Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente
do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
Ementa: 1) Lei Municipal que autoriza o executivo a transferir servidores públicos para a Câmara Municipal. Organização do sistema de carreiras no Município; 2) Dispositivo legal que autoriza o “enquadramento” de servidores em cargos distintos; 3) Violação do princípio constitucional do concurso, da acessibilidade de cargos, empregos e funções públicas, da isonomia e da impessoalidade (art.111, e 115 I e II da Constituição Paulista); 4) Inconstitucionalidade reconhecida. |
O
Procurador-Geral de Justiça de São Paulo, no exercício da atribuição
prevista no art. 116, inciso VI, da Lei Complementar Estadual n. 734, de 26 de
novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo), e em
conformidade com o disposto nos arts. 125, § 2.º, e 129, inciso IV, da Lei
Maior, e arts. 74, inciso VI, e 90, inciso III, da Constituição Estadual, com
base nos elementos de convicção existentes no incluso protocolado (PGJ n. 67.392/08),
vem perante esse Egrégio Tribunal de
Justiça promover a presente
AÇÃO DIRETA DE
INCONSTITUCIONALIDADE
da Lei n. 10.959, de 22 de dezembro de 1994, do município de São
Carlos, que autoriza o Prefeito
Municipal a transferir servidores para o Poder Legislativo, pelas razões e
fundamentos a seguir expostos:
A
Lei n. 10.959, de 22 de dezembro de 1994, do município de São Carlos acabou por
infringir a Constituição Paulista ao dispor, logo em seu art. 1º, o
seguinte:
Artigo 1º – Fica o Executivo autorizado
a transferir, para que passem a integrar quadro de pessoal da Câmara Municipal,
sem alterar os respectivos regime jurídico e salário base, os cargos ou
empregos dos servidores que tiverem sido colocados à disposição da Câmara Municipal,
até 31 de outubro de 1994, desde que os interessados requeiram.
Assim, a referida lei, sob o pretexto de reorganizar
o quadro de servidores públicos, acabou por infringir a Constituição Paulista
ao atentar contra a regra do concurso público ao estabelecer novo enquadramento
dos cargos ou empregos dos serviores que foram colocados à disposição da Câmara
Municipal.
É fácil constatar que a lei sindicada acabou por
restringir a regra constitucional do concurso público de ingresso, ao permitir
que os servidores que fizerem a opção possam ser transpostos, sem concurso
público, para cargo diverso para o qual ingressaram na Administração Pública.
Ocorre,
porém, que a investidura de servidores independentemente de submissão prévia a
concurso público de provas ou de provas e títulos, revela-se sobremodo
incompatível com a Constituição do Estado de São Paulo, especialmente com os
seus arts. 111, 115, incisos I e II, e 144, os quais assim estabelecem:
Art. 111 – A administração pública
direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá
aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade,
razoabilidade, finalidade, motivação e interesse público.
Art. 115 - Para a organização da
administração pública direta e indireta, inclusive as fundações instituídas ou
mantidas por qualquer dos Poderes do Estado, é obrigatório o cumprimento das
seguintes normas:
I - os cargos, empregos e funções
públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos
estabelecidos em lei;
II - a investidura em cargo ou emprego
público depende de aprovação prévia, em concurso público de provas ou de provas
e títulos, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão, declarado em lei,
de livre nomeação e exoneração;
Art. 144 - Os Municípios, com autonomia
política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por Lei
Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta
Constituição.
Assim, considerando que a Constituição do Estado é
clara ao exigir que a investidura em cargo ou emprego público depende de
aprovação prévia, em concurso público de provas ou de provas e títulos, não
pode ser considerada válida a lei municipal questionada pela presente ação
direta.
Cargo,
sabe-se, é o feixe de atribuições inerentes a um local
na administração, bem assim o seu padrão remuneratório. Ou, ‘Cargo público é o
lugar instituído na organização do serviço público, com denominação própria,
atribuições e responsabilidades específicas e estipêndio correspondente, para
ser provido por um titular, na forma estabelecida na lei’. (Hely Lopes
Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro, p. 392, Malheiros, 27.ª ed.).
Para
Celso Antonio Bandeira de Mello, 'Derivação vertical. É a passagem do titular
de um para outro cargo, com elevação funcional. Na legislação federal há duas
distintas formas de provimento que implicam derivação vertical: uma é a
promoção, que na legislação paulista denomina-se acesso; outra é a ascensão,
que não tem correspondente na legislação paulista. Vejamos em que consiste
cada qual. 'Promoção', na legislação federal, ou acesso, na legislação do Estado
de São Paulo, é a modalidade de provimento em que há passagem do titular de um
cargo para outro mais elevado, dentro da mesma carreira. É uma forma pela qual
se progride naturalmente no serviço público, segundo critérios de merecimento
e antigüidade. Esta forma de progresso, a que se fez referência, não é,
necessariamente, ascensão na escala hierárquica, ainda que, muita vez,
pretenda-se caracterizá-la assim. Na verdade, tudo vai depender do sistema de
classificação de cargos adotado. Com efeito, só há elevação na hierarquia
quando alguém assume posição de mando (cargo de chefia ou direção). A promoção
pode ser - e assim geralmente ocorre nos sistemas adotados entre nós -,
simplesmente, elevação na carreira, isto é, passagem para cargo da mesma
profissão, pelo menos em tese de maior complexidade ou responsabilidade.
'Ascensão'
é a forma de provimento derivado consistente na elevação do titular de cargo
alocado na classe final de uma dada carreira (série de classe) para cargo da
classe inicial de outra carreira, predefinida legalmente como complementar da
anterior.'[1]
Como
diz HELY LOPES MEIRELLES (‘Direito Administrativo Brasileiro’, p. 395,
27.ª ed.):
“CRIAÇÃO,
TRANSFORMAÇÃO E EXTINÇÃO DE CARGOS, FUNÇÕES OU EMPREGOS PÚBLICOS
A
criação, transformação e extinção de cargos, empregos e funções públicas do
Poder Executivo exige lei de iniciativa privativa do Presidente da República,
dos Governadores dos Estados e do Distrito Federal e dos Prefeitos Municipais,
conforme seja federal, estadual ou municipal a Administração interessada,
abrangendo a Administração direta,
autárquica e fundacional (CF, art. 48, X, c/c o art. 61, § 1a, 11,
"d"). Com a EC 32/2001, ao Chefe do Executivo compete privativamente
dispor sobre a "extinção de funções ou cargos quando vagos" (CF, art.
84, VI, "b"). Assim, não estando vago, a extinção depende de lei,
também de sua iniciativa privativa. A privatividade de iniciativa do Executivo
toma inconstitucional o projeto oriundo do Legislativo, ainda que sancionado e
promulgado pelo Chefe do Executivo, porque as prerrogativas constitucionais são
irrenunciáveis por seus titulares. A transformação de cargos, funções ou
empregos do Executivo é admissível desde que realizada por lei de sua
iniciativa. Pela transformação extinguem-se os cargos anteriores e se criam os
novos, que serão providos por concurso ou por simples enquadramento dos
servidores já integrantes da Administração, mediante apostila de seus títulos
de nomeação. Assim, a investidura nos novos cargos poderá ser originária
(para os estranhos ao serviço público) ou derivada (para os servidores
que forem enquadrados), desde que preencham os requisitos da lei. Também podem
ser transformadas funções em cargos, observados o procedimento legal e a
investidura originária ou derivada, na forma da lei. Todavia, se a transformação "implicar em alteração do título e
das atribuições do cargo, configura novo provimento", que exige o concurso
público” –
destacamos.
A
própria Constituição da República é expressa, ao dispor no art. 37, inciso II
que “a investidura em cargo ou emprego
público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas
e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na
forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão
declarado em lei de livre nomeação e exoneração”.
Alexandre
de Moraes[2], em
comentário ao art. 37, inciso II, da Constituição Federal nos dá preciosa
lição, ao anotar que:
“A Constituição Federal é intransigente
em relação à imposição à efetividade do princípio constitucional do concurso
público, como regra a todas as admissões da administração pública, vedando expressamente
tanto a ausência deste postulado, quanto seu afastamento fraudulento, por meio
de transferência de servidores públicos para outros cargos diversos daquele
para o qual foi originariamente admitido”.
Mais
adiante, conclui dizendo:
“Importante
também ressaltar que, a partir da Constituição de
Realmente,
nos termos do art. 37, inciso II, da Constituição da República, cuja regra é
repetida pelo dispositivo do art. 115, inciso II, da Carta Paulista, o instituto da transposição de cargos não
foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988, que exige o concurso
público para qualquer investidura, ressalvadas as hipóteses de nomeações para
cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração.
A
propósito, é justamente através da realização de concurso público que se
assegura a observância do princípio da acessibilidade de todos os brasileiros
aos cargos públicos, consagrado no dispositivo do art. 37, inciso I, da
Constituição Federal. Aliás, é da tradição constitucional pátria a adoção do
aludido princípio, conforme se verifica das Constituições de : 1824, art. 179,
n°14; 1891, art. 73; 1934, art. 168; 1937, art. 122, parágrafo 3°; 1946, art.
184; 1967, art. 95 “caput”; 1967/ Emenda Constitucional n°1, art. 97, “caput” e
1988, art. 37, inciso I.
Como
observa Márcio Cammarosano[3]: “O princípio da acessibilidade aos cargos
públicos consiste, em resumo, no direito de todos os brasileiros à igual
oportunidade de ingressar no serviço público, desde que preenchidos os
requisitos estabelecidos em lei”.
Como se vê, a sua observância é a própria consagração do princípio de
isonomia, já que a “igualdade de oportunidades constitui postulado fundamental
no regime democrático”, como já advertia o eminente Ministro Francisco Campos.
Márcio
Cammarosano (op. cit., p. 69), bem
observa que “conquanto desfrute o legislador ordinário de liberdade para criar
cargos agrupando-os em classes, e de reunir classes dispondo-as escalonadamente
em séries, instituindo, assim, carreiras, essa liberdade não é ilimitada, não
pode ser exercida arbitrariamente.
Principalmente
como no caso em tela, em que o legislador municipal autorizou a transposição de
cargos.
“Não
há como privilegiar alguém pelo só fato de (já) ser funcionário público e
livrá-lo da concorrência dos não funcionários para ingressar em outro cargo ou
carreira, que por concurso público deveriam ser disputados” (Edmir Netto de
Araújo, Curso de Direito Administrativo,
3ª ed., São Paulo: Saraiva, 2007, p. 327)
Sendo
assim, o legislador municipal acabou por restringir a regra constitucional do
concurso público de ingresso.
Registre-se
a ementa do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI
n. 289/CE[4],
em que foi Relator o Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, referente a caso análogo:
“Servidor
Público: estabilidade extraordinária (ADCT/CF/88, art. 19). O Tribunal tem afirmado a sujeição dos
Estados-membros às disposições da Constituição Federal relativas aos servidores
públicos, não lhes sendo dado, em particular, restringir ou ampliar os
limites da estabilidade excepcional conferida no artigo 19 do ato federal das
disposições transitórias. II. Estabilidade excepcional (Art. 19 ADCT): não
implica efetividade no cargo, para a qual é imprescindível o concurso público
(v.g. RE 181.883, 2ª T., Corrêa, DJ 27.02.98; ADIns. 88-MG, Moreira, DJ
08.09.00; 186-PR, Rezek, DJ 15.09.95; 2433-MC, Corrêa, DJ 24.8.01). III. Concurso público: exigência incontornável
para que o servidor seja investido em cargo de carreira diversa. 1. Reputa-se
ofensiva ao art. 37, II, CF, toda modalidade de ascensão de cargo de uma
carreira ao de outra, a exemplo do "aproveitamento" de que cogita a
norma impugnada. 2. Incidência da
Súmula/STF 685 ("É inconstitucional toda modalidade de provimento que
propicie ao servidor investir-se, sem prévia aprovação em concurso público
destinado ao seu provimento, em cargo que não integra a carreira na qual
anteriormente investido"). IV. Ação direta de inconstitucionalidade
julgada procedente, para declarar a inconstitucionalidade dos artigos 25, 26,
29 e 30 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição do
Estado do Ceará –
fizemos destaques.
Como
se vê, a matéria encontra-se sumulada pelo Pretório Excelso:
Enunciado n. 685
É
INCONSTITUCIONAL TODA MODALIDADE DE PROVIMENTO QUE PROPICIE AO SERVIDOR
INVESTIR-SE, SEM PRÉVIA APROVAÇÃO
Nestes termos, aguardo seja determinado
o processamento da presente ação, colhendo-se informações do Prefeito e da
Câmara Municipal de São Carlos, as quais examinarei oportunamente, vindo, no
final, a ser declarada a inconstitucionalidade da Lei n. 10.959, de 22 de dezembro de 1994, do município de São Carlos,
devendo, após, ser oficiado aos membros daquela Comuna solicitando a adoção das
providências necessárias à suspensão definitiva dos efeitos de sua execução.
São Paulo, 26 de setembro de 2008.
FERNANDO GRELLA VIEIRA
Procurador-Geral de Justiça
[1] Regime Jurídico dos Servidores da Administração Direta e Indireta, Malheiros, 3.ª ed., p. 36.
[2] - “Constituição do Brasil Interpretada”, Editora Atlas, S. Paulo, 2.002, pág. 828/829.
[3]“Provimento de Cargos Públicos no Direito Brasileiro”, edição Revista dos Tribunais, São Paulo, 1984, pág. 47.
[4] Tribunal Pleno. Julgamento: 09/02/2007. Publicação: DJ de 16-03-2007, p. 19.