Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

 

Protocolado nº66.130/2008

Objeto: Parágrafo único do art.6º da Lei Municipal nº4275, de 1º de junho de 1993, de Sorocaba.

 

Ementa:

1)Criação de benefício previdenciário (complementação de aposentadoria) sem a correspondente fonte de custeio total (art.195 §5º da CF c.c. art.144 e 218 da CE).

2)Benefício incompatível com o interesse público e exigências do serviço (art.128 da CE).

3)Violação do princípio da moralidade administrativa (art.111 da CE).

4)Inconstitucionalidade reconhecida

 

 

 

 

 

 

         O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício de suas atribuições (art.116 VI da Lei Complementar Estadual nº734/93 - Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo -; art.125 §2º e 129 IV da Constituição Federal; art.74 VI e art.90 III da Constituição do Estado de São Paulo), com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado (PGJ nº66.130/2008) vem perante esse Egrégio Tribunal de Justiça promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE do parágrafo único do art.6º da Lei Municipal nº4275, de 1º de junho de 1993, de Sorocaba, pelos fundamentos expostos a seguir.

 

1)Do ato normativo impugnado.

 

         Anote-se inicialmente que o procedimento que rendeu ensejo à propositura desta ação direta foi instaurado em razão de representação formulada pelo DD. Promotor de Justiça da Cidadania de Sorocaba, (...).

 

         A Lei Municipal nº4275, de 1º de junho de 1993, de Sorocaba, conforme respectiva rubrica “Dispõe sobre a sucumbência nas ações em que o Município for parte, cria a Revista da Procuradoria Jurídica e dá outras providências.”

 

         O parágrafo único do art.6º da referida lei tem a seguinte redação:

 

“Art.6º  (...)

 

Parágrafo único. O procurador ou advogado aposentado, terá o direito de perceber o mesmo percentual rateado entre os procuradores e advogados da ativa, porém, o valor será pago pela rubrica orçamentária destinada aos pagamentos dos inativos, seja do Município, seja da Fundação da Previdência Municipal.”

 

         Entretanto, referido dispositivo é verticalmente incompatível com nossa sistemática constitucional.

 

2)Criação de benefício previdenciário sem a correspondente fonte de custeio total.

 

         A Lei Municipal nº4275, de 1º de julho de 1993, como visto, dispõe sobre a destinação dos honorários decorrentes da sucumbência, quando vencedora a Fazenda Municipal de Sorocaba em processos judiciais, aos respectivos procuradores.

 

         Entretanto, a pretexto de equiparar os proventos de aposentadoria dos procuradores inativos à remuneração dos procuradores municipais em atividade, o parágrafo único do art.6º da Lei nº4275/93, transcrito acima, criou verdadeiro benefício, assimilado àquele que vem sendo identificado como “complementação de aposentadoria”. Tal solução legislativa, entretanto, não se mostra compatível com nossa sistemática constitucional.

 

         O que fez a lei, a bem da verdade, foi criar benefício previdenciário para servidores públicos municipais inativos, sem a indicação da correspondente fonte de custeio total.

 

         Note-se que: (a) os honorários pagos aos advogados e procuradores municipais em atividade são aqueles decorrentes da sucumbência dos que litigam contra o Poder Público, não onerando os cofres municipais (como decorre dos art.1º ao 4º da Lei nº4275/93); (b) a complementação de proventos de aposentadoria pagos aos procuradores e advogados aposentados, diversamente, tem sua fonte nos cofres municipais, como expressamente disciplina o dispositivo impugnado.

 

         A solução contida no ato normativo (parágrafo único do art.6º da Lei nº4275/93) violou preceito constitucional expresso, segundo o qual “nenhum benefício ou serviço da seguridade social poderá ser criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio total” (art.195 §5º da Constituição Federal, aplicável por força dos art.218 e 144 da Constituição Estadual).

 

         Pacífico é o entendimento a respeito da matéria, no E. STF, conforme inúmeros precedentes, aqui indicados a título de exemplificação: RE 485.940, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 9-2-07, DJ de 20-4-07; RE 419.954 e RE 414.741, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 9-2-07, DJ de 23-3-07; RE 492.338, Rel. Min. Cezar Peluso, julgamento em 9-2-07, DJ de 30-3-07; ADI 3.205, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 19-10-06, DJ de 17-11-06; entre outros.

 

         A proibição de criação, majoração, ou extensão de benefício previdenciário sem a correspondente fonte de custeio total também tem sido afirmada por esse E. Tribunal de Justiça de São Paulo, como se infere dos seguintes julgados:

 

“Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº1703, de 10 de dezembro de 1990, que ‘Dispõe sobre a complementação de aposentadoria e pensão de servidores aposentados por tempo de serviço ou idade, das pensionistas e viúvas de ex-servidores aposentados ou falecidos enquanto na ativa e dá outras providências’. Criação de previdência complementar sem a definição de sua fonte de custeio integral. Vulneração dos artigos 144 e 218 da Constituição Estadual, pela ausência de estrita observância ao disposto no art.195, §5º, da Constituição Federal. Pedido julgado procedente” (TJSP, ADI 153.965-0/5, rel. des. Oscarlino Moeller, j. 26.03.08, v.u.).

 

“Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº2969/93 do Município de Birigui, que dispõe sobre a denúncia de convênio firmado entre a Câmara Municipal de Birigui e o Instituto de Previdência do Estado de São Paulo e dá providências correlatas. Ofensa aos art.111, 144 e 218 da Carta Paulista. Necessidade de prévia e correspondente fonte de custeio para a criação, majoração ou extensão de benefício previdenciário. Inobservância do princípio da impessoalidade, diante da obtenção de vantagens de um grupo minoritário. Ação julgada procedente.” (TJSP, ADI 151.936-0/9-00, rel. des. Penteado Navarro, j. 20.02.08, v.u.).

 

         E não é possível considerar como fonte de custeio suficiente, pura e simplesmente, a previsão legal de que o pagamento do benefício será feito com recursos constantes de dotação orçamentária própria. Isso significa, na prática, carrear todo o ônus financeiro ao erário municipal. Este acaba sendo o único a financiar o pagamento da complementação de aposentadoria dos procuradores municipais.

 

          Deve-se levar em conta que a Constituição Federal estabelece, a propósito, a necessidade de respeito à diversidade da base de financiamento (art.194 VI da CF), bem como a participação, concomitante, de empregador e trabalhador (art.195 I e II da CF). Ademais, é impossível desconsiderar, finalmente, o caráter contributivo do sistema previdenciário (art.201 caput da CF).

 

         A exigência de fonte de custeio total deve ser entendida como fonte de custeio que satisfaça os pressupostos do sistema estabelecido na Constituição Federal: (a) diversidade de base de financiamento; (b) caráter contributivo; (c) e participação de empregador e trabalhadores.

 

         Assim, criar benefício por meio de lei, sem observar os parâmetros acima, que se resumem na necessidade de previsão de fonte de custeio total, significa violar frontalmente dispositivos constitucionais aplicáveis ao tema, em especial o art.195 §5º da CR/88, aplicável à hipótese por força dos art.144 e 218 da Constituição Paulista.

 

3)Concessão de benefício contrário ao interesse público.

 

         Ao conceder o benefício da complementação de proventos de aposentadoria sem a previsão da correspondente fonte de custeio total, o legislador feriu diretamente o art.128 da Constituição do Estado, pelo qual “as vantagens de qualquer natureza só poderão ser instituídas por lei quando atendam efetivamente ao interesse público e às exigências do serviço”.

 

         Note-se que o ato normativo impugnado concedeu benefício que não encontra amparo, de forma alguma, no interesse público e nas exigências do serviço.

 

         O único aspecto que o legislador municipal levou em consideração, na hipótese em exame, foi a melhoria da situação financeira de determinada gama de servidores públicos inativos. A perspectiva em que, de forma clara, se deu a aprovação da “complementação de aposentadoria”, foi exclusivamente a do maior conforto e comodidade dos respectivos beneficiários.

 

         Não há, sequer superficialmente, nenhum dado no ato normativo em exame que indique a possibilidade de existência de qualquer interesse público, ou exigência decorrente do serviço, que tenha sido atendida em função da instituição do benefício.

 

         Eis, então, fundamento consistente para o reconhecimento da inconstitucionalidade da lei.

 

4)Violação da moralidade administrativa.

 

         Há também, na espécie em exame, violação do princípio da moralidade administrativa, previsto no art.111 da Constituição do Estado, aplicável aos Municípios por força do art.144 da Carta Paulista.

 

         Em oportuna síntese, anota Maria Sylvia Zanella Di Pietro que “sempre que em matéria administrativa se verificar que o comportamento da Administração ou do administrado que com ela se relaciona juridicamente, embora em consonância com a lei, ofende a moral, os bons costumes, as regras de boa administração, os princípios de justiça e de equidade, a idéia comum de honestidade, estará havendo ofensa ao princípio da moralidade administrativa” (Direito Administrativo, 19ª ed., São Paulo, Atlas, 2006, p.94).

 

         Não há dúvida de que, na hipótese, houve ofensa à moralidade administrativa. O legislador municipal optou por conceder benefício para servidores municipais aposentados e pensionistas do Município, sem fonte de custeio total, ausente o interesse público, e fora de qualquer perspectiva das exigências do serviço.

 

         Sabe-se das dificuldades orçamentárias que normalmente assolam as administrações municipais, e da existência de assuntos que são presumivelmente prioritários como a saúde e educação dos munícipes, entre outros. Diante disso, sem dúvida alguma colide com a moralidade exigida do administrador a aplicação de recursos públicos em benefício exclusivo (e no interesse estritamente privado) de determinada categoria de servidores inativos do Município.

 

         Tamanha liberdade de ação administrativa (que não se confunde com discrição, identificando-se sim com o arbítrio), contraria a necessidade de respeito a valores imanentes à gestão de verbas públicas. Abre-se ensejo, com fundamento na equivocada lei, para favorecimento que não se coaduna com a administração de recursos que, em última análise pertencem à própria sociedade local.

 

         Tal solução fere uma concepção mais ampla de justiça e equidade, e por isso também ofende a moralidade administrativa. Daí a necessidade de reconhecimento da inconstitucionalidade.

 

5)Conclusão e pedido.

 

         Por todo o exposto, evidencia-se a necessidade de reconhecimento da inconstitucionalidade da norma aqui apontada.

 

         Assim, aguarda-se o recebimento e processamento da presente ação declaratória, para que ao final seja julgada procedente, declarando-se a inconstitucionalidade do parágrafo único do art.6º da Lei Municipal nº4275, de 1º de julho de 1993, de Sorocaba.

 

         Requer-se ainda sejam requisitadas informações à Câmara Municipal de Sorocaba, bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para manifestar-se sobre o ato normativo impugnado.

 

         Posteriormente, aguarda-se vista para fins de manifestação final.

 

São Paulo, 05 de agosto de 2008.

 

 

 

 

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça