Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

 

Protocolado nº70.875/08

Objeto: art.11 e 12 da Lei Complementar Municipal nº48, de 13 de novembro de 2007, de Itararé.

 

Ementa:

1)Lei Municipal. Isenção fiscal de tributos municipais para empresas que se instalarem no Município.

2)Necessidade de lei específica (art.163 § 6º c.c. o art.144 da Constituição Paulista).

3)Violação da moralidade administrativa e da razoabilidade (art.111 e art.144 da Constituição Paulista).

4)Inconstitucionalidade reconhecida.

 

 

         O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício de suas atribuições (art.116 VI da Lei Complementar Estadual nº734/93 - Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo -; art.125 §2º e 129 IV da Constituição Federal; art.74 VI e art.90 III da Constituição do Estado de São Paulo), com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado (PGJ nº70.875/08) vem perante esse Egrégio Tribunal de Justiça promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE do art.11 e do art.12 da Lei Complementar Municipal nº48, de 13 de novembro de 2007, de Itararé, pelos fundamentos expostos a seguir.

 

1)Do ato normativo impugnado.

 

         O protocolado que deu ensejo à propositura da presente ação direta de inconstitucionalidade foi instaurado por força de representação formulada pelo DD. Promotor de Justiça de Itararé, Dr. (...), que colocou em discussão a previsão contida na lei em epígrafe (art.3º §1º da Lei Complementar nº48/07), quanto à possibilidade de “cessão de espaços e imóveis públicos do Poder Executivo Municipal sem que cada caso específico seja analisado pelo Poder Legislativo Municipal” (cf. representação de fls.2).

 

         Ocorre que, embora a redação originária do projeto de lei complementar nº08/07, de Itararé, não contivesse a previsão da necessidade de lei específica (cópia do projeto de lei complementar nº08/07 às fls.04), a redação final da lei contemplou tal exigência, como se infere do art.3º e respectivo §1º da Lei Complementar Municipal nº48/07 (fls.79).

 

         Contudo, analisando o mencionado diploma legal, que, de conformidade com a respectiva rubrica, “Dispõe sobre o Programa de Desenvolvimento Empresarial de Itararé e dá outras providências”, depara-se com dispositivos que prevêem a possibilidade de isenção fiscal:

 

“Art.11. Ficarão isentos do Imposto Predial e Territorial Urbano, de Imposto Sobre Transmissão de Bens Imóveis, do Imposto Sobre Serviço de Qualquer Natureza, e das taxas de serviços urbanos e as decorrentes do exercício do Poder de Polícia Administrativa, as empresas que obtiverem os benefícios da lei, para as atividades industriais, agro-industriais, de prestação de serviço ou comercial pelo prazo:

a)de cinco anos, quando gerarem até 10 (dez) novos empregos;

b)de dez anos, quando oferecerem mercados de trabalho para mais de 10 (dez) e até 20 (vinte) novos empregos;

c)de quinze anos, quando criarem mais de 20 (vinte) novos empregos e até 50 (cinqüenta);

d)de vinte anos, quando gerarem mais de 50 (cinqüenta) novos empregos.

§1º. A isenção de que trata este artigo é concedida anualmente devendo ser renovada pelo mesmo período, mediante prova do número exato de empregados no ano anterior, levada em consideração a média mensal dos efetivamente empregados.

§2º. A prova do número de funcionários, de que trata o parágrafo anterior, far-se-á da seguinte forma: junto com o requerimento do pedido de isenção anual ou sua renovação, o requerente anexará cópia, com autenticação bancária, da guia de recolhimento do FGTS e informações à previdência social (GFIP), bem como a relação dos trabalhadores constantes do arquivo SEFIP.

§3º. Sendo constatada fraude ou simulação no requerimento ou nas informações, o contribuinte estará automaticamente impedido de requerer o mesmo benefício, pelo prazo de dez anos.

 

Art.12. Além dos benefícios fiscais previstos no artigo anterior, as empresas individuais ou coletivas, que tiverem seus processos aprovados pelo Conselho Diretor do PDE e homologados pelo Prefeito Municipal, poderão gozar dos seguintes incentivos fiscais:

a)isenção de taxas e/ou emolumentos pela aprovação do projeto ou projetos de construção, alvará de construção e habite-se;

b)serviço de locação, terraplanagem, aterro e desaterro e, em casos específicos, construção de lagoas para tratamento de efluentes ou outros serviços prestados pelo equipamento rodoviário municipal, desde que o atendimento implique em interesse público relevante (sic);

c)assessoria na busca de linhas de crédito;

d)iniciação empresarial e treinamento para dirigente;

e)cursos de formação de mão-de-obra qualificada mediante convênio com entidades públicas ou privadas promotoras desses eventos.”

 

            Entretanto, tais dispositivos são verticalmente incompatíveis com nossa ordem constitucional.

 

2)Vício material: violação da exigência de lei específica.

 

         Há exigência constitucional expressa no sentido de que a lei que concede o benefício fiscal seja específica, nos termos do art.163 §6º da Constituição Estadual, red. da EC 21/2006 (que reproduz o art.150 §6º da CF/88, red. EC 03/93).

 

         A exigência de “lei específica” significa, em outras palavras, que o diploma deve tratar exclusivamente da matéria, definindo, além disso, elementos concretos objetivos e subjetivos, que permitam identificar as hipóteses em que o benefício será aplicável, bem como seus beneficiários.

 

         A exigência de lei específica demonstra que o estabelecimento de qualquer benefício fiscal encontra-se inserido no âmbito das matérias constitucionalmente atribuídas ao Poder Legislativo. A lei que concede o benefício fiscal deve conter conteúdos mínimos que indiquem os grupos ou classes de pessoas beneficiadas, as hipóteses abrangidas, bem como os pressupostos ou requisitos para a obtenção do favor fiscal.

 

         Trata-se de reserva de lei formal, pois aludida matéria não pode ser objeto pura e simplesmente de ato regulamentar.

 

         Em outras palavras, não é possível que a autorização seja concedida pela lei de forma “genérica”. A não observância de indicadores concretos e mínimos, delimitando a abrangência do benefício fiscal, configura verdadeiro “cheque em branco” para o administrador público, que poderá outorgar favores fiscais a quem bem entender, ainda que a pretexto de aplicar a lei.

 

         Tratando do tema da anistia tributária, em raciocínio aplicável ao caso, anota Ricardo Lobo Torres que se veda “a autorização em branco” (Curso de direito financeiro e tributário, 14ª ed., Rio de Janeiro, Renovar, 2007, p.316).

 

         No dizer de Hely Lopes Meirelles, referindo-se à isenção tributária, “prática inteiramente ilegal é a concessão de isenções por ato administrativo do prefeito. O Chefe do Executivo só pode deferir as isenções nos termos da lei isentadora. Seu ato será meramente declaratório do benefício legal, desde que o contribuinte comprove a satisfação de todos os requisitos exigidos pela norma disciplinadora da isenção (Direito municipal brasileiro, 15ªed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p.188, g.n.).

 

         De outro lado, Leandro Paulsen, invocando excerto doutrinário da lavra de Tércio Sampaio Ferraz Júnior a respeito do sentido da expressão “lei específica” contida no art.150 §6º da CF/88, averba que “esta lei deve ser específica. Específica opõe-se a genérico (...)  diz-se que o preceito é genérico ou porque se dirige a todos os destinatários (generalidade pelo sujeito) ou porque sua matéria consiste num tipo abstrato (generalidade pelo objeto). Em contraposição, o específico o será também pelo sujeito (individuação do destinatário) ou pelo objeto (singularização da matéria). A exigência de lei específica significa, nesse sentido, que seus preceitos devem estar dirigidos a um subconjunto dentro de um conjunto de sujeitos ou que seu conteúdo deve estar singularizado na descrição da facti species normativa, i. é, pela delimitação de um subconjunto material dentro de um conjunto. (...) a lei específica, segundo o §6º do art.150 da Constituição, deverá regular exclusivamente as matérias ali enumeradas ou regular exclusivamente os correspondentes tributo ou contribuição. (‘A noção de lei específica no art.150 §6º, a CF, e a recepção dos Decretos-leis 2163/84 e 1184/71’, em RDT 70, p.181-188)”, apud Leandro Paulsen, Direito Tributário, 9ªed., 2ª tir., Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2007, p.267, g.n.).

 

         No E. STF, confira-se: ADI 155, Rel. Min. Octavio Gallotti, julgamento em 3-8-98, DJ de 8-9-00.

 

3)Vício material: violação da moralidade administrativa.

 

         O ato normativo impugnado também viola o princípio da moralidade administrativa, previsto no art.111 da Constituição do Estado, aplicável aos Municípios por força do art.144 da Carta Paulista.

 

         Em oportuna síntese, anota Maria Sylvia Zanella Di Pietro que “sempre que em matéria administrativa se verificar que o comportamento da Administração ou do administrado que com ela se relaciona juridicamente, embora em consonância com a lei, ofende a moral, os bons costumes, as regras de boa administração, os princípios de justiça e de equidade, a idéia comum de honestidade, estará havendo ofensa ao princípio da moralidade administrativa” (Direito Administrativo, 19ª ed., São Paulo, Atlas, 2006, p.94).

 

         No caso em exame evidencia-se a violação ao princípio da moralidade administrativa.

 

         Isso decorre da verificação de que, mesmo em se tratando de um Município que ostenta problemas sociais e estruturais, o Poder Público simplesmente abdica por completo da obtenção de receitas legítimas decorrentes de tributos devidos por empresas que ali funcionarão, sob a singela argumentação de que isso servirá para estimular a instalação de novas empresas e a criação de novos postos de trabalho.

 

4)Vício material: violação da razoabilidade.

 

Restou violado também o princípio da razoabilidade, que encontra assento no art.111 da Constituição do Estado de São Paulo.

 

A lei simplesmente confere isenção de todos os tributos municipais, por vários anos, desde que criados, por cada empresa beneficiária, alguns poucos postos de trabalho.

 

Esse enorme favor legal, justificado, nos termos do diploma, por uma quase que ínfima contrapartida (criação de poucos postos de trabalho), demonstra que a solução prevista na lei fere o princípio da razoabilidade, ao criar um ônus desnecessário, inapropriado, e descabido para a Administração Pública.

 

         Como anota Diogo de Figueiredo Moreira Neto, o princípio da razoabilidade “visa a afastar o arbítrio que decorrerá da desadequação entre meios e fins”, tendo importância tanto quando da criação da norma, como quando de sua aplicação. Ademais, prossegue o autor, “o princípio da proporcionalidade, uma vez admitido como um princípio substantivo autônomo, como é considerado na doutrina alemã do Direito Público, e não apenas com o sentido estrito contido no conceito de razoabilidade, prescreve, especificamente, o justo equilíbrio entre os sacrifícios e os benefícios resultantes da ação do Estado” (Curso de direito administrativo, 14ªed., Rio de Janeiro, Forense, 2006, p.101). Também nesse sentido Maria Sylvia Zanella Di Pietro (Direito administrativo, 19ªed., São Paulo, Atlas, 2006, p.95).

 

         Em sede doutrinária, Gilmar Ferreira Mendes, examinando a aplicação do princípio da proporcionalidade pelo Pretório Excelso, anotou “de maneira inequívoca a possibilidade de se declarar a inconstitucionalidade da lei em caso de sua dispensabilidade (inexigibilidade), inadequação (falta de utilidade para o fim perseguido) ou de ausência de razoabilidade em sentido estrito (desproporção entre o objetivo perseguido e o ônus imposto ao atingido)” (cf. A proporcionalidade na jurisprudência do STF, publicado em Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade, São Paulo, Instituto Brasileiro de Direito Constitucional e Celso Bastos Editor, 1998, p.83).

 

         Na hipótese em exame é absolutamente dispensável a previsão legal impugnada, desnecessária, e ainda, como último e não menos importante aspecto, inteiramente desproporcional no cotejo entre os fins pretensamente almejados pela norma, e o ônus imposto ao erário (proporcionalidade strictu senso).

 

         Em outras palavras, em troca da criação de alguns postos de trabalho, o Município abre mão de toda a receita tributária decorrente da atividade das empresas beneficiárias da isenção, deixando aos demais contribuintes (a grande maioria dos munícipes) o ônus de arcar com a formação de toda a receita Municipal.

 

5)Da liminar.

 

         Estão presentes, na hipótese examinada, os pressupostos do fumus bonis iuris e do periculum in mora, a justificar a suspensão liminar da vigência e eficácia do ato normativo impugnado.

 

         A razoável fundamentação jurídica decorre dos motivos expostos anteriormente, que indicam, de forma clara, que os dispositivos impugnados na presente ação padecem de vício de inconstitucionalidade.

 

         O perigo da demora decorre especialmente da idéia de que, sem a imediata suspensão da vigência e eficácia do ato normativo questionado, serão concedidas pelo Executivo local isenções de todos os tributos municipais para inúmeras empresas. Tal situação gerará (possivelmente já venha gerando) prejuízo material incomensurável ao erário, que dificilmente poderá ser reparado. É nítida a ocorrência da hipótese do fato consumado.

 

         Ademais, em hipótese similar em que o E. STF concedeu a liminar para a suspensão de lei que concedia remissão fiscal, ficou consignada a necessidade da medida, tendo em vista que destinada a “(...) evitar maior dano ao erário estadual e, principalmente, tendo-se em conta a preocupação trazida pelo próprio requerido, em suas informações, no sentido de que eventual declaração de inconstitucionalidade dos benefícios ainda a serem concedidos poderão causar graves transtornos e insegurança jurídica a importantes contribuintes do Estado (...)” (ADI MC 3462-6/PA, rel. Min. Ellen Gracie, 08.09.2005).

 

         Acrescente-se que a idéia do fato consumado, com repercussão concreta, guarda relevância para a apreciação da necessidade da concessão da liminar na ação direta de inconstitucionalidade. Note-se que, com a procedência da ação, pelas razões declinadas, dificilmente será viável restabelecer o status quo ante.

 

         Assim, a imediata suspensão da eficácia da dos dispositivos impugnados, cuja inconstitucionalidade é palpável, evitará maiores prejuízos, além daqueles que já sofridos até o momento.

 

         De resto, ainda que não houvesse essa singular situação de risco, restaria, ao menos, a excepcional conveniência da medida. Com efeito, no contexto das ações diretas e da outorga de provimentos cautelares para defesa da Constituição, o juízo de conveniência é um critério relevante, que vem condicionando os pronunciamentos mais recentes do Supremo Tribunal Federal, preordenados à suspensão liminar de leis aparentemente inconstitucionais (cf. ADIN-MC 125, j. 15.2.90, DJU de 4.5.90, p. 3.693, rel. Min. Celso de Mello; ADIN-MC 568, RTJ 138/64; ADIN-MC 493, RTJ 142/52; ADIN-MC 540, DJU de 25.9.92, p. 16.182).

 

         Diante do exposto, requer-se a concessão da liminar, para fins de suspensão imediata da eficácia do ato normativo impugnado, ou seja, art.11 e art.12 da Lei Complementar Municipal nº48, de 13 de novembro de 2007, de Itararé, até o julgamento final da presente ação.

 

         Pelos motivos expostos, a providência é indispensável, para a eficácia teórica e prática do provimento esperado, de procedência desta ação.

 

6)Conclusão e pedido.

 

         Diante do exposto, aguarda-se o recebimento e processamento da presente ação declaratória, para que ao final seja ela julgada procedente, reconhecendo-se a inconstitucionalidade dos art.11 e 12 da Lei Complementar Municipal nº48, de 13 de novembro de 2007, de Itararé.

 

         Requer-se ainda sejam requisitadas informações à Câmara Municipal de Itararé, bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para manifestar-se sobre o ato normativo impugnado.

 

         Posteriormente, aguarda-se vista para fins de manifestação final.

 

São Paulo, 07 de agosto de 2008.

 

 

 

 

 

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça