Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

 

 

 

 

 

 

 

 

             O PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA, no exercício da atribuição prevista no artigo 116, inciso VI, da Lei Complementar n. 734, de 26 de novembro de 1993, e em conformidade com o disposto nos artigos 125, § 2º, e 129, IV, da Constituição Federal e artigo 74, VI, e 90, III, da Constituição Estadual, vem, respeitosamente, promover perante esse Colendo Tribunal de Justiça a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE, com pedido liminar, em face da Lei n. 3.723, de 28 de abril de 2008, do Município de Pirassununga, por contraste aos artigos 1º, 5º, 24, § 2º, 2, 47, II e XIX, a, 111, 144, 219, parágrafo único e 233, V, da Constituição do Estado de São Paulo, pelos motivos de fato e de direito a seguir expostos:

1.           A  Lei n. 3.723, de 28 de abril de 2008,  do Município de Pirassununga, de iniciativa parlamentar e após a rejeição do veto, tem a seguinte redação:

“Art. 1º.  Fica proibido no âmbito do Município, através da Rede Municipal de Saúde ou Secretaria Municipal da Saúde, a distribuição da ‘pílula do dia seguinte’.

Art. 2º.  Fica proibido, igualmente, a distribuição e implantação do DIU Dispositivo Intra Uterino pela Rede Municipal de Saúde ou Secretaria Municipal da Saúde.

Art. 3º. O descumprimento da presente lei, gerará ao infrator multa de 30.000 UFM (Unidades Fiscais do Município).

Art. 4º. O Executivo Municipal poderá por Decreto, regulamentar a presente lei, no tocante ao seu cumprimento.

Art. 5º. Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário”.

 

2.           O dispositivo legal, de iniciativa parlamentar, contrasta vários princípios constitucionais porque, em síntese:

a) disciplinou assunto que se insere na competência legislativa (concorrente) da União e dos Estados Federados, (art. 24, XII - proteção e defesa da saúde), bem assim na competência material da União e dos Estados para a formulação e execução de políticas globais de atendimento e procedimentos referentes à Saúde (art. 200, I, da Constituição da República, arts. 219, parágrafo único e art. 223, V, da Constituição do Estado de São Paulo), desrespeitando os artigos 1º, 24, 111 e 144, 219, parágrafo único, e 223, V, da Constituição do Estado;

b) por ser de iniciativa parlamentar, violou o princípio da separação de poderes (arts. 5º, 24, § 2º, 2, e 47, II e XIX, a, da Constituição do Estado), dado que se trata de matéria administrativa, concernente à organização e ao funcionamento de serviço público, da competência do Poder Executivo.  

 

3.           Com efeito, assim dispõem as referidas normas constitucionais:

“Art. 1º. O Estado de São Paulo, integrante da República Federativa do Brasil, exerce as competências que não lhe são vedadas pela Constituição Federal.

(...)

Art. 5º. São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

(...)

Art. 24. A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Assembléia Legislativa, ao Governador do Estado, ao Tribunal de Justiça, ao Procurador-Geral de Justiça e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.

(...)

§ 2º. Compete, exclusivamente, ao Governador do Estado a iniciativa das leis que disponham sobre:

(...)

2 - criação das Secretarias de Estado e órgãos da administração pública, observado o disposto no art. 47, XIX;

(...)

Art. 47. Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

(...)

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

(...)

XIX – dispor, mediante decreto, sobre:

a) organização e funcionamento da administração estadual, quando não implicar aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos;

(...)

Art. 111. A administração pública direta, indireta ou funcional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação e interesse público.

(...)         

Art. 144. Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.

(...)

Art. 219. A saúde é direito de todos e dever do Estado.

Parágrafo único - Os Poderes Públicos Estadual e Municipal garantirão o direito à saúde mediante:

1 - políticas sociais, econômicas e ambientais que visem ao bem-estar físico, mental e social do indivíduo e da coletividade e à redução do risco de doenças e outros agravos;

Art. 223. Compete ao sistema único de saúde, nos termos da lei, além de outras atribuições:

(...)

V - a organização, fiscalização e controle da produção e distribuição dos componentes farmacêuticos básicos, medicamentos, produtos químicos, biotecnológicos, imunobiológicos, hemoderivados e outros de interesse para a saúde, facilitando à população o acesso a eles (...)''.

 

4.           Os parâmetros da Constituição da República referidos pela Constituição do Estado (art. 1º e 144) são:

“Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos

(...)

Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:

(...)

XII - previdência social, proteção e defesa da saúde;

(...)

Art. 200. Ao sistema único de saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei:

I - controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a saúde e participar da produção de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos, hemoderivados e outros insumos (...)''.

 

 

5.           A lei local impugnada invadiu, inconstitucionalmente, área de competência legislativa da  União e dos Estados (legislar sobre políticas públicas de saúde) e da competência material dos mesmos, ou seja, a de formular e executar  as políticas públicas globais em termos de Saúde Pública. Tratou de assunto que, sequer de longe, pode-se afirmar como de interesse local. A Constituição da República é clara, ao prever que aos Municípios somente:

“Art. 30 - Compete aos Municípios:

I - legislar sobre assuntos de interesse local;

II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber (...)”.

 

6.           A distribuição de pílulas chamadas de anticoncepção de emergência ou de dispositivos intra-uterinos são temas que não se inserem na cláusula do interesse local para legitimar a intervenção normativa municipal, sendo, obviamente, assunto de interesse geral ou nacional. Tampouco anima competência suplementar, pois, como explica Fernanda Dias Menezes de Almeida, ''só cabe a suplementação em assuntos que digam respeito ao interesse local. Nenhum sentido haveria, por exemplo, em o Município suplementar legislação federal relativa ao comércio exterior ou relativa à nacionalidade  ou naturalização.'' (Competências na Constituição de 1988, São Paulo: Atlas, 2.ª ed., p. 156).

 

7.           Ademais, não se pode olvidar que o Município somente pode suplementar a competência privativa de outros entes federados, quando necessário ao exercício de sua competência material privativa, o que não é o caso, obviamente. Neste sentido, a preclara doutrinadora explica que “terá cabimento a legislação municipal suple­mentar quando o exercício da competência material privativa do Município de­pender da observância de normação heterônoma. Isto poderá ocorrer em relação à legislação federal e à legislação estadual. Quanto à legislação federal, o Município complementará ou suprirá normas gerais da União ao exercer, por exemplo, a competência privativa de instituir os próprios tributos. De fato, a instituição de tributos, por qualquer das esferas, se deve pautar pelas normas gerais de Direito Tributário postas pela União. Nesse caso, o Município estabelecerá as normas tributárias específicas (com­petência complementar) e poderá até mesmo editar normas gerais, admitindo-se, em tese, que à União se omita em expedi-las (competência supletiva). É possível ainda a legislação suplementar do Município nas hipóteses em que, para o atendimento de competência material privativa, o Município tenha que ob­servar lei federal que à União caiba editar no exercício de sua competência legisla­tiva plena”.

 

8.           E tanto a União quanto o Estado de São Paulo exerceram sua competência legislativa na matéria. Na esfera federal, existe a Lei n. 8.080, de 19 de setembro de 1990, a dispor sobre as ações coordenadas e planejadas do Sistema Único de Saúde (SUS), bem assim a Lei n. 9.782, de 26 de janeiro de 1999, criando o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária.

 

9.           Não há registro de que os medicamentos e produtos vedados no âmbito municipal por força da lei local tenham sido proibidos pelo legislador federal nem pelos órgãos e entidades administrativos habilitados nessa esfera. Pelo contrário, são admitidos.

 

10.         Se os motivos da proibição estão ligados a credo religioso, com a indicação de que tais medicamentos e produtos seriam abortivos, obtempere-se que não há qualquer fundamentação científica mais séria para tal afirmação; e a convicção religiosa, por mais respeitável que seja, não pode se transmudar em dever (norma jurídica); o Estado brasileiro é laico e garante aos nacionais os seus direitos independentemente de convicção religiosa  (art. 5º,  VIII, Constituição da República).

 

11.         Ademais, a Constituição da República incentiva a paternidade responsável, estando claro que compete ''ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito'' (art. 226, § 7º, da Constituição da República).

 

12.         O Município invadiu tema  sobre o qual não dispõe de competência consittucional. Reinhold Zippelius aponta que: "O Estado Federal, é, pois também uma reunião de Estados, mas organizada de tal maneira que o seu conjunto constitui igualmente um Estado em si mesmo. Esse conjunto das respectivas competências estatais no Estado Federal acha-se de tal modo distribuído entre os órgãos do Estado Federal e os dos diferentes países que o constituem, que o problema da hierarquia dessas competências fica sempre como que suspenso e em aberto. Por via de regra, as atribuições exclusivas dos Estados são repartidas segundo o critério das diferentes matérias. Assim, serão geralmente cometidas aos órgãos centrais as questões da política externa e aos Estados membros as questões de segurança e ordem pública interior. A competência legislativa pode também pertencer, segundo a índole das matérias de que se trata, já aos órgãos do poder central, já aos dos diversos países ou Estados. Ambos podem, porém, colaborar também na feitura das leis, ficando aos órgãos centrais a promulgação e aos outros, os das regiões, a execução delas” (Apud Celso Bastos e Ives G. Martins. Comentários à Constituição do Brasil, Sao Paulo: Saraiva, vol. III, tomo I, p. 107).

 

13.         Para  HELY LOPES MEIRELLES, “estabelecida essa premissa é que se deve partir em busca dos assuntos da competência municipal, a fim de selecionar os que são e os que não são de seu interesse local, isto é, aqueles que predominantemente interessam à atividade local.   Seria fastidiosa  - e inútil, por incompleta -  a apresentação de um elenco casuístico de assuntos de interesse local do Município, porque a atividade municipal, embora restrita ao território da Comuna, é multifária nos seus aspectos e variável na sua apresentação, em cada       localidade. Acresce, ainda, notar a existência de matérias que se sujeitam simultaneamente à regulamentação pelas três ordens estatais, dada sua repercussão no âmbito federal, estadual e municipal.  Exemplos típicos dessa categoria são o trânsito e a saúde pública, sobre os quais dispõem a União (regras gerais: Código Nacional de Trânsito, Código Nacional de Saúde Pública), os Estados (regulamentação: Regulamento Geral de Trânsito, Código Sanitário Estadual) e o Município (serviços locais: estacionamento, circulação, sinalização etc; regulamentos sanitários municipais). Isso porque sobre cada faceta do assunto há um interesse predominante de uma das três entidades governamentais. Quando essa predominância toca ao Município a ele cabe regulamentar a matéria, como assunto de seu interesse local. Dentre os assuntos vedados ao Município, por não se enquadrarem no conceito de interesse local,  é de se assinalar, a título exemplificativo, a atividade jurídica, a segurança nacional, o serviço postal, a energia em geral, a informática, o sistema monetário, a telecomunicação e outros mais, que, por sua própria natureza e fins, transcendem o âmbito local" (Direito Municipal Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 12ª. ed., p. 135).

 

14.         Por outro lado,  poderiam os autores da Constituição do Estado,  no exercício do  Poder Constituinte Decorrente,  repetir, enfadonhamente, as normas  de reprodução  obrigatória da Constituição da República, mas preferiram eles, acertadamente  diga-se,  fórmula  sintética do art. 144, determinando, como não poderia deixar de ser, que os princípios estabelecidos na Constituição Federal (somente princípios, não regras) devessem ser observados obrigatoriamente pelos Municípios.  Não foi outra a saída encontrada pelos Constituintes nacionais, por exemplo, com o art. 25 da Constituição da República, a determinar que os Estados se organizem segundo os princípios da Constituição da República, sem explicitá-los, também enfadonhamente. Tal dispositivo guarda correspondência com o art. 144 da Constituição do Estado de São Paulo.

 

15.         O princípio federativo adotado no art. 1.º da Constituição do Estado de São Paulo é ''a rigor, um grande sistema de repartição de competências',  sendo esta  'a chave da estrutura do poder federal'  ou  'a grande questão do federalismo', e ainda 'um problema tipicamente do estado federal''' (Raul Machado Horta e Durand, citados por Fernanda Dias Menezes de Almeida). E com KLAUS STERN nota-se que ‘La Ley Fundamental,  contiene, sin embargo, si no Derecho del Estado de los Länder,  si  Derecho  del  Estado  para  los  Länder; por ejemplo, en los arts. 20, 21, 28, 31, 33 y 35 LFB.  El Derecho del Estado Federal es, ademas también, Derecho del Estado Total, es decir, de Ia Federación y de los Länder, que conjuntamente constituyen Ia República Federal de Alemania. La Constitución de los Estados miembros no está fijada  exclusivamente en sus textos constitucionales. Sobre ellas inciden determinaciones de la Constitución Federal. «Ambos elementos conjuntamente forman la Constitución del   Land». Esta particularidad se basa en el principio federal. Este entrecruzamiento encuentra su expresión más clara en la  Confianza federal. (Derecho Del Estado de la Republica Federal Alemana, Madrid: CEC, 1987, p. 120).

