EXCELENTÍSSIMO
SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO E. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO
PAULO
Protocolado nº 67.860/2010
Assunto: Inconstitucionalidade do art. 2º da Lei Complementar nº 136, de 3 de março de 2004, do Município de Araçatuba.
Ementa: 1) Lei Complementar nº 136/04, do Município de Araçatuba, que extingue o cargo de Monitor de Datilografia, de provimento efetivo, e, em seu art. 2º, determina o aproveitamento de seus ocupantes à nova classe de Assistente de Secretaria Escolar; 2) Hipótese de “transposição”; 3) Violação do princípio constitucional do concurso, da acessibilidade de cargos, empregos e funções públicas, da isonomia e da impessoalidade (art. 111, e 115, inc. I e II, da Constituição Paulista); 4) Pedido para que se declare a inconstitucionalidade parcial da lei.
O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, inciso VI da Lei Complementar Estadual nº 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo), em conformidade com o disposto no art. 125, § 2º e art. 129, inciso IV da Constituição Federal, e ainda art. 74, inciso VI e art. 90, inciso III da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado, vem, respeitosamente, perante esse Egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE do art. 2º da Lei Complementar nº 136, de 3 de março de 2004, do Município de Araçatuba, que “altera disposições da Lei Complementar nº 87, de 29 de janeiro de 2001”, pelos fundamentos a seguir expostos.
1. DO ATO NORMATIVO
IMPUGNADO
A Lei Complementar nº 136, de 3 de março de 2004, do Município de Araçatuba, que “altera disposições da Lei Complementar nº 87, de 29 de janeiro de 2001” (reproduzida a fls. 10 do incluso expediente), criou, em seu art. 1º, o cargo de Assistente de Secretaria Escolar, de provimento efetivo, reservando-lhe 20 (vinte) vagas para serem providas “por profissional com grau de instrução mínima de ensino médio e formação técnica em informática”.
Pela mesma lei, por força do art. 2º, extinguiu-se o cargo de Monitor de Datilografia e Informática, antes previsto na Lei Complementar nº 87/01, “passando os seus ocupantes, mediante aproveitamento, à nova classe de Assistente de Secretaria Escolar. Exigia-se para o provimento do cargo extinto o 2º grau completo e diploma de datilografia.
O “aproveitamento” previsto no art. 2º da Lei Complementar nº 136, de 3 de março de 2004, é ilegítimo, pois ofende frontalmente os seguintes dispositivos da Constituição do Estado de São Paulo: arts. 111, 115, incisos I e II, e 144.
É o que será demonstrado a seguir.
2. FUNDAMENTAÇÃO
A
presente propositura decorre do acolhimento de representação formulada pelo Dr.
JOSÉ AUGUSTO MUSTAFÁ, DD. Promotor de Justiça de Araçatuba.
O ilustre
Promotor de Justiça entendeu que o aproveitamento dos ocupantes dos cargos de Monitor de Datilografia e Informática nos
cargos criados pela lei impugnada desatendeu ao princípio do concurso público.
Como
observado na representação, “a transformação do cargo de Monitor de Datilografia e Informática em Assistente de Secretaria Escolar implicou em substancial alteração
das atribuições, havendo necessidade de que o provimento [deste último] ocorresse
por concurso público, a teor do disposto no artigo 37, inciso II da CF e 115,
inciso II da CE, sendo neste sentido a orientação do Pleno do STF contida na
ADI nº 266-0-RJ, DJU 6.8.93 e RTJ 143/391 e 144/24”.
De
fato, o “aproveitamento” previsto no art. 2º da LC nº 136/04, ora impugnado,
viola princípios constitucionais que exigem a realização de concurso público
para acesso aos cargos e empregos na administração pública, e, por
conseqüência, viola também a regra da acessibilidade geral e da isonomia com
relação ao provimento de cargos na administração pública, que decorrem dos
seguintes dispositivos da Constituição Estadual:
Art. 111. A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência.
Art.115. Para a organização da administração pública direta e indireta, inclusive as fundações instituídas ou mantidas por qualquer dos Poderes do Estado, é obrigatório o cumprimento das seguintes normas:
I – os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como os estrangeiros, na forma da lei;
II – a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia, em concurso público de provas ou de provas e títulos, ressalvadas as nomeações para cargo de provimento em comissão, declarado em lei, de livre nomeação e exoneração;
É
oportuno recordar que tais dispositivos são reproduções do disposto no art. 37,
incisos I e II, da CR/88, sendo todos (os da Constituição Federal e os da
Estadual), aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Constituição
Paulista.
Dispensa
maiores digressões a afirmação de que a realização de concurso público, para
acesso aos cargos, empregos, e funções públicas, é a regra. Ela só admite
exceções nas estritas hipóteses previstas na Constituição Federal e Estadual,
quais sejam, (a) a nomeação para cargos de provimento em comissão previstos em
lei específica de cada ente federativo (nos casos de cargos ou funções de
direção, chefia ou assessoramento superior da administração, em que deva
prevalecer o vínculo de especial confiança entre o servidor e o agente superior
ao qual se vincule), e (b) a contratação temporária, nas hipóteses previstas em
lei de cada ente federativo, para atendimento à necessidade temporária de
excepcional interesse público (cf. art. 115, incs. II, V e X, da Constituição
Paulista; art. 37, incs. I, II e IX, da CR/88).
Diante
disso, qualquer dispensa indevida da realização de concurso para fins de
ingresso no serviço público, ou mesmo a realização de provimentos a partir de
concursos internos, para que servidores ocupem cargos ou empregos situados em
carreira distinta, ou finalmente o
simples aproveitamento de servidores em cargos ou empregos integrantes de
carreira distinta, são atos que significam, na prática, burla à regra do
concurso. Traduzem-se, do mesmo modo, em criação de óbice à acessibilidade de
todos os cidadãos aos cargos públicos previstos em lei, e, por conseguinte,
violação ao princípio da isonomia. Criam, finalmente, possibilidade de
favorecimento, com quebra do princípio da impessoalidade.
No
caso em exame, o Monitor de Datilografia
e Informática, que, essencialmente, ocupava-se do ensino de datilografia e
informática, foi alçado ao cargo de Assistente
de Secretaria Escolar, para o desempenho de funções burocráticas da
administração escolar, com substancial aumento da referência salarial (de 08
para 13), fato que, por si só, constitui-se em indicativo da transposição.
Essa
realidade, aliás, ficou mais palpável quando o Sr. Prefeito, atendendo ao nosso
pedido de informações, encaminhou extrato do Decreto nº 10.795, de 14 de julho
de 2003, que “regulamenta as Classes Funcionais Instituídas pela Lei
Complementar nº 87, de 29 de janeiro de 2001 e alterações posteriores”, com as
alterações do Decreto nº 11.109, de 18 de março de 2004.
Destacam-se
as seguintes distinções entre os cargos estudados:
Monitor de Datilografia e
Informática |
Assistente de Secretaria
Escolar |
As
atribuições desta classe consistem em desenvolver/capacitar os alunos nas
habilidades para datilografia e informática, através de aulas, acompanhamento
e aplicação de provas. |
As
atribuições desta classe consistem em assessorar diretamente os diretores de
escola, planejando, organizando e implementando serviços administrativos da
secretaria escolar, bem como supervisionar o ensino de informática nas
unidades escolares. |
Com
isso, não se pode confundir o caso tratado nestes autos, com situações em que,
por lei nova, é conferida nova denominação a cargos públicos, sem que haja
mudança de atribuições. Em tais casos, o enquadramento dos antigos titulares,
admitidos por concurso público, é feito sem maiores dificuldades ou
questionamentos, pois que é admissível a “transposição” do servidor para cargo idêntico, da mesma natureza, em
novo sistema de classificação (STF, RTJ 150/26).
Note-se
que, para que tal solução seja legítima, é imprescindível que o aproveitamento
de ocupantes de cargos extintos nos recém-criados se opere em vista de “completa identidade substancial entre os
cargos em exame, além de compatibilidade funcional e remuneratória e
equivalência dos requisitos exigidos em concurso” (ADIs 1.591, Rel. Min.
