EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO E. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

 

Protocolado n :  66.466/2009

Assunto: Inconstitucionalidade da Lei Municipal n. 4.786, de 28 de abril de 2009, do Município de Sumaré.

 

Ementa. 1)   Lei  Municipal n.º 4.786, de 28 de abril de 2009, do Município de Sumaré. 2) Autoriza o Poder Executivo a criar, no âmbito daquele Município, o Projeto “Esporte Paraolímpico”. 3) Violação dos arts. 5º, 25 e 47, II e XIV, todos da Constituição do Estado de São Paulo. 4) Inconstitucionalidade constatada. 5) Ação Direta visando à declaração de inconstitucionalidade da norma legal impugnada.

 

 

         O   PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO,  no exercício  da  atribuição prevista no artigo 116,     inciso   VI, da Lei Complementar n.º 734, de 26 de novembro de 1993, e em conformidade com o disposto  nos artigos 125, § 2º, e 129, inciso IV, da Constituição da República e artigo 74, inciso VI, e 90, inciso III, da Constituição Estadual, com amparo nas                                                                      informações colhidas no incluso protocolado (PGJ nº 66.466/09), vem,   respeitosamente, promover perante esse                                                                              Colendo Tribunal de Justiça a presente AÇÃO DIRETA DE  INCONSTITUCIONALIDADE, postulando a  inconstitucionalidade da Lei Municipal n. 4.786, de 28 de abril de 2009, do Município de Sumaré, pelos motivos de fato e de direito que passa a expor .

 

 

A Câmara Municipal de Sumaré fez aprovar projeto de lei de autoria parlamentar, sancionada sem que o Chefe do Executivo tivesse se posicionado formalmente com relação a seu conteúdo no prazo legal, e que “autoriza o Poder Executivo a criar o Projeto “Esporte Paraolímpico”.

Referido ato normativo tem a seguinte redação:

“Art. 1° - Fica o Poder Executivo autorizado a criar o Projeto “Esporte Paraolímpico”, com a finalidade de proporcionar aos portadores de deficiência, a possibilidade da prática de esporte, em uma ou mais das modalidades reconhecidas pelo Comitê Paraolímpico Brasileiro (CPB).

Art. 2º - A participação no Projeto “Esporte Paraolímpico”, será facultativa, devidamente autorizada pelo responsável quando menor, e condicionada a exame médico especializado que ateste sua aptidão.

Art. 3º - A critério dos órgãos competentes do Poder executivo, o Projeto “Esporte Paraolímpico” poderá desenvolver-se em um ou vários locais, devidamente adaptados para a finalidade do Projeto, e desenvolvidos na prática por pessoal especialmente qualificado para tanto.

Art. 4º - Para a consecução dos objetivos desta Lei, o Poder executivo poderá firmar parcerias com instituições, públicas ou privadas, especializadas em esportes para pessoas com deficiência.

Art. 5º - As despesas  decorrentes da implantação do Projeto “ Esporte Paraolímpico” correrão à conta de dotações orçamentárias próprias, que serão especialmente discriminadas  nos projetos de Lei orçamentária subseqüentes à entra em vigor desta lei.

Art. 6º - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação”.

O representante entendeu que ao instituir este serviço, o Poder Legislativo local teria invadido esfera de competência exclusiva do Poder Executivo, por se tratar de matéria atinente à organização e execução de políticas públicas, afrontando, conseqüentemente, o princípio da separação dos poderes, insculpido tanto na Constituição Federal (art. 2°), na Carta Paulista (art. 5°) e na Lei Orgânica do Município (art. 58, II).

O regime jurídico das políticas públicas, dentre as quais se a prática de esportes em locais públicos da cidade, bem como a contratação de profissionais para esse fim é regulado por lei cuja iniciativa é reservada ao Poder Executivo, que tem a incumbência de planejar, organizar, dirigir e executá-las.

O ordenamento jurídico brasileiro, como se sabe, dispõe que o governo municipal é de funções divididas. As funções administrativas foram conferidas ao Prefeito, enquanto que as funções legislativas são de competência da Câmara. Administrar significa aplicar a lei ao caso concreto. Assim, no exercício de suas funções, o Prefeito é obrigado a observar as normas gerais e abstratas editadas pela Câmara, em atenção ao princípio da legalidade, a que está pautada toda atuação administrativa, na forma do art. 111 da Carta Paulista.

 

Esse mecanismo de repartição de funções, incorporado ao nosso ordenamento constitucional, e que teve como principal idealizador o filósofo Montesquieu, impede a concentração de poderes num único órgão ou agente, o que a experiência revelou conduzir ao absolutismo . Daí ser vedado à Câmara interferir na prática de atos que são de competência privativa do Prefeito, assim como a recíproca é verdadeira. 

