade.
Não
se pode confundir o caso tratado nestes autos, com situações em que, por lei
nova, é conferida nova denominação a cargos públicos, sem que haja mudança de
atribuições. Em tais casos, o enquadramento dos antigos titulares, admitidos
por concurso público, é feito sem maiores dificuldades ou questionamentos, pois
que é admissível a “transposição” do servidor para cargo idêntico, da mesma natureza, em novo sistema de classificação
(STF, RTJ 150/26).
Note-se
que, para que tal solução seja legítima, é imprescindível que o aproveitamento
de ocupantes de cargos extintos nos recém-criados se opere em vista de “completa identidade substancial entre os
cargos em exame, além de compatibilidade funcional e remuneratória e
equivalência dos requisitos exigidos em concurso” (ADIs 1.591, Rel. Min.
Octavio Gallotti, e 2.713, Rel. Min. Ellen Gracie).
Esta
situação não se confunde com a hipótese de “transformação”, em que se verifica
a alteração do título e das atribuições do cargo, e por isso configura novo
provimento, a depender da exigência de concurso público (ADI 266, Rel. Min.
Octavio Gallotti, julgamento em 18-6-93, DJ de 6-8-93).
Vale recordar que o conceito de carreira diz
respeito ao “agrupamento de classes da
mesma profissão ou atividade, escalonadas segundo a hierarquia do serviço, para
acesso privativo dos titulares dos cargos que a integram, mediante provimento
originário” (cf. Hely Lopes Meirelles, Direito
Administrativo Brasileiro, 34ª. ed., São Paulo, Malheiros, 2008, p. 424).
No mesmo sentido: Edmir Netto de Araújo, Curso
de Direito Administrativo, São Paulo, 2005.
Natural
assim a evolução funcional, que deve ocorrer, dentro de uma mesma carreira, de
um cargo ou emprego situado em plano inferior, para outro localizado em patamar
superior.
Diversa,
entretanto, é a hipótese em exame, pois aqui, o que se verifica, é a burla, de
forma indireta, do princípio do concurso público e de seus corolários lógicos.
Nosso
sistema constitucional consagrou o livre acesso aos cargos, empregos e funções
públicas, na forma prevista em lei, e a submissão prévia a concurso público,
ressalvadas, evidentemente, as nomeações para cargos
É por meio do concurso que se resguarda “a aplicação do princípio da igualdade de todos
(CF., art. 37, I) e, ao mesmo tempo, o interesse da Administração em admitir
somente os melhores” (Celso Ribeiro Bastos, op. cit., p. 66), afastando-se “os
ineptos e apaniguados, que costumam abarrotar as repartições públicas, num
espetáculo degradante de protecionismo e falta de escrúpulos de políticos que
se alçam e se mantêm no poder, leiloando empregos públicos” (Hely Lopes
Meirelles, Direito Administrativo
Brasileiro, 34ª ed., São Paulo,
RT, 2008, p. 440/441).
Acrescente-se,
ademais, que a existência de formas de provimento derivadas “de modo algum significa abertura para
costear se o sentido próprio do concurso público. Como este é sempre específico
para dado cargo, encartado em carreira certa, quem nele se investiu não pode
depois, sem novo concurso público, ser trasladado para cargo de natureza
diversa ou de outra carreira melhor retribuída ou de encargos mais nobres e
elevados. O nefando expediente a que se alude foi algumas vezes adotado, no
passado, sob a escusa de corrigir desvio de funções ou com arrimo na
nomenclatura esdrúxula de ‘transposição de cargos’. Corresponde a uma burla
manifesta do concurso público. É que permite a candidatos que ultrapassaram
apenas concursos singelos, destinados a cargos de modesta expressão – e que se
qualificaram tão somente para eles – venham a aceder, depois de aí investidos,
a cargos outros, para cujo ingresso se demandaria sucesso em concursos de
dificuldades muito maiores, disputados por concorrentes de qualificação bem
mais elevada” (Celso Antônio Bandeira de Mello, Regime Constitucional dos Servidores da Administração Direta e Indireta,
São Paulo, RT, 1995, p. 55).
Não
se nega, observe-se, a possibilidade de aprimoramento na organização
administrativa de determinado ente federativo, e tampouco a reestruturação do
respectivo quadro de cargos, empregos e funções. Tal possibilidade é ínsita à
própria autonomia de cada ente federativo, e em especial dos Municípios (art. 29,
30, inc. I, da CR/88).
Também
não se refuta a possibilidade de enquadramento de servidores, já integrantes da
administração, nos casos de extinção ou transformação de cargos, empregos e
funções, desde que idênticas as
atribuições do novo cargo, e idênticos os requisitos ou condições exigidos dos
candidatos ao seu provimento. Contudo, como anota Hely Lopes Meirelles, “se a transformação implicar alteração do
título e das atribuições do cargo, configura novo provimento, que exige
concurso público” (Direito
Administrativo Brasileiro, cit., p.
427).
É
oportuno averbar que no STF a matéria é pacífica. Encontra-se sedimentada no
verbete nº 685 da súmula da jurisprudência dominante da Corte, com a seguinte
dicção:
É inconstitucional toda modalidade de provimento que propicie ao servidor investir-se, sem prévia aprovação em concurso público destinado ao seu provimento, em cargo que não integra a carreira na qual anteriormente investido. (SÚM. 685).
Há
diversos precedentes do STF que, sob vários aspectos e em situações diferentes,
confirmam que nosso sistema constitucional não transige com a regra do concurso
público. Assim, como quando a Corte veda a ascensão e a transferência, que são
formas de ingresso em carreira diversa daquela para a qual o servidor público
ingressou por concurso (ADI 231, Rel. Min. Moreira Alves, julgamento em 5-8-92,
DJ de 13-11-92; ADI 3.582, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 1º-8-07,
DJ de 17-8-07); ou ao proibir o mero enquadramento de prestadores de serviço (ADI
3.434-MC, voto do Min. Joaquim Barbosa, julgamento em 23-8-06, DJ de 28-9-07);
ou mesmo ao vedar o enquadramento de servidores que exerçam determinadas
funções, em cargos que integram carreira distinta, ainda que com período prévio
de reciclagem (ADI 388, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 20-9-07, DJ de
19-10-07; ADI 3.442, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 7-11-07, DJ de
7-12-07).
Relevante
notar, do mesmo modo, que a exigência de concurso público para a investidura em
cargo assegura, entre outras coisas, o respeito aos princípios da impessoalidade
e o da isonomia. A estabilidade constitucional anômala e transitória prevista
no art. 19 do ADCT-CR/88, aplicável aos servidores não concursados que, quando
da promulgação da Carta Federal, contassem com, no mínimo, cinco anos
ininterruptos de serviço público, tem sido interpretada restritivamente. O STF
tem, reiteradamente, afirmado a inconstitucionalidade de normas estaduais que
ampliam a exceção à regra da exigência de concurso para o ingresso no serviço:
ADI 498, Rel. Min. Carlos Velloso (DJ de 9-8-1996); ADI 208, Rel. Min. Moreira
Alves (DJ de 19-12-2002); ADI 100, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em
9-9-04, DJ de 1º-10-04; ADI 88, Rel. Min. Moreira Alves, julgamento em 11-5-00,
DJ de 8-9-00; ADI 289, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 9-2-07, DJ
de 16-3-07; ADI 125, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 9-2-07, DJ de
27-4-07.
3. CONCLUSÃO E
PEDIDO.
Por todo o exposto, evidencia-se a necessidade de reconhecimento da inconstitucionalidade da norma aqui apontada.
Assim, aguarda-se o recebimento e processamento da presente Ação Declaratória, para que ao final seja julgada procedente, reconhecendo-se a inconstitucionalidade parcial da Lei Complementar n. 1.811, de 13 de julho de 2002, do Município de Itapeva, que “dispõe o Plano de Cargos e Salários, Evolução Funcional e dá outras providências”, (arts. 12 e 24, I, II e III, bem como, a “transformação dos cargos” impugnada constantes do Anexo III- Quadro de Pessoal – Parte Permanente - Cargos Permanentes Mantidos ou Redenominados, a serem regidos pelo Estatuto dos Funcionários Públicos Municipais).
Requer-se ainda sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Prefeito Municipal, bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para se manifestar sobre o ato normativo impugnado.
Posteriormente, aguarda-se vista para fins de manifestação final.
São Paulo, 27 de julho de 2010.
Fernando Grella Vieira
Procurador-Geral de Justiça
Vlcb
Protocolado nº 61.672/10
Assunto: Inconstitucionalidade parcial da Lei Complementar nº 1.811, de 13 de julho de 2002, do Município de Itapeva
1.
Distribua-se a
petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade, em face da Lei
Complementar nº 1.811, de 13 de julho de 2002, do Município de Itapeva, junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado
de São Paulo.
2. Oficie-se ao interessado,
informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.
São
Paulo, 9 de setembro de 2010.
Fernando Grella Vieira
Procurador-Geral de Justiça