Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                   O Procurador-Geral de Justiça de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, inciso VI, da Lei Complementar Estadual n. 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo), e em conformidade com o disposto nos arts. 125, § 2.º, e 129, inciso IV, da Lei Maior, e arts. 74, inciso VI, e 90, inciso III, da Constituição Estadual, com base nos elementos de convicção existentes no incluso protocolado (PGJ n. 62.372/08), vem perante esse Egrégio Tribunal de Justiça promover a presente

 

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE

 

dos incisos V, VIII, XI, XIII, XIV, XV, XVII do art. 19 e do art. 20, da Lei n. 5.394, de 17 de junho de 1.997, bem como da Lei n. 6.819, de 15 de maio de 2003, todos do município de Sorocaba que, dentre outras providências, dispõe sobre a estrutura administrativa do município, definindo, de forma inconstitucional, como de provimento em comissão vários cargos cujas funções são eminentemente técnicas, pelas razões e fundamentos a seguir expostos:

         A Lei n. 5. 394, de 17 de junho de 1997, do município de Sorocaba, “REORGANIZA A ESTRUTURA ADMINISTRATIVA DA PREFEITURA E MUNICIPAL DE SOROCABA E DÁ OUTRAS PROVIDÊNCIAS”. Decorre do Projeto de Lei n. 88/97, de autoria do Executivo.

         Nos incisos V, VIII, XI, XIII, XIV, XV, XVII, XVIII do art. 19, a Lei n. 5. 394, de 17 de junho de 1997, de forma inconstitucional, cria, como de provimento em comissão, vários cargos cujas funções são eminentemente técnicas.

         O art. 19, em seu caput, estabelece:

Artigo 19 - Para dar suporte administrativo e operacional a esta reorganização administrativa, ficam criados os seguintes Cargos:

 

         Os incisos inconstitucionais são os seguintes:

V - 01 (um) cargo de ASSESSOR DE COMUNICAÇÃO, na Secretaria de Governo;

         Ao assessor de comunicação, nos termos da descrição das funções de fls. 303 e de fls. 664, compete: “Executar rotinas administrativas na área de comunicação, apoiar as ações dos profissionais da área. Executar outras tarefas inerentes ao seu cargo, de acordo com seu superior imediato”.

 

VIII- 02 (dois) cargos de OFICIAL DE COMUNICAÇÃO, na Secretaria de Governo;

         O Anexo II da lei ora impugnada descreve as funções:

“Cargo: OFICIAL DE COMUNICAÇÃO

         Assistir ao Assessor de Comunicação, na divulgação dos projetos e realizações da administração, para conhecimento da sociedade e nas tarefas relacionadas com as veiculações jornalísticas. Preparar material jornalístico. Executar outras atividades de rotina, relacionadas com os serviços de sua área.

         Executar outras tarefas inerentes ao seu cargo, de acordo com seu superior imediato.

         Provimento: De livre nomeação e exoneração pelo chefe do executivo, não exclusivo de funcionários.

         Requisitos: Jornalista Profissional.

         Remuneração: Vencimentos equiparados ao de Oficial de Gabinete.

         Subordinado: Assessor de Comunicação.

         Carga Horária: 40 h/semanais”.

 

XI - 03 (três) cargos de SUPERVISOR DE ARRECADADOR JUDICIAL DE TRIBUTOS, na Secretaria dos Negócios Jurídicos;

         O Anexo II da lei ora impugnada descreve as funções:

         “Cargo: SUPERVISOR DE ARRECADADOR JUDICIAL DE TRIBUTOS.

         Supervisionar as atividades dos Arrecadadores Judiciais de Tributos, distribuindo e controlando as execuções fiscais.

         Executor outras tarefas inerentes ao seu cargo, de acordo com seu superior imediato.

         Provimento: De livre nomeação e exoneração pelo Chefe do Executivo, não exclusivo de funcionários.

         Requisitos: 20 grau completo ou curso de Adm. Pública Municipal.

         Remuneração: Vencimentos equiparados ao chefe de seção

         Subordinado: Chefia da Divisão do Contencioso Fiscal.

         Carga Horária: 40 h/semanais”.

 

 

XIII- 01 (um) cargo de CHEFE DA IMPRENSA OFICIAL, na Secretaria dos Negócios Jurídicos;

         O Anexo II da lei ora impugnada descreve as funções:

         “Cargo: CHEFE DA IMPRENSA OFICIAL

         Publicar atos oficiais da Prefeitura Municipal de Sorocaba, editando o jornal (semanário) do Município de Sorocaba e fazendo a distribuição do jornal através das bancas e pelo correio.

         Executar outras tarefas inerentes ao seu cargo, de acordo com seu superior imediato.

         Provimento: De livre nomeação e exoneração pelo chefe do executivo, não exclusivo de funcionários.

         Requisitos: Jornalista Profissional.

         Remuneração: Vencimentos equivalentes aos de Chefe de Divisão.

         Subordinado: Chefia da Divisão Técnico Legislativa.

         Carga Horária: 40 h/semanais”.

 

XIV - 30 (trinta) cargos de ADMINISTRADOR DE PRÓPRIOS, na Chefia do Poder Executivo;

         O Anexo II da lei ora impugnada descreve as funções:

“Cargo: ADMINISTRADOR DE PRÓPRIOS

         Assegurar e manter o funcionamento de uma ou mais unidades municipais, administrando e distribuindo os serviços, praticando as atividades propostas em condições compatíveis com as necessidades da comunidade; atuando nos próprios, em níveis diferenciados, observando-se os critérios de número de subordinados e complexidade para execução do trabalho.

         Executar outras tarefas inerentes ao seu cargo, de acordo com seu superior imediato.

         Provimento:

         * Nível I - de livre nomeação e exoneração pelo Chefe do Executivo, exclusivo de funcionários.

         * Nível II e III - de livre nomeação e exoneração pelo Chefe do Executivo, não exclusivo de funcionário.

         Requisitos:

         * Nível I - 1º grau: em unidade com até 5 (cinco) funcionários.

         * Nível II - 2º grau completo ou curso de Adm. Pública Municipal: em unidade de 6 (seis) à 15 (quinze) funcionários.

         * Nível III - nível universitário; em unidade acima de 15 (quinze) funcionários.

         Remuneração:

         * Nível I - equiparado ao Auxiliar de Gabinete

         * Nível II - equiparado ao Chefe de Seção

         * Nível III - equiparado ao Chefe de Divisão

         Subordinado: A Secretaria responsável pela unidade na qual será prestado o serviço.

         Carga Horária: 40 h/semanais”.

 

XV - 03 (três) cargos de CHEFE DA ADMINISTRAÇÃO DESCENTRALIZADA, na Secretaria de Serviços Públicos;

         Ao assessor de comunicação, nos termos da descrição das funções de fls. 306 e de fls. 664, compete: “Desenvolver trabalho junto à comunidade dos bairros na sua área de atuação, atendendo os munícipes em suas reivindicações, encaminhando os pedidos ao setor competente, intermediar e acompanhar processos administrativos, informando ao requerente o resultado da solicitação, programar e acompanhar a realização dos serviços de manutenção completa em sua área”.

 

XVII - 02 (dois) cargos de AUXILIAR DE GABINETE, na Secretaria de Governo;

         Ao auxiliar de gabinete, nos termos da descrição das funções de fls. 306 e de fls. 664, compete: “Executar tarefas administrativas relacionadas com o expediente do Gabinete do Chefe do Executivo e da Secretaria de Governo. Quando destacado, deverá dirigir de forma não eventual, os veículos de representação do Gabinete da Chefia do Executivo, estando à disposição para viagens, bem como zelando pela manutenção, conservação e abastecimento do veículo sob sua responsabilidade. Executar outras tarefas inerentes ao ser cargo, de acordo com seu superior imediato”.

 

         A Lei n. 5.394, de 17 de junho de 1.997, ainda dispõe, em seu art. 20, sobre a criação de cargos de assessor técnico, nos seguintes termos:

Artigo 20 - Para dar suporte administrativo às Secretarias ficam mantidos 24 (vinte e quatro) cargos de Assessor Técnico, assim distribuídos: I. Secretaria de Governo 01 (um) cargo; II. Secretaria dos Negócios Jurídicas 03 ( três) cargos; III. Secretaria da Administração 03 (três) cargos; IV. Secretaria de Finanças 02 (dois) cargos; V. Secretaria da Cidadania 02 (dois) cargos; VI. Secretaria de Edificações e Urbanismo 01 (um) cargo; VII. Secretaria de Serviços Públicos 02 (dois) cargos; VIII. Secretaria de Educação e Cultura 03 três) cargos; IX. Secretaria da Saúde 03 (três) cargos; X. Secretaria de Esportes e Lazer 01 (um) cargo; XI. Secretaria de Transportes e Defesa Social 01 (um) cargo; XII. Secretaria de Desenvolvimento Econômico 01 (um) cargo; XIII. Secretaria das Relações do Trabalho 01 (um) cargo.

         Ao assessor técnico, nos termos da descrição das funções de fls. 305 e de fls. 663, compete: “Viabilizar as metas, programas e projetos desenvolvidos pelo secretário e servir de elo de coordenação com as Diretorias, Divisões e Seções segundo as diretrizes de sua Secretaria. Executar outras funções inerentes ao ser cargo, de acordo com seu superior imediato”.

 

         A Lei n. 6.819, de 15 de maio de 2003, decorrente do Projeto de Lei n. 75/2003, de autoria do Executivo, “AUTORIZA A PREFEITURA MUNICIPAL DE SOROCABA A CELEBRAR CONVÊNIO COM O ESTADO DE SÃO PAULO, ATRAVÉS DE SUA SECRETARIA DE JUSTIÇA E DEFESA DA CIDADANIA, JUNTA COMERCIAL DO ESTADO DE SÃO PAULO - JUCESP E ENTIDADES, PARA INSTALAÇÃO DE ESCRITÓRIO REGIONAL DA JUCESP EM SOROCABA E DÁ OUTRAS PROVIDÊNCIAS”.

         O art. 1º dispõe:

Art. 1º - Fica por esta lei, autorizada a PREFEITURA MUNICIPAL DE SOROCABA a celebrar convênio com o Estado de São Paulo, através de sua SECRETARIA DA JUSTIÇA E DEFESA DA CIDADANIA, JUNTA COMERCIAL DO ESTADO DE SÃO PAULO - JUCESP, SINDICATO DO COMÉRCIO VAREJISTA DE SOROCABA, SINDICATO DOS CONTABILISTAS DE SOROCABA, SINDICATO RURAL DE SOROCABA que tem por objetivo a instalação de um Escritório Regional da JUCESP, no município de Sorocaba.

 

         Por força do mencionado convênio, o art. 3º da Lei n. 6.819/2003, “O Município obriga-se a colocar à disposição do Escritório Regional, servidores públicos a ele vinculados, sem prejuízo de seus vencimentos e vantagens, os quais terão competência para proferir decisões singulares, mediante designação individual da JUCESP” – destaques nossos.

         A seguir, o art. 4º da mesma lei, de forma inconstitucional, cria dois cargos administrativos:

Art. 4º - Para a disponibilidade de que trata o artigo anterior, ficam criados 02 (dois) cargos administrativos exclusivos para atendimento ao presente convênio, conforme Anexo I integrante da presente Lei.

 

                   Como se vê, os incisos V, VIII, XI, XIII, XIV, XV, XVII, do art. 19, e o art. 20, da Lei n. 5.394/97, do município de Sorocaba são verticalmente incompatíveis com a Constituição do Estado de São Paulo, em especial com as seguintes disposições:

 

Art. 111 – A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação e interesse público.

 

Art. 115 - Para a organização da administração pública direta e indireta, inclusive as fundações instituídas ou mantidas por qualquer dos Poderes do Estado, é obrigatório o cumprimento das seguintes normas:

I - os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei;

II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia, em concurso público de provas ou de provas e títulos, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão, declarado em lei, de livre nomeação e exoneração;

 

Art. 144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”                                      

 

                   A Constituição em vigor consagrou o Município como entidade federativa indispensável ao nosso sistema federativo, integrando-o na organização político-administrativa e garantindo-lhe plena autonomia, como se observa da análise dos arts. 1.º, 18, 29, 30 e 34, VI, “c” da CF (Cf. Alexandre de Moraes, in “Direito Constitucional”, Atlas, 7.ª ed., p. 261).

 

                   Essa autonomia consagrada aos Municípios não tem caráter absoluto e soberano, muito pelo contrário, encontra limites nos princípios emanados dos poderes públicos e dos pactos fundamentais, que instituíram a soberania de um povo (Cf. De Plácido e Silva, “Vocabulário Jurídico”, Forense, Rio de Janeiro, Volume I, 1984, p. 251), sendo definida por José Afonso da Silva como “a capacidade ou poder de gerir os próprios negócios, dentro de um círculo prefixado por entidade superior”, que no caso é a Constituição (Cf. “Curso de Direito Constitucional Positivo”, Malheiros Editores, São Paulo, 8.ª ed., 1992, p. 545).

                   A autonomia municipal se assenta em quatro capacidades básicas: (a) auto-organização, mediante a elaboração de lei orgânica própria, (b) autogoverno, pela eletividade do Prefeito e dos Vereadores as respectivas Câmaras Municipais, (c) autolegislação, mediante competência de elaboração de leis municipais sobre áreas que são reservadas à sua competência exclusiva e suplementar, (d) auto-administração ou administração própria, para manter e prestar os serviços de interesse local (Cf. José Afonso da Silva, ob. cit., p. 546).

                   Nessas quatro capacidades, encontram-se caracterizadas a autonomia política (capacidades de auto-organização e autogoverno), a autonomia normativa (capacidade de fazer leis próprias sobre matéria de sua competência), a autonomia administrativa (administração própria e organização dos serviços locais) e a autonomia financeira (capacidade de decretação de seus tributos e aplicação de suas rendas, que é uma característica da auto-administração) (ob. e loc. cits).                                       

                   Assim, por força da autonomia administrativa de que foram dotadas, as entidades municipais são livres para organizar os seus próprios serviços, segundo suas conveniências locais. E, na organização desses serviços públicos, a Administração cria cargos e funções, institui classes e carreiras, faz provimentos e lotações, estabelece vencimentos e vantagens e delimita os deveres e direitos de seus servidores (Cf. Hely Lopes Meirelles, in “Direito Municipal Brasileiro”, Malheiros Editores, São Paulo, 1996, 8.ª edição, p. 420).

                   Contudo, a liberdade conferida aos Municípios para organizar os seus próprios serviços não é ampla e ilimitada; ela se subordina às seguintes regras fundamentais e impostergáveis: (a) a que exige que essa organização se faça por lei; (b) a que prevê a competência exclusiva da entidade ou Poder interessado; e (c) a que impõe a observância das normas constitucionais federais pertinentes ao servidor público (ob. e loc. cits.)

                   Feitas essas observações iniciais, verifica-se neste caso que a Prefeitura Municipal e a Câmara Municipal de Sorocaba criaram cargos de provimento em comissão para o exercício de funções estritamente técnicas ou profissionais, próprias dos cargos de provimento efetivo. São funções que denotam a natureza profissional do vínculo entre seus agentes e a Administração Pública e que, por essa razão, só poderiam ser preenchidas por concurso público.

                   Segundo RUY CIRNE LIMA (“Princípios de Direito Administrativo, RT, 6.ª ed., p. 162), o funcionário público profissional se peculiariza por quatro característicos básicos, a saber: (a) natureza técnica ou prática do serviço prestado; (b) retribuição de cunho profissional; (c) vinculação jurídica à Administração Direta; (d) caráter permanente dessa vinculação.

                   Desse modo, nitidamente diferenciado dos cargos que reclamam provimento em comissão, as funções profissionais devem ser exercidas em caráter permanente, ou seja, pelo quadro estável de servidores públicos municipais, os quais, em conformidade com o disposto no art. 115, inciso II, da Constituição do Estado de São Paulo, só podem ser arregimentados por concurso público de provas ou de provas e títulos.

                   Na verdade, o cargo em comissão destina-se apenas às atribuições de “direção, chefia e assessoramento” (CF., art. 37, inciso V, com a redação dada pela EC n.º 19/98) e tem por finalidade propiciar ao governante o controle das diretrizes políticas traçadas. Exige, portanto, das pessoas indicadas a titularizá-los, absoluta fidelidade à orientação fixada pela autoridade nomeante. Em outras palavras, o cargo de provimento em comissão está diretamente ligado ao dever de lealdade à linha fixada pelo agente político superior.

                   Daí por que a exceção contida na parte final do inciso II, do artigo 115, da Constituição do Estado de São Paulo - “ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração” -, que, no ponto, reproduz a dicção do artigo 37, inciso II, da Constituição da República, tem alcance limitado à situações excepcionais, relativas aos cargos cuja natureza especial justifique a dispensa de concurso público.

                   Torna-se evidente, portanto, que a limitação apontada não tem caráter puramente formal, de simples e incriteriosa indicação legal de cargos de provimento em comissão, que pudesse afastar o princípio constitucional da igual acessibilidade aos cargos públicos.

                   Bem a propósito, ao estudar com profundidade esse assunto, o jurista MARCIO CAMMAROSANO deixou anotado que o princípio democrático implica no princípio da igualdade “e este no princípio da igual acessibilidade dos cargos públicos, com o que se resguarda também o princípio da probidade administrativa” (Cf. “Provimento de Cargos Públicos no Direito Brasileiro”, Revista dos Tribunais, São Paulo, 1.ª ed., p. 45).

                   Assim, para que a lei criadora de um cargo em comissão não venha a se constituir em burla ao princípio constitucional arrolado, enunciado expressamente pelo artigo 37, incisos I e II, da Constituição da República, deverá observar criteriosamente a natureza das funções a serem desempenhadas, pois, no dizer de CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO (O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, Editora Revista dos Tribunais, 1.ª edição, pág. 49), “impende que exista uma adequação racional entre o tratamento diferençado construído e a razão diferencial que lhe serviu de supedâneo”.

                   Afinado a esse mesmo entendimento, HELY LOPES MEIRELLES (“Direito Administrativo Brasileiro”, Malheiros, 18.ª ed., p. 378) adverte sobre pronunciamento do Supremo Tribunal Federal no sentido de que “a criação de cargo em comissão em moldes artificiais e não condizentes com as praxes de nosso ordenamento jurídico e administrativo, só pode ser encarada como inaceitável esvaziamento da exigência constitucional de concurso”.

                   E, da mesma forma, já decidiu o Pretório Excelso que “a exigência constitucional do concurso público não pode ser contornada pela criação arbitrária de cargos em comissão para o exercício de funções que não pressuponham o vínculo de confiança que explica o regime de livre nomeação e exoneração que os caracteriza.” (STF, RTJ 156/793)

                   Nesse contexto, não existe qualquer necessidade do estabelecimento de vínculo de confiança para o exercício dos cargos reproduzidos na presente inicial, criados pelos incisos V, VIII, XI, XIII, XIV, XV, XVII, do art. 19, e pelo art. 20, ambos da Lei n. 5.394, de 17 de junho de 1.997, do município de Sorocaba.

                   Na esteira desse raciocínio, é inescusável que a parte final do inciso II do art. 115 da Constituição do Estado de São Paulo, tem alcance circunscrito a situações em que o requisito da confiança seja predicado indispensável ao exercício do cargo. De fato, como se trata de uma exceção à regra do concurso público, a criação de cargos em comissão pressupõe o atendimento do interesse público e só se justifica para o exercício de funções de “direção, chefia e assessoramento”, em que seja necessário o estabelecimento de vínculo de confiança entre a autoridade nomeante e o servidor nomeado. Fora desses parâmetros, é inconstitucional qualquer tentativa de criação de cargos dessa natureza.

                  Os cargos, cuja validade jurídico-constitucional ora se examina, não se apresentam como cargos ou funções de administração superior, ou mesmo de “direção, chefia e assessoramento”, que exija relação de confiança ou especial fidelidade às diretrizes traçadas pela autoridade nomeante, mas sim de cargo comum, de natureza profissional, que deve ser assumido em caráter permanente por servidores aprovados em concurso.

                   Bem a propósito, ao examinar iniciativa semelhante, o Órgão Especial desse Egrégio Tribunal de Justiça (ADIn. n.º 11.939-0, relator Des. OLIVEIRA COSTA) entendeu por bem declarar a inconstitucionalidade material de expressões de lei criadora de cargos em comissão, cuja natureza não correspondia às características próprias dessas funções.

                   O Supremo Tribunal Federal, ao julgar a ADI n. 3706/MS[1], e apreciar caso semelhante, declarou a inconstitucionalidade de Lei Estadual que criou cargo em comissão que tem atribuição meramente técnica:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI ESTADUAL QUE CRIA CARGOS EM COMISSÃO. VIOLAÇÃO AO ART. 37, INCISOS II E V, DA CONSTITUIÇÃO. Os cargos em comissão criados pela Lei nº 1.939/1998, do Estado de Mato Grosso do Sul, possuem atribuições meramente técnicas e que, portanto, não possuem o caráter de assessoramento, chefia ou direção exigido para tais cargos, nos termos do art. 37, V, da Constituição Federal. Ação julgada procedente”.

                   Conclui-se, portanto, que os dispositivos, nos pontos em que criaram os cargos de provimento em comissão, que não dependem para o seu exercício do estabelecimento de qualquer vínculo de confiança com a autoridade nomeante, são verticalmente incompatíveis com os arts. 111 e 115, incisos I e II, da Constituição do Estado de São Paulo, cuja observância é obrigatória pelos Municípios, por força do art. 144 dessa mesma Carta, impondo-se, por conseguinte, a sua exclusão da ordem constitucional em vigor.

         A Lei n. 6.819, de 15 de maio de 2003, decorrente do Projeto de Lei n. 75/2003, de autoria do Executivo, autoriza a Prefeitura Municipal de Sorocaba a celebrar convênio.

         A referida lei é incompatível com a Constituição Estadual, especial com o art. 5º, já reproduzido, bem como afronta o art. 47, incisos II e XIV.

                   Com efeito, malgrado os elevados propósitos que nortearam a sua edição, não reúne a mínima condição de subsistir na ordem jurídica vigente, uma vez que, a pretexto de disciplinar assunto de interesse local, a Câmara Municipal de Sorocaba, apesar da iniciativa do Prefeito Municipal, acabou por interferir na esfera de competência do Executivo, acarretando, tal iniciativa, o desequilíbrio no delicado sistema de relacionamento entre os poderes municipais.

                   Com efeito, é irrecusável a competência da Câmara para legislar sobre os assuntos de interesse local, mas desde que observados os limites constitucionais que decorrem, basicamente, da necessidade de preservar-se a convivência pacífica dos poderes políticos, entre os quais não existe nenhuma relação de hierarquia e subordinação, mas sim de independência e harmonia, em face do contido no art. 5.º, da Constituição do Estado de São Paulo.

                   Como se sabe, a administração municipal incumbe ao Prefeito, que é quem define as prioridades da sua gestão, as políticas públicas a serem implementadas e os serviços públicos que serão prestados à população. Nessa seara, a Câmara não tem como impor suas preferências, podendo quando muito formular indicações, mas não sujeitar aquela autoridade ao cumprimento de lei que, longe de fixar uma regra geral e abstrata, constitui verdadeira ordem ou comando, para que se faça algo.

                   Logo, se a iniciativa em exame for considerada válida – o que corresponde, na prática, a uma tentativa de restabelecer-se o sistema que vigorava ao tempo das Comunas -, ocorrerá uma hipertrofia do Legislativo, que sempre poderá impor suas vontades ao Executivo, por meio da edição de leis[2], criando uma verdadeira relação de subordinação e hierarquia entre os poderes, incompatível com o sistema adotado pela Constituição em vigor, o qual se baseia na independência e harmonia entre os poderes, cuja observância é vital para a preservação do Estado de Direito.

                   Na realidade, o diploma legal ora questionado é lei apenas em sentido formal’, porquanto não encerra o conteúdo de uma norma abstrata ou teórica, instituída em caráter permanente e de generalidade. As leis formais não se mostram regras jurídicas, mas simples atos administrativos dos poderes legislativos, indicando-se decisões particulares, tais como a lei orçamentária, as leis de autorização ou as leis que concedem favores especiais a determinadas pessoas. São leis que atendem a casos particulares, de natureza por vezes executiva, ou reguladoras de situações especiais. Bem por isso, aliás, é que são consideradas leis impróprias (Cf. DE PLACIDO E SILVA, “Vocabulário Jurídico”, ed. Forense, Rio de Janeiro, Volume III, 1984, p. 67).

                   Advém, daí, a necessidade de saber se a Câmara dispõe de ampla liberdade para editar leis meramente autorizativas ou se há algum limite a essa prerrogativa, máxime nos casos em que a autorização é dada para a prática de ato que se insere na esfera de competência de outro Poder, tal como neste caso, em que se prevê a celebração de convênio com entidade de classe.

                   Sobre as leis autorizativas, notadamente daquelas aprovadas sem que tenha sido solicitada qualquer autorização à Câmara, SERGIO RESENDE DE BARROS anotou que:

         "...insistente na prática legislativa brasileira, a ‘lei’ autorizativa constitui um expediente usado por parlamentares para granjear o crédito político pela realização de obras ou serviços em campos materiais nos quais não têm iniciativa das leis, em geral matérias administrativas. Mediante esse tipo de ‘leis’, passam eles, de autores do projeto de lei, a co-autores da obra ou serviço autorizado. Os constituintes consideraram tais obras e serviços como estranhos aos legisladores e, por isso, os subtraíram da iniciativa parlamentar das leis. Para compensar essa perda, realmente exagerada, surgiu ‘lei’ autorizativa,  praticada cada vez mais exageradamente. Autorizativa é a ‘lei’ que - por não poder determinar - limita-se a autorizar o Poder Executivo a executar atos  que já lhe estão autorizados pela Constituição, pois estão dentro da competência constitucional desse Poder. O texto da ‘lei’ começa por uma expressão que se tornou padrão: ‘Fica o Poder Executivo autorizado a...’ O objeto da autorização -  por já ser de competência constitucional do Executivo - não poderia ser ‘determinado’, mas é apenas ‘autorizado’ pelo Legislativo. Tais ‘leis’, óbvio, são sempre de iniciativa parlamentar, pois jamais teria cabimento o Executivo se autorizar a si próprio, muito menos onde já o autoriza a própria Constituição. Elas constituem um vício patente." (Leis Autorizativas,  Revista da  Instituição Toledo de Ensino, p. 262,  agosto a novembro  de 2000, Bauru.)

                  

                   Na ordem constitucional vigente, como anotado em tópico precedente, não existe a mínima possibilidade de a administração municipal ser exercida pela Câmara, por intermédio da edição de leis. Em relação a esse aspecto, aliás, não paira nenhuma controvérsia, uma vez que a atual Constituição é suficientemente clara ao atribuir ao Prefeito a competência privativa para exercer, com o auxílio dos Secretários Municipais, a direção superior da administração municipal (CE, art. 47, inciso II) e a praticar os atos de administração, nos limites de sua competência (CE., art. 47, inciso XIV).

                   Bem por isso, ELIVAL DA SILVA RAMOS adverte que: “Sob a vigência de Constituições que agasalham o princípio da separação de Poderes, no entanto, não é lícito ao Parlamento editar, a seu bel-prazer, leis de conteúdo concreto e individualizante. A regra é a de que as leis devem corresponder ao exercício da função legislativa. A edição de leis meramente formais, ou seja, ‘aquelas que, embora fluindo das fontes legiferantes normais, não apresentam os caracteres de generalidade e abstração, fixando, ao revés, uma regra dirigida, de forma direta, a uma ou várias pessoas ou a determinada circunstância’, apresenta caráter excepcional. Destarte, deve vir expressamente autorizada no Texto Constitucional, sob pena de inconstitucionalidade substancial.” (“A Inconstitucionalidade das Leis - Vício e Sanção”, Saraiva, 1994, p. 194).

                   Nesse contexto, a aprovação de lei pela Câmara Municipal que autoriza o Executivo a criar uma obrigação para setores de seu próprio organismo de execução, só pode ser interpretada como atentatória ao postulado básico da independência e harmonia entre os poderes (CE., art. 5.º, caput), visto que a Constituição em vigor não exige nenhuma autorização especial para a prática de ato que se insere na órbita de competência tipicamente administrativa.

                    Esse entendimento já foi adotado pelo Egrégio Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:

 

    “A lei que autoriza o Executivo a agir em matérias de sua iniciativa privada implica, em verdade, uma determinação, sendo, portanto inconstitucional”. (ADIN n. 593099377 – rel. Des. Maria Berenice Dias – j. 7.8.00).

 

                   Acrescente-se, ainda, que, por força da mencionada lei inconstitucional, o art. 3º obrigou o Município a colocar à disposição do Escritório Regional servidores públicos a ele vinculados. Também há inconstitucionalidade do art. 4º ao criar dois cargos administrativos para atender às exigências do convênio autorizado pela Câmara.

         Nestes termos, aguardo seja determinado o processamento da presente ação, colhendo-se informações do Prefeito e da Câmara Municipal de Sorocaba, as quais examinarei oportunamente, vindo, no final, a ser declarada a inconstitucionalidade dos incisos V, VIII, XI, XIII, XIV, XV, XVII do art. 19 e do art. 20, da Lei n. 5.394, de 17 de junho de 1.997, bem como da Lei n. 6.819, de 15 de maio de 2003, do município de Sorocaba, devendo, após, ser oficiado aos membros daquela Comuna solicitando a adoção das providências necessárias à suspensão definitiva dos efeitos de sua execução.

 

São Paulo, 10 de setembro de 2008.

 

 

 

 

FERNANDO GRELLA VIEIRA

Procurador-Geral de Justiça



[1] Relator: Min. GILMAR MENDES. Publicação: DJE-117, div. Em 4-10-2007.

[2] R. Carré de Malberg distingue Estado legal e Estado de Direito: “El Estado de derecho se establece simple y únicamente en interés y para la salvaguardia de los ciudadanos; sólo tiende a asegurar la protección de su derecho o de su estatuto individual. El régimen del Estado legal está orientado en otra dirección. Se relaciona con un concepto político referente a la organización fundamental de los poderes, concepto según el cual debe la autoridad administrativa, en todos los casos y respecto a todas las materias, subordinarse al órgano legislativo, en el sentido de que no podrá actuar sino en ejecución o por autorización de una ley. Esta subordinación no se reduce desde luego a aquellos actos de administración que producen efectos de orden individual respecto a los administrados, sino que se extiende, en principio, a todas las medidas de administración, hasta aquellas – reglamentarias o particulares – que, sin tocar al derecho de los administrados, conciernen únicamente al funcionamiento interno de los servicios administrativos y sólo deben dejar sentir sus efectos en el interior del organismo administrativo.” (Teoría General del Estado, Traducción de José Lión Depetre, Facultad de Derecho/UNAM e Fondo de Cultura Económica, México, 2001, p. 451)