Tamanho significado apresenta esse sistema de separação das funções estatais, em nosso ordenamento jurídico, que a própria Constituição Federal, no seu art. 60, § 4.º, inciso III, cuidou de incorporá-lo ao seu núcleo intangível, ao dispor expressamente que “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a aboli-lo.” 

Vistos esses aspectos, tem-se no caso sob exame que a Câmara de Vereadores de Sumaré aprovou a Lei n.º  4. 786/2009, derivada de projeto de iniciativa parlamentar, não apenas autorizando o Executivo a certas condutas, mas impondo-lhe obrigações, com nítida  vocação Administrativa típica, o que não pode ser admitido.

Essa lei, porém, malgrado os elevados propósitos que nortearam a sua edição, não reúne a mínima condição de subsistir na ordem jurídica vigente, uma vez que, a pretexto de disciplinar assunto de interesse local, a Câmara Municipal acabou por interferir na esfera de competência do Executivo, acarretando, tal iniciativa, o desequilíbrio no delicado sistema de relacionamento entre os poderes municipais.

É certo, por outro lado, que aparentemente a lei impugnada estaria a garantir direito dos portadores de deficiência à prática esportiva. Todavia, numa análise mais acurada da questão tratada, constata-se que os direitos cuja proteção se cogitou na norma hostilizada, são mais amplamente garantidos pela Constituição Federal e sem imposição dos requisitos previstos na mesma lei.

Com efeito, é irrecusável a competência da Câmara para legislar sobre os assuntos de interesse local, inclusive daqueles que digam respeito às garantias dirigidas aos portadores de deficiência, mas há alguns limites que devem ser observados, e que decorrem, basicamente,  da necessidade de preservar-se a convivência pacífica dos poderes políticos, entre os quais não existe nenhuma relação de hierarquia e subordinação, mas sim de independência e harmonia, em face do contido no art. 5.º da Constituição do Estado de São Paulo.

Como já visto inicialmente, a administração municipal incumbe ao Prefeito, que é quem define as prioridades da sua gestão, as políticas públicas a serem implementadas e os serviços públicos que serão prestados à população. Nessa seara, a Câmara não tem como impor suas preferências, podendo quando muito formular indicações, mas não sujeitar aquela autoridade ao cumprimento de lei que, longe de fixar uma regra geral e abstrata, constitui verdadeira ordem ou comando, para que se faça algo.

Por último, as obrigações impostas ao Poder Executivo pela Lei n° 4. 786/2009, claramente resultarão em despesas para o erário do Município de Sumaré, na medida em que seus cumprimentos demandarão locais devidamente adaptados para a finalidade do Projeto e de pessoal especialmente qualificado para tanto, ofendendo também, via de conseqüência, o postulado no art. 25, da Constituição Bandeirante, ainda que tenha o art. 5° do referido diploma legal previsto genericamente de onde seria retirada a verba necessária ao cumprimento da obrigação assumida.

 Logo, se a iniciativa em exame for considerada válida – o que corresponde, na prática, a uma tentativa de restabelecer-se o sistema que vigorava ao tempo das Comunas -, ocorrerá  uma  hipertrofia do Legislativo, que sempre poderá impor suas vontades ao Executivo, por meio da edição de leis , criando uma verdadeira relação de subordinação e hierarquia entre os poderes, incompatível com o sistema adotado pela Constituição em vigor, o qual se baseia na independência e harmonia entre os poderes, cuja observância é vital para a preservação do Estado de Direito.

Advém, daí, a necessidade de saber se a Câmara dispõe de ampla liberdade para editar leis meramente autorizativas ou se há algum limite a essa prerrogativa, máxime nos casos em que a autorização é dada para a prática de ato que se insere na esfera de competência de outro Poder.

Na ordem constitucional vigente, como anotado em tópico precedente, não existe a mínima possibilidade de a administração municipal ser exercida pela Câmara, por intermédio da edição de leis. Em relação a esse aspecto, aliás, não paira nenhuma controvérsia, uma vez que a atual Constituição é suficientemente clara ao atribuir ao Prefeito a competência privativa para exercer, com o auxílio dos Secretários Municipais, a direção superior da administração municipal (CE., art. 47, inciso II) e a praticar os atos de administração, nos limites de sua competência (CE., art. 47, inciso XIV).

 

Bem por isso, ELIVAL DA SILVA RAMOS adverte que:

“Sob a vigência de Constituições que agasalham o princípio da separação de Poderes, no entanto, não é lícito ao Parlamento editar, a seu bel-prazer, leis de conteúdo concreto e individualizante. A regra é a de que as leis devem corresponder ao exercício da função legislativa. A edição de leis meramente formais, ou seja, ‘aquelas que, embora fluindo das fontes legiferantes normais, não apresentam os caracteres de generalidade e abstração, fixando, ao revés, uma regra dirigida, de forma direta, a uma ou várias pessoas ou a determinada circunstância’, apresenta caráter excepcional. Destarte, deve vir expressamente autorizada no Texto Constitucional, sob pena de inconstitucionalidade substancial.” (“A Inconstitucionalidade das Leis - Vício e Sanção”, Saraiva, 1994, p. 194).

 

Nesse contexto, a aprovação de lei, pela Câmara, para autorizar o Executivo a criar, no âmbito do Município de Sumaré, o Projeto “Esporte  Paraolímpico” só pode ser interpretada como atentatória ao postulado básico da independência e harmonia entre os poderes (CE., art. 5.º, caput), visto que a Constituição em vigor não exige nenhuma autorização especial para a prática de ato que se insere na órbita de competência tipicamente administrativa.  

Aliás, neste sentido já alerta Sérgio Resende de Barros que a denominada lei autorizativa “constitui um expediente usado por parlamentares para granjear o crédito político pela realização de obras ou serviços em campos materiais nos quais não têm iniciativa das leis, em geral matérias administrativas. Mediante esse tipo de ‘leis’ passam eles, de autores do projeto de lei, a co-autores da obra ou serviço autorizado” (“Leis Autorizativas”, Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos da Instituição Toledo de Ensino, n° 29, p. 259-267, ago./nov. 2000).

Em suma, a Câmara Municipal de Sumaré não pode arrogar a si a competência para autorizar a prática de atos de administração ou obrigar o Poder Executivo a realizar tarefas não previstas como de obrigação legal ou fazê-las de formas diversas daquelas já previstas na Constituição Federal ou do Estado.

O Prefeito, enquanto chefe do Poder Executivo, exerce tarefas específicas à atividade de administrador, tendente à atuação concreta, referentes ao “planejamento, organização e direção de serviços e obras da municipalidade. Para tanto, dispõe de poderes correspondentes de comando, de coordenação e de controle de todos os empreendimentos da Prefeitura ... A execução das obras e serviços públicos municipais está sujeita, portanto, em toda a sua plenitude, à direção do Prefeito, sem interferência da Câmara, tanto no que se refere às atividades internas das repartições da Prefeitura (serviços burocráticos ou técnicos), quanto às atividades externas (obras e serviços públicos) que o Município realiza e põe à disposição da coletividade” (Hely Lopes Meirelles, Direito Municipal Brasileiro, São Paulo, RT, 3ª ed., pp. 870/873). Em idêntica lição, José Afonso da Silva,

“O Prefeito e o Município”, Fundação Pref. Faria Lima, 1977, pp. 134/143.

E sobre o tema  em foco destaca-se trecho do Acórdão da lavra do Eminente Desembargador DENSER DE SÁ,  “ Segundo a doutrina a administração da cidade é da competência do Prefeito, tendo o Poder Legislativo a função de aprovar ou desaprovar os atos do Alcaide, funcionando como fiscal do governo. (...) Não é dado aos vereadores resolver todos os assuntos por meio de lei. A Câmara Municipal somente pode estabelecer programas gerais, com base na Constituição se não criar atribuições para órgãos públicos ou determinar seu modo de execução, incumbências do Prefeito Municipal” (Oesp – Adin n. 104.747-0/7, DJ de 10.03.04).

 Restando caracterizada a violação de preceitos contidos na Constituição do Estado de São Paulo, a saber, aos arts. 5°, 25 e  47, incs. II e XIV, merece a Lei n° 4. 786/2009, ser extirpada do mundo jurídico.

Isto posto, requeiro   seja   a    presente     ação devidamente processada,  requisitando-se informações ao Presidente da Câmara Municipal de Sumaré e ao Prefeito deste mesmo Município, bem como citando-se o Procurador-Geral do Estado.

 

 

Ainda,   requer-se  que  ao  final  seja a presente ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente, de sorte a que seja declarada inconstitucional a Lei n° 4.786, de 28 de abril de 2009, do Município de Sumaré.

                    

                             São Paulo,  29 de julho de 2009.

 

 

                        Fernando Grella Vieira

                        Procurador-Geral de Justiça

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Protocolado nº: 66.466/2009

Interessado:  Prefeitura Municipal de Sumaré

Assunto: Inconstitucionalidade da Lei Municipal n. 4.786, de 28 de abril de 2009, do Município de Sumaré.

 

 

 

 

 

 

 

1.     Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade, em face da Lei Municipal n. 4.786, de 28 de abril de 2009, do Município de Sumaré, junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

2.     Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.

 

 

                   São Paulo, 29 de julho de 2009.

 

 

 

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

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