Excelentíssimo Senhor Doutor Desembargador Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

 

Protocolado nº 0063.257/2011

Assunto: Inconstitucionalidade de dispositivos da Lei Complementar Municipal nº 3.897, de 11 de julho de 2005, de Valinhos (com as alterações realizadas pela Lei Complementar nº 3.961, de 26 de dezembro de 2005, e pela Lei Complementar nº 4.373, de 08 de dezembro de 2008).

 

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Dispositivos da Lei Complementar Municipal nº 3.897, de 11 de julho de 2005, de Valinhos (com as alterações realizadas pela Lei Complementar nº 3.961, de 26 de dezembro de 2005, e pela Lei Complementar nº 4.373, de 08 de dezembro de 2008), que “Dispõe sobre o Programa de Desenvolvimento Econômico do Municípios de Valinhos- PRODEVAL e dá outras providências”.

2)      Inconstitucionalidade. Outorga, por lei, de benefício ou incentivo financeiro, consistente na devolução de parte da receita proveniente do repasse do ICMS e do ISSQN em razão do incremento do valor adicionado da empresa no Município, por violação ao princípio de não afetação da receita de impostos. Violação do princípio da igualdade (artigos 111, 144, 163, II, 176, IV, 297, todos da Constituição do Estado).

 

         O PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO, no exercício da atribuição prevista no art. 116, VI, da Lei Complementar Estadual n. 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo), em conformidade com o disposto no art.125, § 2º, e art. 129, IV, da Constituição Federal, e ainda art. 74, VI, e art. 90, III, da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado, vem, respeitosamente, perante esse Egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE em face de dispositivos  da  Lei Complementar Municipal nº 3.897, de 11 de julho de 2005, de Valinhos (com as alterações realizadas pela Lei Complementar nº 3.961, de 26 de dezembro de 2005 , e pela Lei Complementar nº 4.373, de 08 de dezembro de 2008), a seguir mencionados pelos fundamentos a seguir expostos:

1)  DOS DISPOSITIVOS IMPUGNADOS

A Lei Complementar Municipal nº 3.897, de 11 de julho de 2005, de Valinhos (com as alterações realizadas pela Lei Complementar nº 3.961, de 26 de dezembro de 2005, e pela Lei Complementar nº 4.373, de 08 de dezembro de 2008), possui dispositivos inconstitucionais, a seguir transcritos:

“(...)                               

Art. 2º. Fica o Poder Executivo autorizado a outorgar às entidades empresárias, atuantes no ramo industrial, comercial ou no de prestação de serviços que se instalarem no Município, bem como aquelas que já estejam em atividade no território municipal, e pretendam aumentar sua produção, os seguintes benefícios: (redação alterada pela Lei nº 4.373/08)

I. ressarcimento das despesas, comprovadamente efetuadas, relativas à aquisição de terreno necessário à implantação da entidade empresária ou à ampliação de sua unidade no Município, na forma disposta nos artigos 7º e 8º; (redação alterada pela Lei nº 4.373/08).

II. ressarcimento das despesas relativas à execução dos serviços de terraplenagem em área adquirida, necessários à implantação de nova entidade empresária no Município ou à ampliação de entidade empresária já existente; (redação alterada pela Lei nº 3.961/05).

III. ressarcimento dos recursos financeiros investidos nos serviços e obras de natureza pública, assim considerados e aprovados pela Administração Pública Municipal, necessários à implantação de nova entidade empresária, ou à ampliação de unidade já existente, com a finalidade de incrementar sua atividade econômica no Município; (redação alterada pela Lei nº 3.961/05).

(...)

VII. isenção do Imposto Predial e Territorial Urbano, Taxas de coleta de lixo e limpeza pública, incidentes sobre a área do terreno e da edificação, correspondente a até quatro vezes a área efetivamente construída, limitada à área total adquirida, nos cinco primeiros anos a contar da data de início do efetivo exercício das atividades sociais da entidade empresária no Município; (redação alterada pela Lei nº 4.373/08)

VIII. isenção do Imposto Predial e Territorial Urbano incidentes sobre a área construída ampliada nos cinco primeiros anos contados do ano seguinte ao da expedição do respectivo "Habite-se"; (redação alterada pela Lei nº 4.373/08)

IX. aplicação da alíquota mínima de 2% (dois por cento) para cobrança do Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN) incidente sobre a execução das obras de construção civil destinadas a abrigar as novas entidades empresárias e as que estão ampliando suas instalações; (redação alterada pela Lei nº 3.961/05)

(...)

XI. redução de um ponto percentual da alíquota do ISSQN previsto na lista de serviços do Código Tributário do Município, respeitando o limite mínimo de dois por cento, pelo prazo de dez anos, contado esse prazo do exercício inicial das atividades sociais da entidade empresária na unidade implantada ou ampliada, desde que estas requeiram e sejam habilitadas a usufruírem desse beneficio; (redação alterada pela Lei nº 4.373/08)

(...)

§ 1o. As entidades empresárias que se instalarem no Município farão jus ao ressarcimento previsto no inciso I em valores equivalentes à proporção do valor do imóvel que corresponda a quatro vezes a área efetivamente construída, limitado à área total adquirida. (redação alterada pela Lei nº 3.961/05)

§ 2°. As entidades empresárias já instaladas em imóvel próprio no território do Município de Valinhos e que realizarem obras de ampliação da área edificada farão jus ao ressarcimento previsto no inciso I em valores equivalentes à proporção do valor venal do terreno que corresponda a até uma vez e meia a área construída acrescida. (redação alterada pela Lei nº 3.961/05)

§ 3º. Os benefícios previstos nos incisos I, II e III incidirão uma única vez sobre o mesmo imóvel.

§ 4º. Os benefícios previstos nesta Lei somente poderão ser concedidos e estendidos às entidades empresárias atuantes no ramo comercial, desde que estas realizem no território do Município de Valinhos empreendimento com área de edificação superior a 2.000,00 m² (dois mil metros quadrados), ao qual esteja vinculada, quando de sua efetiva implantação para o desenvolvimento de suas atividades, a geração de emprego de mais de 50 (cinqüenta) trabalhadores, observada a determinação do inciso III do artigo 4o. (redação alterada pela Lei nº 3.961/05)

(...)

Art. 3º. Às entidades empresárias que se instalarem no Município em edificações já existentes, mediante contrato de locação, sublocação ou arrendamento mercantil, para desenvolver atividades industriais ou de prestação de serviços, serão concedidos os benefícios constantes nos incisos V, VI, VII, X e XI do artigo 2º, desde que atendido o disposto no artigo 4º. (redação alterada pela Lei nº 4.373/08)

(...)

§ 5°. À entidade empresária construtora ou ao proprietário de imóvel no qual estiver sendo edificado prédio destinado à locação ou arrendamento mercantil, com área superior a 2.000 m², serão concedidos os benefícios previstos nos incisos IV, VII, IX e XII do artigo 2º.(redação alterada pela Lei nº 4.373/08)

(...)

Parágrafo único. O valor do ressarcimento mensal, previsto nos artigos 7o e 8o, deverá ser requerido pela entidade empresária que cumprir as exigências legais, anexando a respectiva planilha de cálculo que será conferida pela Secretaria Municipal da Fazenda e encaminhada à Comissão Especial, que emitirá parecer conclusivo. (redação alterada pela Lei nº 3.961/05)

(...)

Art. 7º. O ressarcimento das despesas e dos investimentos, previsto na presente, será efetuado mediante requerimento da entidade empresária interessada através de parcelas programadas, a partir do exercício em que o índice do Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS) do Município for influenciado pelo valor adicionado declarado pela entidade empresária, através de Guia de Informação e Apuração de ICMS (GIA) ou documento que venha a substituí-la. (redação alterada pela Lei nº 3.961/05)

§ 1°. O ressarcimento será mensal e corresponderá a 40% (quarenta por cento) do valor das quotas do ICMS, ou do imposto substituto, transferido à Municipalidade em função da participação relativa do valor adicionado da entidade empresária na formação do índice de ICMS do Município, excluídos do total recebido os valores referentes às aplicações obrigatórias na educação e na saúde, de acordo com as disposições constitucionais incidentes à espécie. (redação alterada pela Lei nº 3.961/05)

§ 2º. O ressarcimento fica limitado ao valor total das despesas e dos investimentos efetivamente realizados e comprovados, devendo ser corrigidos anualmente pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), ou por seu substituto.

§ 3º. O ressarcimento das despesas e dos investimentos efetivamente realizados e comprovados de entidade empresária já instalada no Município, que amplie sua área construída, será feito mensalmente, de modo proporcional ao aumento real do seu valor adicionado, calculado da seguinte forma: (redação alterada pela Lei nº 3.961/05)

VAA = VA atual - VA base (1 + i), sendo

VAA - significa Valor Adicionado Acrescido em função da ampliação da entidade empresária;

VA atual - significa Valor Adicionado do primeiro ano de funcionamento, após a ampliação das instalações da entidade empresária;

VA base - significa Valor Adicionado do ano em que foi concluída a ampliação da entidade empresária;

i - significa taxa de crescimento do Valor Adicionado do Estado de São Paulo, no período compreendido entre o ano base e o atual.

§ 4º. Para o cálculo do valor a ser ressarcido nos anos seguintes deverá ser utilizada a mesma fórmula, havendo mudança apenas do ano atual.

Art. 8°. No caso de entidades empresárias prestadoras de serviços tributadas pelo Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN), o ressarcimento das despesas e dos investimentos, como previstos nesta lei, será feito mensalmente, a partir do exercício subseqüente ao da protocolização do requerimento dessas entidades, com desconto de até 30% (trinta por cento) da respectiva tributação, desde que efetivamente recolhido. (redação alterada pela Lei nº 4.373/08)

§ 1°. No caso de ampliação de entidade empresária prestadora de serviços, o benefício fiscal incidirá sobre o valor acrescido do tributo, deduzido o valor médio dos últimos 12 meses, atualizados monetariamente pela variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC). (redação alterada pela Lei nº 4.373/08)

§ 2º. A critério do Poder Executivo o benefício pode ser concedido através de desconto na respectiva guia de recolhimento do tributo.

§ 3º. O ressarcimento fica limitado ao valor total das despesas e dos investimentos efetivamente realizados e comprovados, devendo ser corrigidos anualmente pelo INPC, ou por seu substituto. (redação alterada pela Lei nº 4.373/08)

(...)

Art. 10. As entidades empresárias já possuidoras de imóvel no Município que queiram desenvolver atividades econômicas, poderão gozar dos benefícios ora instituídos, desde que cumpram todas as exigências contidas nesta Lei. (redação alterada pela Lei nº 3.961/05)

§ 1°. As entidades empresárias já instaladas no território do Município de Valinhos e que possuam ou adquiram área de terra para edificação de nova unidade visando ampliação de suas atividades, inclusive com diversificação de sua produção existente, por saturação da unidade atual ou por impedimento motivado pela Lei de Zoneamento e Ocupação do Solo, farão jus aos benefícios previstos no artigo 2°. (redação alterada pela Lei nº 3.961/05)

§ 2°. O ressarcimento previsto no parágrafo anterior será calculado de acordo com o estabelecido no § 3° do artigo 7° e § 1° do artigo 8°. (redação alterada pela Lei nº 3.961/05)

Art. 11. As entidades empresárias que adquirirem imóveis com edificações já prontas e que passarem a desenvolver atividades no território do Município, poderão gozar dos benefícios previstos no artigo 2°, desde que cumpram todas as exigências contidas na presente Lei e comprovem que não se trata de simples mudança de razão social, ou de proprietário, no caso de entidade empresária que já funcionava no território municipal. (redação alterada pela Lei nº 3.961/05)

§ 1°. As entidades empresárias tratadas neste artigo farão jus ao ressarcimento do valor venal do terreno correspondente a até uma vez e meia a área construída existente. (redação alterada pela Lei nº 3.961/05)

