Excelentíssimo Senhor
Desembargador Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
Protocolado nº.
65.021/2008
Assunto:
Inconstitucionalidade dos §§ 1º e 2º da Lei Municipal nº. 4.637, de 14 de maio
de 2008, de São Caetano do Sul.
Ementa: 1) Lei Municipal que proíbe a
realização de feiras itinerantes ou temporárias com a comercialização direta,
no atacado ou varejo, com fins de lucro. 2) Nitidez do escopo de proteção aos
comerciantes do próprio Município, em detrimento daqueles ali não sediados.
Violação da livre iniciativa e da livre concorrência, que protegem não só
aqueles que exercem atividade comercial lícita, mas também, em última
análise, os consumidores (art.170, IV, parágrafo único da CF, aplicável por
força do art.144 da Constituição do Estado). 3) Ausência de necessidade
(legitimidade), de adequação, e falta de proporcionalidade da opção
legislativa, considerando os fins nela almejados. Violação do princípio da
razoabilidade (art.111 e 144 da Constituição do Estado). 4) Ato normativo que
retira do consumidor a possibilidade de escolha entre atividades, bens ou
serviços lícitos. Violação dos princípios constitucionais que assentam a
defesa do consumidor, como garantia fundamental, e como princípio da ordem e
da atividade econômica (art.5º XXXII, e art.170 V, ambos da CF, aplicáveis
por força do art.144 da Constituição do Estado). 5) Permissão, contudo, para
a realização de feiras destinadas à comercialização de automóveis, bens
imóveis, lançamentos de produtos sem vendas e feiras culturais, em afronta
aos princípios da isonomia e impessoalidade (art. 5º, caput, da CF, c.c. art. 144 da CE, e
art. 111 da CE). 6)
Inconstitucionalidade reconhecida. |
O
Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição
prevista no art.116, inciso VI da Lei Complementar Estadual nº. 734, de 26 de
novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo), e ainda em
conformidade com o disposto no art.125, § 2º, e art. 129, inciso IV da
Constituição Federal, e ainda os arts. 74, inciso VI e 90, inciso III da
Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no
incluso protocolado (PGJ nº. 65.021/2008), vem, respeitosamente, perante esse
Egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE dos §§ 1º e 2º da Lei
Municipal nº. 4.637, de 14 de maio de 2008, de São Caetano do Sul, pelos
fundamentos a seguir expostos.
1) Do ato normativo impugnado.
O
Protocolado que segue como anexo à presente petição inicial
foi instaurado por força da representação instruída com cópias de vários
processos (ação constitucional de mandado de segurança), ajuizadas por pessoas
jurídicas interessadas em instalar seus negócios temporariamente
O
encaminhamento da representação deveu-se à inconstitucionalidade dos §§ 1º e 2º
do art. 1º da Lei 4.637, de 14 de maio
de 2008, de São Caetano do Sul, que “Dispõe
sobre a concessão de alvará de funcionamento para a realização de atividades
esporádicas ou de caráter transitório no Município de São Caetano do Sul e dá
outras providências”.
Eis o teor
do artigo 1º e seus parágrafos, da Lei nº. 4.637, de 14 de maio de 2008:
“Art. 1º.
Esta Lei disciplina a concessão de Alvará de Funcionamento para a realização de
atividades esporádicas ou de caráter transitório no Município de São Caetano do
Sul, tais como circos, parques de diversão, feiras itinerantes, bazares, shows,
exposições e outras atividades similares, a critério da Administração
Municipal.
§ 1º. Fica proibida a realização de bazares
ou feiras itinerantes e temporárias nos quais ocorra comercialização direta, no
atacado ou varejo, com fins lucrativos, no Município de São Caetano do Sul.
§ 2º. Excetuam-se da promoção prevista no §
1º deste artigo, as feiras destinadas à comercialização de automóveis, bens
imóveis, lançamentos de produtos sem vendas e feiras culturais.”
Ocorre que referido ato normativo (§§ 1º e 2º do art.
1º) é verticalmente incompatível com a Constituição do Estado de São Paulo,
como será demonstrado a seguir.
2) Ordem econômica: livre iniciativa e livre
concorrência.
O diploma
impugnado, ao vedar a realização de atividades comerciais lícitas na cidade de
Campinas, violou os princípios constitucionais relacionados à ordem econômica,
em especial a livre iniciativa e a livre concorrência.
Cumpre
recordar que o art.144 da Constituição do Estado determina que “Os municípios, com autonomia política,
legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na
Constituição Federal e nesta Constituição”.
Em função do
referido preceito, aplicam-se aos Estados e aos Municípios os seguintes
dispositivos da Constituição Federal:
“Art.
(...)
IV – livre concorrência
(...)
Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica,
independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos
em lei.”
Os
dispositivos constitucionais acima evidenciam dois importantes princípios da
ordem e da atividade econômica, consistentes na livre iniciativa e na livre
concorrência.
Eros Roberto
Grau, em sede doutrinária, anotou, recorrendo a trabalho da lavra de Tércio
Sampaio Ferraz Júnior, que “(...)’a livre
concorrência de que fala a atual Constituição como um dos princípios da ordem
econômica (art.170, IV) não é a do mercado concorrencial oitocentista de
estrutura atomística e fluida, i. é, exigência de pluralidade de agentes e
influência isolada e dominadora de um ou uns sobre outros. Trata-se,
modernamente, de um processo comportamental competitivo que admite gradações
tanto de pluralidade quanto de fluidez. É este elemento comportamental – a
competitividade – que define a livre concorrência. A competitividade exige, por
sua vez, descentralização de coordenação como base de formação de preços, o que
supõe a livre iniciativa e apropriação privada dos bens de produção. Neste
sentido, a livre concorrência é forma de tutela do consumidor, na medida em que
competitividade induz a uma distribuição de recursos a mais
baixo preço. De um ponto de vista político, a livre concorrência é
garantia de oportunidades iguais a todos os agentes, ou seja, é uma forma de
desconcentração de poder. Por fim, de um ângulo social, a competitividade deve
gerar extratos intermediários entre grandes e pequenos agentes econômicos, como
garantia de uma sociedade mais equilibrada’” (A ordem econômica na Constituição de 1988, 11ª ed., São Paulo,
Malheiros, 2006, p.210).
É sugestiva
a afirmação, portanto, de que a livre iniciativa e a livre concorrência, que
integral o rol de princípios constitucionais inerentes à nossa ordem econômica,
têm por escopo tanto tutelar o próprio equilíbrio do mercado, como ainda a
posição do consumidor na dinâmica das relações de consumo.
As
intervenções do Estado-administrador e do Estado-legislador, que evidentemente
podem ocorrer, não devem perder de vista as balizas decorrentes das finalidades
acima indicadas, amalgamadas na própria sedimentação constitucional dos
princípios da ordem econômica. A tendência, no Pretório Excelso, é, também,
propugnar-se pela defesa da livre iniciativa e da livre concorrência.
A título de
exemplificação, cumpre recordar que o verbete nº. 646 da súmula da
jurisprudência dominante do E. STF estipula que “Ofende o princípio da livre concorrência lei municipal que impede a
instalação de estabelecimentos comerciais do mesmo ramo em determinada área.”
No mesmo sentido, em decisões que, mutatis
mutandis, são aplicáveis ao caso em comento, já se decidiu, no STF, que:
"Autonomia municipal. Disciplina legal
de assunto de interesse local. Lei municipal de Joinville, que proíbe a
instalação de nova farmácia a menos de
EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. ARTIGO 1º DA
LEI Nº 6.545/91, DO MUNICÍPIO DE CAMPINAS. LIMITAÇÃO GEOGRÁFICA À INSTALAÇÃO DE
DROGARIAS. INCONSTITUCIONALIDADE.
A hipótese examinada na presente ação é análoga às
situações contidas nos precedentes do Pretório Excelso aqui
coligidos.
É oportuno registrar
que da própria “justificativa” apresentada ao projeto de lei que acabou se
transformando na lei inquinada, já transparecia, de forma nítida -, ainda que
sutil - que a finalidade do ato normativo era privilegiar determinado grupo de
comerciantes em detrimento de outros. Isso já sinalizava para ilegítima e
inconstitucional intervenção na dinâmica econômica, com frustração dos
princípios da livre iniciativa e da livre concorrência, que também amparam a
proteção ao consumidor, sob a roupagem de dar mais segurança aos
freqüentadores. Note-se que em nenhum momento se falou na razão da proibição a
determinados setores, em detrimento de outros aos quais foi permitida a
instalação, pela via da exceção.
O escopo velado do legislador foi, inicialmente,
alcançado com a edição da Lei nº. 4.637, de 14 de maio de 2008, dado que apenas
alguns setores ou atividades, notadamente os bazares ou feiras itinerantes, em
contraposição às mesmas feiras que comercializem automóveis. Em resumo, dela
(lei inquinada) decorreu a proibição de realização de feiras itinerantes na
cidade de São Caetano do Sul, nas quais ocorresse a comercialização direta de
bens, no atacado ou varejo (exceção feita às hipóteses ressalvadas pela própria
lei, ou seja, a comercialização de automóveis, bens imóveis, lançamento de
produtos sem venda e feiras culturais).
Patente,
pois, a inconstitucionalidade da lei.
3) Violação do princípio da razoabilidade,
impessoalidade e isonomia.
A incompatibilidade do ato normativo impugnado com
nosso ordenamento constitucional decorre, ainda, do desrespeito à razoabilidade
e impessoalidade, princípio adotado no art. 111 da Carta Paulista, e aplicável
aos Municípios por força do art. 144 da referida Carta. Também se nota afronta
ao princípio da isonomia, aplicável aos Municípios pelo mesmo fundamento retro
exposto.
A propósito,
é correto observar que: (a) o instrumento ou meio utilizado pelo legislador
(vedação a certa modalidade de comércio) é excessiva em relação ao fim pretensamente
visado (suposta proteção aos consumidores do Município); (b) o fim em si mesmo
é inadequado, pois o que a lei almejou, em verdade, foi proteger determinada
categoria de comerciantes, ou seja, aqueles cujas empresas são sediadas no
Município; (c) a lei impugnada acabou criando um ônus insuperável àqueles
comerciantes que, não sendo sediados no Município, desejem nele desenvolver
atividades lícitas, ferindo a proporcionalidade em sentido estrito; (d) a lei
inquinada a par de proibir certas atividades (§ 1º), acabou
por excepcionar da regra (§ 2º) outras atividades semelhantes, sem
qualquer fundamento jurídico aceitável.
Eis, então,
a nítida violação do princípio da razoabilidade e da impessoalidade, além de
afronta ao princípio da isonomia.
Como
anota Diogo de Figueiredo Moreira Neto, o princípio da razoabilidade “visa a afastar o arbítrio que decorrerá da
desadequação entre meios e fins”, tendo importância tanto quando da criação
da norma como quando de sua aplicação. Ademais, prossegue o autor, “o princípio da proporcionalidade, uma vez
admitido como um princípio substantivo autônomo, como é considerado na doutrina
alemã do Direito Público, e não apenas com o sentido estrito contido no
conceito de razoabilidade, prescreve, especificamente, o justo equilíbrio entre
os sacrifícios e os benefícios resultantes da ação do Estado” (Curso de direito administrativo, 14ªed.,
Rio de Janeiro, Forense, 2006, p.101). Também nesse sentido Maria Sylvia
Zanella Di Pietro (Direito administrativo,
19ªed., São Paulo, Atlas, 2006, p.95).
Em sede
doutrinária, Gilmar Ferreira Mendes, examinando a aplicação do princípio da
proporcionalidade pelo Pretório Excelso, anotou “de maneira inequívoca a possibilidade de se declarar a
inconstitucionalidade da lei em caso de sua dispensabilidade (inexigibilidade),
inadequação (falta de utilidade para o fim perseguido) ou de ausência de
razoabilidade em sentido estrito (desproporção entre o objetivo perseguido e o
ônus imposto ao atingido)” (cf. A
proporcionalidade na jurisprudência do STF, publicado em Direitos fundamentais e controle de
constitucionalidade, São Paulo, Instituto Brasileiro de Direito
Constitucional e Celso Bastos Editor, 1998, p.83).
Daí a
violação ao art.111 da Constituição do Estado de São Paulo.
4) Defesa do consumidor.
A Lei em epígrafe, ademais, fere também os preceitos
constitucionais que estipulam a defesa do consumidor como princípio a ser
seguido na ordem econômica e na atividade financeira (art.170 V da CF), e como
garantia fundamental (art.5º XXXII da CF), cuja aplicação aos Municípios
decorre do art. 144 da Constituição do Estado de São Paulo.
Como já
sugerido antes nesta inicial, com amparo em autorizada doutrina e em
precedentes do Pretório Excelso, a livre iniciativa e a livre concorrência,
como princípios da ordem econômica têm por escopo não apenas a proteção da
autonomia e equilibro do mercado, mas também a defesa do consumidor.
Respeitando-se
a liberdade de exercício de atividade comercial lícita, assegura-se a
viabilidade de apresentação de ofertas de produtos e serviços que ostentem
maior qualidade e melhores condições de preço ao consumidor final. A vedação ao
exercício de atividade lícita, em contrapartida, com favorecimento a
determinado seguimento de comerciantes, acaba por retirar do consumidor a
possibilidade de escolha.
É por essa
razão, entre outras, que a própria Constituição Federal, no art. 173 § 4º prevê
que “a lei reprimirá o abuso do poder
econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao
aumento arbitrário dos lucros”, preceito este concretizado na esfera
infraconstitucional através da Lei nº. 8.884/94, que trata da prevenção e
repressão às infrações contra a ordem econômica. Limitar o espectro de
conhecimento e escolha do consumidor quanto a atividades, bens e serviços
lícitos, significa tolhê-lo, ainda que indiretamente, de um aspecto fundamental
da proteção que nossa sistemática constitucional lhe confere.
Assim,
também por este prisma, é necessário reconhecer a incompatibilidade do ato normativo
impugnado com nosso ordenamento constitucional.
5) Da liminar.
Estão
presentes, na hipótese examinada, os pressupostos do fumus bonis iuris e do periculum
in mora, a justificar a suspensão liminar da vigência e eficácia do ato
normativo impugnado.
A razoável
fundamentação jurídica decorre dos motivos expostos anteriormente, que indicam,
de forma clara, que os §§ 1º e 2º do art. 1º da Lei impugnada na presente ação
padece de vício de inconstitucionalidade.
O perigo da
demora decorre especialmente da idéia de que, sem a imediata suspensão da
vigência e eficácia do ato normativo questionado, inúmeros comerciantes no
aludido município continuarão sofrendo indevida privação quanto ao exercício de
atividade lícita. Do mesmo modo, inúmeros munícipes continuarão sendo privados
da possibilidade de escolha do estabelecimento no qual poderão adquirir
produtos de seu interesse. Tal situação gera prejuízo material e moral que
dificilmente poderá ser quantificado, e que provavelmente não será reparado. É
nítida a ocorrência da hipótese do fato consumado.
A idéia do
fato consumado, com repercussão concreta, guarda relevância para a apreciação
da necessidade da concessão da liminar na ação direta de inconstitucionalidade.
Note-se que, com a procedência da ação, pelas razões declinadas, não será
possível restabelecer o status quo ante.
Assim, a
imediata suspensão da eficácia dos dispositivos legais questionados, cuja
inconstitucionalidade é palpável, evitará maiores prejuízos, além daqueles que
já sofridos até o momento.
De
resto, ainda que não houvesse essa singular situação de risco, restaria, ao
menos, a excepcional conveniência da medida. Com efeito, no contexto das ações
diretas e da outorga de provimentos cautelares para defesa da Constituição, o
juízo de conveniência é um critério relevante, que vem condicionando os
pronunciamentos mais recentes do Supremo Tribunal Federal, preordenados à
suspensão liminar de leis aparentemente inconstitucionais (cf. ADIN-MC 125, j.
15.2.90, DJU de 4.5.90, p. 3.693, rel. Min. Celso de
Mello; ADIN-MC 568, RTJ 138/64; ADIN-MC 493, RTJ 142/52; ADIN-MC 540, DJU de
25.9.92, p. 16.182).
Diante do
exposto, requer-se a concessão da liminar, para fins de suspensão imediata da eficácia do ato normativo impugnado, ou seja,
os §§ 1º e 2º do art. 1º da Lei nº. 4.637, de 14 de maio de 2008, do Município
de São Caetano do Sul, até o julgamento final da presente ação.
6) Conclusão e pedido.
Diante do
exposto, aguarda-se o recebimento e processamento da presente ação
declaratória, para que ao final seja ela julgada procedente, reconhecendo-se a
inconstitucionalidade dos §§ 1º e 2º do art. 1º da Lei nº. 4.637, de 14 de maio
de 2008, do Município de São Caetano do Sul.
Requer-se
ainda sejam requisitadas informações à Câmara Municipal de São Caetano do Sul,
bem como do Prefeito Municipal de São Caetano do Sul, bem como posteriormente
citado o Procurador-Geral do Estado para manifestar-se sobre o ato normativo
impugnado.
Posteriormente,
aguarda-se vista para fins de manifestação final.
São Paulo, 19
de agosto de 2008.
FERNANDO
GRELLA VIEIRA
Procurador-Geral de Justiça