Octavio Gallotti, e 2.713, Rel. Min. Ellen Gracie).
Esta
situação não se confunde com a hipótese de “transformação”, em que se verifica
a alteração do título e das atribuições do cargo, e por isso configura novo
provimento, a depender da exigência de concurso público (ADI 266, Rel. Min.
Octavio Gallotti, julgamento em 18-6-93, DJ de 6-8-93).
Vale recordar que o conceito de carreira diz
respeito ao “agrupamento de classes da
mesma profissão ou atividade, escalonadas segundo a hierarquia do serviço, para
acesso privativo dos titulares dos cargos que a integram, mediante provimento
originário” (cf. Hely Lopes Meirelles, Direito
Administrativo Brasileiro, 34ª. ed., São Paulo, Malheiros, 2008, p. 424).
No mesmo sentido: Edmir Netto de Araújo, Curso
de Direito Administrativo, São Paulo, 2005.
Natural
assim a evolução funcional, que deve ocorrer, dentro de uma mesma carreira, de
um cargo ou emprego situado em plano inferior, para outro localizado em patamar
superior.
Diversa,
entretanto, é a hipótese em exame, pois aqui, o que se verifica, é o logro, de
forma indireta, ao princípio do concurso público e a seus corolários lógicos.
Nosso
sistema constitucional consagrou o livre acesso aos cargos, empregos e funções
públicas, na forma prevista em lei, e a submissão prévia a concurso público,
ressalvadas, evidentemente, as nomeações para cargos
É por meio do concurso que se resguarda “a aplicação do princípio da igualdade de
todos (CF., art. 37, I) e, ao mesmo tempo, o interesse da Administração em
admitir somente os melhores” (Celso Ribeiro Bastos, op. cit., p. 66), afastando-se “os
ineptos e apaniguados, que costumam abarrotar as repartições públicas, num
espetáculo degradante de protecionismo e falta de escrúpulos de políticos que
se alçam e se mantêm no poder, leiloando empregos públicos” (Hely Lopes
Meirelles, Direito Administrativo
Brasileiro, 34ª ed., São Paulo,
RT, 2008, p. 440/441).
Acrescente-se,
ademais, que a existência de formas de provimento derivadas “de modo algum significa abertura para
costear se o sentido próprio do concurso público. Como este é sempre específico
para dado cargo, encartado em carreira certa, quem nele se investiu não pode
depois, sem novo concurso público, ser trasladado para cargo de natureza
diversa ou de outra carreira melhor retribuída ou de encargos mais nobres e
elevados. O nefando expediente a que se alude foi algumas vezes adotado, no passado,
sob a escusa de corrigir desvio de funções ou com arrimo na nomenclatura
esdrúxula de ‘transposição de cargos’. Corresponde a uma burla manifesta do
concurso público. É que permite a candidatos que ultrapassaram apenas concursos
singelos, destinados a cargos de modesta expressão – e que se qualificaram tão
somente para eles – venham a aceder, depois de aí investidos, a cargos outros,
para cujo ingresso se demandaria sucesso em concursos de dificuldades muito
maiores, disputados por concorrentes de qualificação bem mais elevada”
(Celso Antônio Bandeira de Mello, Regime
Constitucional dos Servidores da Administração Direta e Indireta, São
Paulo, RT, 1995, p. 55).
Não
se nega, observe-se, a possibilidade de aprimoramento na organização
administrativa de determinado ente federativo, e tampouco a reestruturação do
respectivo quadro de cargos, empregos e funções. Tal possibilidade é ínsita à
própria autonomia de cada ente federativo, e em especial dos Municípios (art. 29,
30, inc. I, da CR/88).
Também
não se refuta a possibilidade de enquadramento de servidores, já integrantes da
administração, nos casos de extinção ou transformação de cargos, empregos e
funções, desde que idênticas as
atribuições do novo cargo, e idênticos os requisitos ou condições exigidos dos
candidatos ao seu provimento. Contudo, como anota Hely Lopes Meirelles, “se a transformação implicar alteração do
título e das atribuições do cargo, configura novo provimento, que exige
concurso público” (Direito
Administrativo Brasileiro, cit., p.
427).
É
oportuno averbar que no STF a matéria é pacífica. Encontra-se sedimentada no
verbete nº 685 da súmula da jurisprudência dominante da Corte, com a seguinte
dicção:
É inconstitucional toda modalidade de provimento que propicie ao servidor investir-se, sem prévia aprovação em concurso público destinado ao seu provimento, em cargo que não integra a carreira na qual anteriormente investido. (SÚM. 685).
Há
diversos precedentes do STF que, sob vários aspectos e em situações diferentes,
confirmam que nosso sistema constitucional não transige com a regra do concurso
público. Assim, como quando a Corte veda a ascensão e a transferência, que são
formas de ingresso em carreira diversa daquela para a qual o servidor público
ingressou por concurso (ADI 231, Rel. Min. Moreira Alves, julgamento em 5-8-92,
DJ de 13-11-92; ADI 3.582, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 1º-8-07,
DJ de 17-8-07); ou ao proibir o mero enquadramento de prestadores de serviço (ADI
3.434-MC, voto do Min. Joaquim Barbosa, julgamento em 23-8-06, DJ de 28-9-07);
ou mesmo ao vedar o enquadramento de servidores que exerçam determinadas
funções, em cargos que integram carreira distinta, ainda que com período prévio
de reciclagem (ADI 388, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 20-9-07, DJ de
19-10-07; ADI 3.442, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 7-11-07, DJ de
7-12-07).
Relevante
notar, do mesmo modo, que a exigência de concurso público para a investidura em
cargo assegura, entre outras coisas, o respeito aos princípios da impessoalidade
e o da isonomia. A estabilidade constitucional anômala e transitória prevista
no art. 19 do ADCT-CR/88, aplicável aos servidores não concursados que, quando
da promulgação da Carta Federal, contassem com, no mínimo, cinco anos
ininterruptos de serviço público, tem sido interpretada restritivamente. O STF
tem, reiteradamente, afirmado a inconstitucionalidade de normas estaduais que
ampliam a exceção à regra da exigência de concurso para o ingresso no serviço:
ADI 498, Rel. Min. Carlos Velloso (DJ de 9-8-1996); ADI 208, Rel. Min. Moreira
Alves (DJ de 19-12-2002); ADI 100, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em
9-9-04, DJ de 1º-10-04; ADI 88, Rel. Min. Moreira Alves, julgamento em 11-5-00,
DJ de 8-9-00; ADI 289, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 9-2-07, DJ
de 16-3-07; ADI 125, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 9-2-07, DJ de
27-4-07.
3. CONCLUSÃO E
PEDIDO
Por todo o exposto, evidencia-se a necessidade de reconhecimento da inconstitucionalidade da norma aqui apontada.
Assim, aguarda-se o recebimento e processamento da presente Ação Declaratória, para que ao final seja julgada procedente, reconhecendo-se a inconstitucionalidade do art. 2º da Lei Complementar nº 136, de 3 de março de 2004, do Município de Araçatuba, que “altera disposições da Lei Complementar nº 87, de 29 de janeiro de 2001”, na parte em que prevê o aproveitamento dos cargos extintos, do que decorrerá a disponibilidade dos servidores que os ocupavam, até que cargos equivalentes àqueles para os quais foram concursados sejam recriados.
Requer-se ainda sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Prefeito Municipal, bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para que, querendo, possa se manifestar sobre o ato normativo impugnado.
Posteriormente, aguarda-se vista para fins de manifestação final.
São Paulo, 25 de agosto de 2010.
Fernando Grella Vieira
Procurador-Geral de Justiça
jesp
Protocolado nº 67.860/2010
Assunto: Inconstitucionalidade do art. 2º da Lei Complementar nº 136, de 3 de março de 2004, do Município de Araçatuba.
1. Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade, em face do art. 2º da Lei Complementar nº 136, de 3 de março de 2004, do Município de Araçatuba, que “altera disposições da Lei Complementar nº 87, de 29 de janeiro de 2001”, junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
2. Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.
São Paulo, 25 de agosto de 2010.
Fernando Grella Vieira
Procurador-Geral de Justiça
jesp