§ 2°. As entidades empresárias já instaladas no território municipal, e que venham adquirir imóveis edificados, visando ampliar suas atividades, farão, obedecidas as exigências da presente lei, jus aos benefícios descritos no "caput" deste artigo, independentemente da área ocupada anteriormente, calculando-se o seu ressarcimento em conformidade com o estabelecido nos § 3° do artigo 7° e § 1° do artigo 8°. (redação alterada pela Lei nº 3.961/05)

§ 3º. As entidades empresárias que investirem na modernização do seu processo produtivo tornando-o mais eficiente, sem prejuízo de, alternativa ou cumulativamente, diversificarem a produção, demonstrando efetivo aumento equivalente ao dobro do valor adicionado, como apresentado no exercício anterior, farão jus ao desconto no valor do seu Imposto Predial e Territorial Urbano pelo período de cinco anos a contar do exercício subseqüente ao do fato gerador. (parágrafo incluído pela Lei nº 4.373/08)

§ 4º. O desconto de que trata o parágrafo anterior não é cumulativo e será concedido anualmente até o valor máximo correspondente a 24% (vinte e quatro por cento) do valor acrescido nas transferências de ICMS para o Município em função do aumento do valor adicionado da entidade empresária, limitado ao valor anual do IPTU. (parágrafo incluído pela Lei nº 4.373/08)

(...)

Art. 15. As entidades empresárias que já tenham requerido os benefícios da Lei nº 3.764, de 29 de janeiro de 2004, poderão optar pela continuidade da análise pela referida disposição legal ou pelas disposições emergentes da presente Lei. (redação alterada pela Lei nº 3.961/05)

§ 1º. As entidades empresárias que estão em processo de implantação ou ampliação de sua unidade no território municipal, em conformidade com a Lei 3764/04, e que ainda não iniciaram suas atividades sociais até a data da publicação desta Lei, poderão optar e requerer os benefícios ora previstos, desde que cabíveis, e ao seu tempo, não lhes sendo possível pleitear benefícios de etapas vencidas. (parágrafo renumerado pela Lei nº 4.373/08)

§ 2º. Serão preservados os direitos adquiridos com fundamento na Lei Municipal nº 3.897/05, alterada pela Lei n° 3.961/05, cujos processos administrativos tenham sido deferidos pelo Chefe do Executivo Municipal em matéria já apreciada e deliberada pela Comissão Especial do PRODEVAL. (parágrafo incluído pela Lei nº 4.373/08)

(....)”

 

A lei local possibilita a outorga às empresas privadas de incentivos ou benefícios financeiros decorrentes, consistentes na devolução de parcela do Imposto sobre Circulação de Mercadorias (ICMS) e do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN).

         Os benefícios criados pelo referido diploma são verticalmente incompatíveis com nosso ordenamento constitucional tributário, como será demonstrado a seguir.

2)  INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL: VEDAÇÃO DE VINCULAÇÃO DE RECEITA

Os dispositivos anteriormente mencionados da Lei Complementar Municipal nº 3.897, de 11 de julho de 2005, de Valinhos (com as alterações realizadas pela Lei Complementar nº 3.961, de 26 de dezembro de 2005 , e pela Lei Complementar nº 4.373, de 08 de dezembro de 2008), são verticalmente incompatíveis com os preceitos a seguir transcritos da Constituição do Estado de São Paulo:

“(...)

Art. 111. A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência.

(...)

Art. 144. Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.

(...)

Art. 163. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado ao Estado:

(...)

II - instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos.

(...)

Art. 176: São vedados:

(...)

IV – a vinculação de receita de impostos a órgão, fundo ou despesa, ressalvadas as permissões previstas no art. 167, IV, da Constituição Federal e a destinação de recursos para a pesquisa científica e tecnológica, conforme dispõe o artigo 218, § 5º, da Constituição Federal;

(...)

Art. 297. São também aplicáveis no Estado, no que couber, os artigos das Emendas à Constituição Federal que não integram o corpo do texto constitucional, bem como as alterações efetuadas no texto da Constituição Federal que causem implicações no âmbito estadual, ainda que não contempladas expressamente pela Constituição do Estado.

(...)”

Importante recordar, ademais, que os dispositivos acima mencionados (art. 111, art. 163, II, e art. 176, IV, da Constituição Paulista) são normas de reprodução de dispositivos da Constituição da República (art. 37, caput; art. 150, II; e art. 167, IV).

O princípio da não afetação da receita de impostos a órgão, fundo ou despesa, indica a impossibilidade de vinculação dessa espécie tributária (Kiyoshi Harada. Direito Financeiro e Tributário, São Paulo: Atlas, 1998, 4ª ed., p. 74) e significa que “não pode haver mutilação das verbas públicas. O Estado deve ter disponibilidade da massa de dinheiro arrecadado, destinando-o a quem quiser, dentro dos parâmetros que ele próprio elege como objetivos preferenciais” (Régis Fernandes de Oliveira. Curso de Direito Financeiro, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 328).

O princípio da não afetação se justifica “na medida em que reserva ao orçamento e à própria Administração, em sua atividade discricionária na execução da despesa pública, espaço para determinar os gastos com os investimentos e as políticas sociais” (Ricardo Lobo Torres. Tratado de Direito Constitucional, Financeiro e Tributário, Rio de Janeiro: Renovar, 2000, 2ª ed., vol. V, p. 275) e “em virtude da generalidade e da impessoalidade que haverão de presidir a elaboração e a execução do orçamento, em obséquio, inclusive, ao postulado de igualdade, que não poderia tolerar privilégios na destinação dos recursos públicos, que pertencem a toda a coletividade e não a um grupo de suseranos” (Eduardo Marcial Ferreira Jardim. Manual de Direito Financeiro e Tributário, São Paulo: Saraiva, 1994, 2ª ed., p. 25).

No domínio da atividade financeira, a Administração Pública tem a prerrogativa de estabelecimento de metas e prioridades, e os recursos oriundos dos impostos se destinam, em regra, ao atendimento das necessidades gerais, porque “o propósito do princípio é evitar a edição de leis que, vinculando receita proveniente de impostos, prejudiquem o custeio de despesas genéricas pelo orçamento” (Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior. Curso de Direito Constitucional, São Paulo: Saraiva, 1999, 3ª ed., p. 348), assegurando “que os recursos sejam livres e à disposição para a realização de obras e serviços, em conformidade com as necessidades existentes e em obediência à escala de prioridades estabelecidas a partir de análise rigorosa da situação existente” (José Afonso da Silva. Comentário contextual à Constituição, São Paulo: Malheiros, 2006, 2ª ed., p. 697).

Contudo, o inciso IV, do art. 176, da Constituição Paulista, oferece exceções, remetendo a análise diretamente às hipóteses indicadas expressamente no art. 167, IV, da Constituição Federal. Além disso, por força de interpretação sistemática, incluem-se em suas ressalvas as situações mencionadas em outros dispositivos da Constituição Federal (v.g.: arts. 100, § 15, 165, § 8º, 167, § 4º, 204, parágrafo único, art. 216, § 6º, Constituição Federal).

Seja como for, as exceções configuram direito estrito, merecendo interpretação restritiva e refutando ampliações de seu alcance e de seu sentido.

Nesse passo, mostra-se necessário lembrar que “as exceções estão especificadas, tratando-se dos fundos aludidos nos arts. 158 e 159 e também dos recursos de educação e saúde. Ainda é exceção a prestação de garantia às operações de crédito por antecipação de receita e pagamento de crédito da União” (Régis Fernandes de Oliveira. Curso de Direito Financeiro, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 328).

Não seria possível concluir que os dispositivos impugnados nesta ação estariam legitimados na exceção relacionada à “repartição do produto da arrecadação dos impostos a que se referem os arts. 158 e 159”.

A Constituição Federal consagra a repartição das receitas tributárias nos arts. 157 a 159 que compreende três modalidades: a) participação direta dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios no produto da arrecadação de imposto de competência da União (arts. 157, I e 158, I); b) participação no produto de impostos de receita partilhada (arts. 157, II, e 158, II a IV); e c) participação em fundos (art. 159).

Argumenta-se, a partir disso, que “nas duas primeiras modalidades (...), as receitas pertencem às entidades aí contempladas nos exatos limites da determinação constitucional (...) Nas hipóteses dos arts. 157, I, e art. 158, I, as entidades beneficiadas apropriam-se diretamente das verbas que lhe pertencem. Nas demais hipóteses, as entidades políticas tributantes devolvem o quantum respectivo às entidades beneficiadas porque a elas pertence de direito, e pode ser exigido judicialmente. Na terceira modalidade, participação nos fundos, regulada pelo art. 159, a entidade beneficiada tem uma expectativa de receber o quantum que lhe cabe, segundo os critérios aí estabelecidos” (Kiyoshi Harada. Direito Financeiro e Tributário, São Paulo: Atlas, 1998, 4ª ed., pp. 55-58).

Em outras palavras, a repartição de receitas tributárias expressa a “participação sobre a arrecadação de impostos alheios” como “principal mecanismo de transferências financeiras intergovernamentais” que podem ser constitucionais (art. 159), legais (Lei Complementar n. 87/96) ou voluntárias (art. 25, Lei Complementar n. 101/00), “diretas (entregues diretamente aos entes menores ou por eles apropriadas mediante mera transferência orçamentária) ou indiretas (realizadas através de fundos de participação ou de destinação, disciplinados no art. 159 da Constituição Federal de 1988)” (Flávio Rubinstein, in Orçamentos Públicos, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 53, coordenação José Maurício Conti).

A Administração Pública “fica também proibida de proceder à vinculação de receita de impostos a órgão, fundo ou despesa, salvo, é lógico, a própria repartição do produto da arrecadação dos impostos” (Celso Ribeiro Bastos. Curso de Direito Financeiro e de Direito Tributário, São Paulo: Saraiva, 1992, 2ª ed., p. 79).

Assim, para a entidade dotada de competência tributária, a destinação de parcela da receita oriunda de seus impostos é vinculada às entidades beneficiadas com a participação na arrecadação. Mas não é possível que o ingresso da receita daí partilhada na entidade beneficiada venha a ser por esta previamente fixada ou vinculada, ressalvadas as hipóteses dos arts. 198, § 2º, e 212, da Constituição Federal e para os fins ali indicados.

Em outras palavras, mais uma vez chega-se à conclusão de que em se tratando de receita resultante de impostos (ICSM e ISSQN, no caso em exame) só pode ser objeto de prévia afetação ou vinculação nos estritos limites fixados no texto constitucional.

O fato de se tratar também, no caso do ICMS, de repasse ao Município, não legitimaria a interpretação de que como não se trata de tributo da competência municipal, não incidiria a vedação de vinculação de receita.

Para que seja efetivo o respeito ao princípio da não afetação, é irrelevante se a receita é oriunda de imposto de competência própria ou alheia (isto é, resultante da participação).

A fórmula constitucional expressiva da regra da não afetação não menciona “vinculação de impostos”, mas sim, com dicção sugestiva de maior amplitude, “vinculação da receita de impostos”, o que abrange, destarte, a arrecadação tributária própria ou partilhada (repasse ou participação).

Observe-se, a título de reforço, que o ingresso de recursos decorrentes da participação no produto de impostos de outro ente tributante (transferência corrente) qualifica-se como receita pública derivada de natureza tributária, visto que obtida a partir de obrigação legal que grava o patrimônio particular e transfere suas riquezas ao Estado – perfeitamente amoldada ao conceito de tributo constante do art. 3º do Código Tributário Nacional.

A vantagem prevista na lei local é um benefício ou incentivo financeiro. O erário municipal recebe parcela da arrecadação de imposto alheio e concede um percentual ao particular, gerando dispêndio público, pois o benefício é egresso do erário municipal.

Consoante elucida a literatura especializada, a partir da arrecadação, “quando o dinheiro entra nos cofres públicos, ele fica sujeito às regras do Direito Financeiro” (Celso Ribeiro Bastos. Curso de Direito Financeiro e de Direito Tributário, São Paulo: Saraiva, 1992, 2ª ed., p. 136), o que compreende as regras da repartição de receitas tributárias.

Registre-se que, como acentua a doutrina, a diferença entre privilégios fiscais e financeiros é apenas jurídico-formal, pois, “tanto faz diminuir-se a receita, pela isenção ou dedução, como aumentar-se a despesa, pela restituição ou subvenção, que a mesma consequência financeira será obtida” (Ricardo Lobo Torres. Tratado de Direito Constitucional, Financeiro e Tributário, Rio de Janeiro: Renovar, 2000, 2ª ed., vol. V, p. 259).

O benefício financeiro em foco pode ser encarado como subvenção econômica, espécie de transferência corrente (arts. 12, §§ 2º e 3º, II, Lei n. 4.320/64), na medida em que se refere ao fomento de atividades econômicas.

É, de qualquer maneira, um incentivo financeiro da espécie denominada de restituição de tributo a título de incentivo, assim explicado: “a importância restituída já não é tributo, categoria exclusiva de receita, mas uma prestação de direito público idêntica a qualquer outra obrigação do Estado. Não se confunde com a obrigação tributária, por ser exatamente o inverso desta, aparecendo como obrigação financeira criada por lei. (...) No conceito de subvenção, que é indeterminado e multissignificativo, pode se subsumir, pelas semelhanças que com ela guarda, o de restituição-incentivo, isto é, a devolução de tributo como mecanismo de estímulo fiscal”, inegável renúncia de receita (Ricardo Lobo Torres. Tratado de Direito Constitucional, Financeiro e Tributário, Rio de Janeiro: Renovar, 2000, 2ª ed., vol. V, pp. 267-268, 334-335).

De qualquer modo, sendo resultante de receita tributária de impostos, soa inadmissível sua vinculação a despesa específica e determinada que não se compreende no âmbito das exceções previstas no inciso IV do art. 176 da Constituição Federal.

Em hipótese bem semelhante, assim decidiu o Supremo Tribunal Federal:

“(...)

LEI ESTADUAL QUE DETERMINA QUE OS MUNICÍPIOS DEVERÃO APLICAR, DIRETAMENTE, NAS ÁREAS INDÍGENAS LOCALIZADAS EM SEUS RESPECTIVOS TERRITÓRIOS, PARCELA (50%) DO ICMS A ELES DISTRIBUÍDA - TRANSGRESSÃO À CLÁUSULA CONSTITUCIONAL DA NÃO-AFETAÇÃO DA RECEITA ORIUNDA DE IMPOSTOS (CF, ART. 167, IV) E AO POSTULADO DA AUTONOMIA MUNICIPAL (CF, ART. 30, III) - VEDAÇÃO CONSTITUCIONAL QUE IMPEDE, RESSALVADAS AS EXCEÇÕES PREVISTAS NA PRÓPRIA CONSTITUIÇÃO, A VINCULAÇÃO, A ÓRGÃO, FUNDO OU DESPESA, DO PRODUTO DA ARRECADAÇÃO DE IMPOSTOS - INVIABILIDADE DE O ESTADO-MEMBRO IMPOR, AO MUNICÍPIO, A DESTINAÇÃO DE RECURSOS E RENDAS QUE A ESTE PERTENCEM POR DIREITO PRÓPRIO - INGERÊNCIA ESTADUAL INDEVIDA EM TEMA DE EXCLUSIVO INTERESSE DO MUNICÍPIO - DOUTRINA - PRECEDENTES - PLAUSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO - CONFIGURAÇÃO DO ‘PERICULUM IN MORA’ - MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA (STF, ADI-MC 2.355-PR, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 19-06-2002, m.v., DJe 28-06-2007).

(...)”

Nesse julgamento, o eminente Relator, Ministro Celso de Mello, assentou premissas eloquentes integralmente ajustadas à espécie:

“(...)

O exame do diploma legislativo estadual em causa parece evidenciar que a hipótese de afetação da receita oriunda da arrecadação de imposto (ICMS), nele prevista, não se subsume ao rol taxativo, que, em numerus clausus, encontra fundamento no art. 167, IV, da Constituição da República, expondo-se, em conseqüência, tal vinculação – porque instituída com inobservância do modelo federal – à censura do próprio magistério jurisprudencial firmado, no tema, pelo Supremo Tribunal Federal, quer sob a égide da Carta Política anterior (RTJ 120/997, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI – RTJ 127/56, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI – RE 100.435-SP, Rel. Min. SOARES MUÑOZ), quer em face da vigente Lei Fundamental (RDA 185/148, Rel. Min. MARCO AURÉLIO – RDA 192/174, Rel. Min. CARLOS VELLOSO).

(...)”

No Col. Órgão Especial do E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, a matéria foi igualmente examinada, reconhecendo-se a inconstitucionalidade de dispositivo legal análogo, quando do julgamento da ADI nº 0427921-20.2010.8.26.0000, Rel. Des. Renato Nalini, j. 03 de fevereiro de 2011, com a seguinte ementa:

“(...)

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. INCENTIVOS FISCAIS PARA EMPRESAS QUE SE ESTABELECEREM NO MUNICÍPIO. DEVOLUÇÃO DE PARCELA DO ICMS REPASSADO À ENTIDADE FEDERATIVA LOCAL. AFETAÇÃO DA RECEITA DE IMPOSTOS A DESPESA PÚBLICA. VULNERAÇÃO DO DISPOSTO NO ARTIGO 176, INCISO IV, DA CONSTITUIÇÃO DE SÃO PAULO. AÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE PROCEDENTE.

A vinculação de parcela de ICMS repassado pelo Estado ao Município gera situação incompatível com o princípio da isonomia e transfere para o ambiente municipal a nefasta consequência do fenômeno conhecido como guerra fiscal já existente no Brasil entre vários dos Estados da Federação.

(...)”

Como última, porém não menos importante observação, a solução normativa glosada nesta inicial ainda provoca tratamento desigual entre contribuintes que estão em condição equivalente, tangenciando, por conseguinte, o princípio constitucional da isonomia, aplicável também à Administração Tributária.

Por essas razões, mostra-se necessária a declaração da inconstitucionalidade dos dispositivos legais acima destacados.

3)  CONCLUSÃO E PEDIDO

Diante de todo o exposto, aguarda-se o recebimento e o processamento da presente ação declaratória, para que, ao final, seja ela julgada procedente, reconhecendo-se a inconstitucionalidade dos dispositivos anteriormente da Lei Complementar Municipal nº 3.897, de 11 de julho de 2005, de Valinhos (com as alterações realizadas pela Lei Complementar nº 3.961, de 26 de dezembro de 2005, e pela Lei Complementar nº 4.373, de 08 de dezembro de 2008).

Requer-se, ainda, que sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Senhor Prefeito Municipal de Valinhos, bem como que seja posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para manifestar-se sobre o ato normativo impugnado.

Posteriormente, aguarda-se vista para fins de manifestação final.

Termos em que,

Aguarda-se deferimento.

São Paulo, 26 de março de 2012.

 

        Fernando Grella Vieira

        Procurador-Geral de Justiça

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Protocolado nº 0063.257/2011

Assunto: Inconstitucionalidade de dispositivos destacados da Lei Complementar Municipal nº 3.897, de 11 de julho de 2005, de Valinhos (com as alterações realizadas pela Lei Complementar nº 3.961, de 26 de dezembro de 2005, e pela Lei Complementar nº 4.373, de 08 de dezembro de 2008).

 

 

 

 

 

 

 

1.     Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade em face Inconstitucionalidade dos dispositivos destacados da Lei Complementar Municipal          nº 3.897, de 11 de julho de 2005, de Valinhos (com as alterações realizadas pela Lei Complementar nº 3.961, de 26 de dezembro de 2005, e pela Lei Complementar nº 4.373, de 08 de dezembro de 2008), junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

2.     Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.

São Paulo, 26 de março de 2012.

 

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

 

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