 

16.         A doutrina já resolveu a questão dos princípios que devem os Estados observar (o que, obviamente, aplica-se aos Municípios,    agora por força do art. 144 da Constituição do Estado). Ao comentar sobre o conteúdo do art. 25 da Constituição da República, a direcionar as competências dos Estados (como o art. 144 da Constituição do Estado condiciona as competências  dos Municípios), Manoel Gonçalves Ferreira  Filho refere-se à existência das  “regras de preordenação  institucional”, “regras de extensão normativa” e “regras de subordinação normativa”, inseridas na Constituição da República, vinculantes para os demais entes políticos, pronunciando que “ainda cerceiam a autonomia dos Estados  regras de subordinação normativa. São estas as que, presentes  na  própria  Constituição Federal e direcionadas por ela a todos os entes federativos (União, Estados, Municípios), predefinem o conteúdo da legislação que será editada por eles. E isto, ou orientando positivamente tal conteúdo (mandando que siga determinada linha), ou negativamente (proibindo que adote certas normas ou soluções). Exemplo de tais regras de subordinação normativa é o que decorre do art. 37 da Constituição brasileira, que preside à atuação da administração pública direta ou indireta.  Da mesma forma, o art. 39 da Constituição direciona diretamente a legislação dos Estados (bem como do Distrito Federal e dos Municípios) quanto aos servidores públicos. Observe-se que esta subordinação normativa pode ser direta ou indireta. Ela é direta (e imediata) quando deflui, sem intermediário, da Constituição Federal e obriga desde logo o legislador. É indireta (e mediata) quando se faz por meio da legislação federal obrigatória para os Estados. Esta ‘subordinação normativa indireta’ ocorre no campo da competência legislativa concorrente da União e dos Estados (bem como do Distrito Federal), que enuncia o art. 24 da Constituição brasileira. Com efeito, este artigo confere à União a competência de ‘estabelecer normas gerais’ (art. 24, § 1.°). Conseqüentemente, a estas normas gerais se subordinam as que os Estados editarem em vista de suas peculiaridades (art. 24, §§ 2.°, 3.° e 4.°)”  (Comentários à Constituição Brasileira de 1988, São Paulo: Saraiva, 1997, v. I, p. 197).

 

17.         A norma da Constituição da República já predefiniu a legislação municipal negativamente proibindo que adote certas normas ou soluções. Claro que, apenas por não repetir explicitamente os princípios da Constituição da República, não significa que os Municípios fiquem livres para (em uma curiosa situação então)  dispor  de mais poderes constituintes que  o Estado (já que não se discute que, quando a este, seu  Poder Constituinte Decorrente é limitado). Trata-se do artigo 144 da Constituição do Estado de norma de repetição obrigatória. Neste sentido, coleta-se que as normas centrais da Constituição Federal, tenham elas natureza de princípios constitucionais, de princípios estabelecidos ou de normas de preordenação, afetam a liberdade criadora do Poder Constituinte Estadual e acentuam o caráter derivado desse poder. Como consequência da subordinação à Constituição Federal, que é a matriz do ordenamento jurídico parcial dos Estados-membros, a atividade do constituinte estadual se exaure, em grande parte, na elaboração de normas de reprodução, mediante as quais faz o transporte da Constituição Federal para a Constituição do Estado das normas centrais, especialmente as situadas no campo das normas de preordenação  A tarefa do constituinte limita-se a inserir aquelas normas no ordenamento constitucional do estado, por um processo de transplantação. A norma de reprodução não é, para os fins da autonomia do Estado-membro, simples    norma     de imitação, frequentemente encontrada na elaboração constitucional. As normas de imitação exprimem a cópia de técnicas ou de institutos, por influência da sugestão exercida pelo modelo superior. As normas de reprodução decorrem do caráter compulsório da norma constitucional superior, enquanto a norma de imitação traduz a adesão voluntária do constituinte a uma determinada disposição constitucional. (Raul Machado Horta. Poder constituinte do estado-membro, RDP, 88/5).

 

18.         A repartição de competências é a “chave de abóbada” do sistema federal; conspurcada aquela  conspurca-se  este. É o que ocorre no caso dos autos, com a violação, pelo Município, de princípios constitucionais sensíveis.

 

19.         Curial ponderar, a propósito, que a invasão da competência normativa alheia é tão óbvia como revela o confronto da lei local com a lei federal. Com efeito, a Lei n. 9.263, de 12 de janeiro de 1996, dispondo sobre o planejamento familiar indica como uma das ações estatais a assistência à contracepção (enquanto a lei local transita na contramão de direção), in verbis:

Art. 3º. O planejamento familiar é parte integrante do conjunto de ações de atenção à mulher, ao homem ou ao casal, dentro de uma visão de atendimento global e integral à saúde.

Parágrafo único - As instâncias gestoras do Sistema Único de Saúde, em todos os seus níveis, na prestação das ações previstas no caput, obrigam-se a garantir, em toda a sua rede de serviços, no que respeita a atenção à mulher, ao homem ou ao casal, programa de atenção integral à saúde, em todos os seus ciclos vitais, que inclua, como atividades básicas, entre outras:

I - a assistência à concepção e contracepção;

(...)

Art. 5º - É dever do Estado, através do Sistema Único de Saúde, em associação, no que couber, às instâncias componentes do sistema educacional, promover condições e recursos informativos, educacionais, técnicos e científicos que assegurem o livre exercício do planejamento familiar”.

 

20.         Neste sentido, este egrégio Tribunal de Justiça concluiu em ação direta de inconstitucionalidade patrocinada pela Procuradoria-Geral de Justiça:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – Lei que dispõe sobre a proibição de distribuir os medicamentos de anticoncepção de emergência pela Rede Pública de Saúde Municipal. Inconstitucionalidade configurada tanto frente à Constituição Federal quanto frente à Constituição Estadual. Ação procedente” (TJSP, ADI 122.675-0/0-00, Órgão Especial, São Paulo, Rel. Des. Vallim Bellocchi, m.v., 31-05-2006).

 

21.         Por outro lado, a lei local impugnada é de iniciativa parlamentar, violando, igualmente, o princípio da separação de poderes, eis que disciplina atribuições a órgãos do serviço público - aqueles integrantes da Rede Pública de Saúde -, integrantes do Poder Executivo. Ora, tal matéria é da alçada privativa do Poder Executivo por dizer respeito à organização e funcionamento de seus órgãos encarregados da prestação de serviço público (arts. 24, § 2º, 2, e 47, II e XIX, a, da Constituição do Estado de São Paulo). Ou seja, ou a matéria é da iniciativa legislativa reservada ou é da competência privativa do Poder Executivo. Neste sentido, colhe-se da jurisprudência:

“CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. LEI QUE ATRIBUI TAREFAS AO DETRAN/ES, DE INICIATIVA PARLAMENTAR: INCONSTITUCIONALIDADE. COMPETÊNCIA DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO. C.F, art. 61, § 1°, n, e, art. 84, II  e VI. Lei 7.157, de 2002, do Espírito Santo.

I. - É de iniciativa do Chefe do Poder Executivo a proposta de lei que vise a criação, estruturação e atribuição de órgãos da administração pública: C.F, art. 61, § 1°, II, e, art. 84, II e VI.

II. - As regras do processo legislativo federal, especialmente as que dizem respeito à iniciativa reservada, são normas de observância obrigatória pelos Estados-membros.

III. - Precedentes do STF.

IV - Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente” (STF, ADI 2.719-1-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 20-03-2003, v.u.).

                                       

22.         Aliás, sobre o específico tema referente a leis municipais de igual jaez, dos Municípios de Jacareí e Cachoeira Paulista, este egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo reconheceu a inconstitucionalidade por violação ao princípio da separação dos poderes (ADI 124.920-0/3-00, Órgão Especial, Rel. Des. Reis Kuntz, m.v., 24-05-2006; ADI 126.502-0/0-00, Órgão Especial, Rel. Des. Canguçu de Almeida, m.v., 24-05-2006).

 

23.         A administração da cidade incumbe ao que, modernamente, chama-se de Governo, e que tem na lei   seu mais  relevante  instrumento, participando, sempre,  o   Poder Legislativo   na  função  de   aprovar-desaprovar os atos. Neste sentido, não se deve olvidar que “O poder governante é que goza, de fato (e talvez de direito) de uma estabilidade garantida, necessária para a tradução em atos de um 'indirizzo'. É, em geral, delegatária, também, de importantes porções da função legislativa. Ao legislativo,  sua função torna-se aquela  convalidar-confirmar solenemente o 'indiriz­zo politico' decidido pelo Poder Governante revestindo as medidas sob  a forma de lei. O bloqueio  - com voto negativo – ao 'indirizzo'  do Po­der governante, ou a remoção  formal deste ultimo - quando o regime o admite - deve ficar, pelas exigências do modelo,  eventos absolutamente excepcionais.  O Legislativo controla o Poder governante também com outros meios  (investigações, comissões parlamentares etc). Provê as leis para a  integração normativa das escolhas feitas no 'indirizzo governativo'." (Giovanni Bognetti.  In Digesto Delle Discipline Pubblicistiche', p. 376,  XI, UTET).

 

24.         A proibição da distribuição de um determinado medicamento ou produto ou de uma atividade prestada por serviço de relevância pública não é matéria do domínio da Câmara Municipal, que sempre legisla in genere. O Poder Legislativo não emite ordens ao Poder Executivo, no seu campo específico de atuação (princípio da reserva de administração).  Ao que pretende chegar a Câmara Municipal citada, melhor se  denominaria como um sistema diretorial, não presidencial  de governo, que se caracteriza, aquele,  essencialmente, ''pelo  fato de que o órgão político e governamental é a Assembléia  (Parlamento, Corpo Legislativo).  Esta, na verdade, é     quem toma as decisões de política geral, sob a forma de diretrizes (além de votar as leis), como é quem elege uma Comissão (Diretório), a qual desempenha as tarefas do Executivo, juridicamente preso às diretivas emanadas  da  Câmara.  Esse 'Legislativo' é, assim, e mais que tudo, um Poder 'Deliberativo'. O Diretório, ou seja, o conjunto de ministros fica incumbido de executar as decisões desse Poder, cada um no campo de sua competência. Não tem ele, consequentemente, política própria. Seus membros são, como elegantemente se diz, comissários da Assembléia, obrigados a fazer o que esta determinar” (Manoel Gonçalves Ferreira Filho. A democracia no limiar do Séc. XXI, São Paulo: Saraiva, p. 203).

 

25.         Há competências claras do Poder Executivo; o princípio da legalidade deve ser, ultrapassado de há muito o liberalismo, bem compreendido. Ademais, a falta de razoabilidade da medida prevista na lei é clara. Ora, proibir a distribuição de medicamento em município, sendo que o mesmo produto está à venda livremente nas farmácias do mesmo município, não é, sequer minimamente, razoável. O excesso, portanto, contamina materialmente a lei local, sem olvidar os vícios de finalidade da lei local que, simplesmente, exonera o poder público do cumprimento de suas obrigações positivas (direitos de segunda geração) ligados à satisfação dos direitos de igualdade dos cidadãos.

 

26.         Tendo em vista a imediata vigência da lei, autêntica superfetação de legislação já existente, a impedir a distribuição de medicamentos e produtos contraceptivos, torna-se necessária a liminar. Quando se trata do controle normativo abstrato e desde que haja a cumulativa satisfação dos requisitos concernentes ao fumus boni juris e ao periculum in mora, o poder geral de cautela autoriza a suspensão de eficácia de dispositivos legais impugnados, até o advento da decisão final.

 

27.         Neste caso, tais requisitos se fazem presentes, de modo que está translúcida a conveniência de sustar, provisoriamente, a eficácia dos dispositivos questionados.  De resto, ainda que não houvesse essa singular situação de risco, restaria, ao menos, a excepcional conveniência da medida. Com efeito, no contexto das ações diretas e da outorga de provimentos cautelares para defesa  da  Constituição, o juízo de conveniência é um critério relevante, que vem condicionando os pronunciamentos mais recentes do Supremo Tribunal Federal, preordenados à suspensão liminar de leis aparentemente inconstitucionais (ADI-MC 125, j. 15.2.90, DJU 04-05-1990, p. 3.693, Rel. Min. Celso de Mello; ADI-MC 568, RTJ 138/64; ADI-MC 493, RTJ 142/52; ADI-MC 540, DJU 25-09-1992, p. 16.182).

 

28.         Face ao exposto, requer-se:

 

a) a concessão de liminar suspendendo a eficácia da lei impugnada até final julgamento da lide e o processamento do feito observando as prescrições legais e regulamentares;

 

b) a colheita das informações necessárias dos Excelentíssimos Senhores Prefeito e Presidente da Câmara Municipal de Pirassununga, sobre as quais protesta por manifestação oportuna;

 

c) a oitiva do douto Procurador-Geral do Estado, nos termos do art. 90, § 2º, da Constituição Estadual;

 

d) ao final, seja julgada procedente a presente ação, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei n. 3.723, de 28 de abril de 2008, do Município de Pirassununga.

 

           Termos em que, pede deferimento.

 

             São Paulo, 17 de julho de 2008.

 

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça