Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

 

Protocolado PGJ nº7364/07

Assunto: Inconstitucionalidade de dispositivos da Lei Municipal nº1986, de 25 de outubro de 1991, de Cubatão.

 

Ementa: 1)Lei Municipal. Organização do sistema de carreiras no Município. Dispositivos que permitem o “enquadramento” de servidores em cargos distintos, sem necessária identidade de funções, e mesmo sem o preenchimento de requisitos para o provimento do novo cargo. 2)Violação do princípio constitucional do concurso, da acessibilidade de cargos, empregos e funções públicas, da isonomia e da impessoalidade (art.111, e 115 I e II da Constituição Paulista). 3) Inconstitucionalidade reconhecida.

 

 

 

         O Procurador-Geral de Justiça, no exercício de suas atribuições (art.116 VI da Lei Complementar Estadual nº 734/93 - Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo -; art.125 §2º e 129 IV da Constituição Federal; art.74 VI e art.90 III da Constituição do Estado de São Paulo), com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado (PGJ nº7364/07) vem perante esse Egrégio Tribunal de Justiça promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE de dispositivos da Lei Municipal nº1986, de 25 de outubro de 1991, de Cubatão, pelos fundamentos a seguir expostos.

 

1)Do ato normativo impugnado.

 

         Registre-se inicialmente que o protocolado que rende ensejo à presente propositura foi instaurado em decorrência de representação endereçada à Procuradoria-Geral de Justiça pelo zeloso Promotor de Justiça, (...), que na época oficiava na Promotoria de Justiça de Cubatão.

 

         A Lei Municipal nº1986, de 25 de outubro de 1991, de Cubatão, que “Institui o sistema de carreiras da Prefeitura Municipal de Cubatão”, contém os seguintes dispositivos, que serão objeto de análise nesta ação direta:

 

“CAPÍTULO VIII - DAS DISPOSIÇÕES PARA ENQUADRAMENTO EM PRIMEIRA INVESTIDURA

 

Art. 26. (...)

 

   II - Serão enquadrados nos novos cargos criados ou transformados, os servidores que:

 

      a) tenham sido aprovados em processo de seleção pública, assim entendidos aqueles casos em que embora o processo seletivo a que se tenham submetido não seja caracterizado como concurso público de provas ou de provas e títulos, tenham envolvido, cumulativamente: divulgação de vaga através de meios de comunicação; tenham sido classificados após cumpridas as exigências contidas no recrutamento, aprovados nas provas específicas e/ou psicológicas e apresentados os títulos e documentos exigidos para o preenchimento da vaga a que se candidataram;

 

(...)

 

 Parágrafo único. O enquadramento dos servidores poderá ser feito nos posto de trabalho efetivamente exercidos (função real), desde que satisfaçam a todas as qualificações e pré-requisitos exigidos para os respectivos cargos; aqueles que não os satisfazerem poderão ser enquadrados nos postos de origem.

 

Art. 27. Serão passíveis de enquadramento nos novos cargos criados ou transformados os servidores que, embora não apresentem os pré-requisitos exigidos para o seu preenchimento, sejam concursados ou estáveis e ocupem cargos concorrentes. Nestes casos, os servidores:

 

   a) que não possuam escolaridade compatível com o cargo, poderão ser enquadrados, em primeira investidura na carreira, desde que o seu tempo de experiência profissional seja igual ou superior à escolaridade exigida, na seguinte proporção: um ano de experiência substitui um ano letivo do curso exigido;

 

   b) que possuam formação escolar compatível, mas não possuam o tempo de experiência exigido, poderão ser enquadrados, em primeira investidura na carreira, se não houver, nos Quadros da Prefeitura Municipal de Cubatão, servidor que possua os pré-requisitos.

 

   c) que embora não estejam ocupando cargo concorrente ou transformado, possuam formação escolar compatível, mas a descrição de suas atividades apresente uma correlação mínima de 50% (cinqüenta por cento);

 

   d) que possuam experiência e formação escolar compatíveis, mas não tenham sido submetidos aos cursos de capacitação ou desenvolvimento exigidos;

 

   e) que possuam formação escolar e somente possam comprovar a experiência em ambiente diverso da Prefeitura.

 (...)”

 

         Entretanto, como será possível verificar a seguir, tais dispositivos são verticalmente incompatíveis com nossa sistemática constitucional.

 

2)Violação do princípio do concurso público, da acessibilidade geral, da isonomia e impessoalidade.

 

         Os dispositivos transcritos violam princípios constitucionais que exigem a realização de concurso público para acesso aos cargos e empregos na administração pública, e, por conseqüência, violam também a regra da acessibilidade geral e da isonomia com relação ao provimento de cargos na administração pública, que decorrem dos seguintes dispositivos da Constituição Estadual:

 

“(...)

 

Art.111. A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência.

 

Art.115. Para a organização da administração pública direta e indireta, inclusive as fundações instituídas ou mantidas por qualquer dos Poderes do Estado, é obrigatório o cumprimento das seguintes normas:

 

I – os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como os estrangeiros, na forma da lei;

 

II – a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia, em concurso público de provas ou de provas e títulos, ressalvadas as nomeações para cargo de provimento em comissão, declarado em lei, de livre nomeação e exoneração; (...)

 

            É oportuno recordar que tais dispositivos são reproduções do disposto no art.37 I e II da CR/88, sendo todos (os da Constituição Federal e os da Estadual), aplicáveis aos Municípios por força do art.144 da Constituição Paulista.

 

         Dispensa maiores digressões a afirmação de que a realização de concurso público, para acesso aos cargos, empregos, e funções públicas, é a regra. Ela só admite exceções nas estritas hipóteses previstas na Constituição Federal e Estadual, quais sejam, (a) a nomeação para cargos de provimento em comissão previstos em lei específica de cada ente federativo (nos casos de cargos ou funções de direção, chefia ou assessoramento superior da administração, em que deva prevalecer o vínculo de especial confiança entre o servidor e o agente superior ao qual se vincule), e (b) a contratação temporária, nas hipóteses previstas em lei de cada ente federativo, para atendimento a necessidade temporária de excepcional interesse público (cf. art.115 II, V  e X da Constituição Paulista; art.37 I, II e IX da CR/88).

 

         Diante disso, qualquer dispensa indevida da realização de concurso para fins de ingresso no serviço público, ou mesmo a realização de provimentos a partir de concursos internos, para que servidores ocupem cargos ou empregos situados em carreira distinta, ou finalmente o simples aproveitamento de servidores em cargos ou empregos integrantes de carreira distinta, são atos que significam, na prática, burla à regra do concurso. Traduzem-se, do mesmo modo, em criação de óbice à acessibilidade de todos os cidadãos aos cargos públicos previstos em lei, e, por conseguinte, violação ao princípio da isonomia. Criam, finalmente, possibilidade de favorecimento, com quebra do princípio da impessoalidade.

 

         No caso em exame, os dispositivos impugnados nesta inicial permitem que, no Município de Cubatão, ocorram as seguintes situações que conflitam com os dispositivos e princípios constitucionais indicados acima:

 

(a)     permitem o enquadramento de servidores que não tenham prestado concurso público, mas apenas processo seletivo (art.26 II a da Lei 1986/91);

(b)     permitem o enquadramento de servidores que se encontrem em desvio de função (nos termos do dispositivo, “no posto de trabalho efetivamente exercido [função real]”), sem novo concurso (art.26 parágrafo único da Lei 1986/91)

(c)     permitem o enquadramento em novos cargos de servidores concursados ou estáveis, que não preencham os requisitos para tanto, ou ocupem cargos distintos (art.27 alíneas a, b, c e d da Lei 1986/91).

 

         Não se pode confundir o caso tratado nestes autos, com situações em que, por lei nova, é conferida nova denominação a cargos públicos, sem que haja mudança de atribuições. Em tais casos, o enquadramento dos antigos titulares, admitidos por concurso público, é feito sem maiores dificuldades ou questionamentos, pois que é admissível a “transposição” do servidor para cargo idêntico, da mesma natureza, em novo sistema de classificação (STF, RTJ 150/26).

 

         Note-se que, para que tal solução seja legítima, é imprescindível que o aproveitamento de ocupantes de cargos extintos nos recém-criados se opere em vista de “completa identidade substancial entre os cargos em exame, além de compatibilidade funcional e remuneratória e equivalência dos requisitos exigidos em concurso” (ADIs 1.591, Rel. Min. Octavio Gallotti, e 2.713, Rel. Min. Ellen Gracie).

 

         Esta situação não se confunde com a hipótese de “transformação”, em que se verifica a alteração do título e das atribuições do cargo, e por isso configura novo provimento, a depender da exigência de concurso público (ADI 266, Rel. Min. Octavio Gallotti, julgamento em 18-6-93, DJ de 6-8-93).

 

         Vale recordar que o conceito de carreira diz respeito ao ‘agrupamento de classes da mesma profissão ou atividade, escalonadas segundo a hierarquia do serviço, para acesso privativo dos titulares dos cargos que a integram, mediante provimento originário” (cf. Hely Lopes Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro, 34 ed., São Paulo, Malheiros, 2008, p.424). No mesmo sentido Edmir Netto de Araújo, Curso de Direito Administrativo, São Paulo, 2005.

 

         Natural assim a evolução funcional, que deve ocorrer, dentro de uma mesma carreira, de um cargo ou emprego situado em plano inferior, para outro localizado em patamar superior.

 

         Diversa, entretanto, é a hipótese em exame, pois aqui, o que se verifica, é a burla, de forma indireta, do princípio do concurso público e de seus corolários lógicos.

 

         Nosso sistema constitucional consagrou o livre acesso aos cargos, empregos e funções públicas, na forma prevista em lei, e a submissão prévia a concurso público, ressalvadas, evidentemente, as nomeações para cargos em comissão. Na definição de Adilson Abreu Dallari, concurso público é “um procedimento administrativo aberto a todo e qualquer interessado que preencha os requisitos estabelecidos em lei, destinado à seleção de pessoal, mediante a aferição do conhecimento, da aptidão e da experiência dos candidatos, por critérios objetivos, previamente estabelecidos no edital de abertura, de maneira a possibilitar uma classificação de todos os aprovados” (Regime Constitucional dos Servidores Públicos, 2ªed., São Paulo, RT, 1992, p. 36, apud Celso Ribeiro Bastos, Comentários à Constituição do Brasil, 3º vol., T. III, São Paulo, Saraiva, 1992, p. 67).

 

         É por meio do concurso que se resguarda “a aplicação do princípio da igualdade de todos (CF., art. 37, I) e, ao mesmo tempo, o interesse da Administração em admitir somente os melhores” (Celso Ribeiro Bastos, op. cit., p. 66), afastando-se “os ineptos e apaniguados, que costumam abarrotar as repartições públicas, num espetáculo degradante de protecionismo e falta de escrúpulos de políticos que se alçam e se mantêm no poder, leiloando empregos públicos” (Hely Lopes Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro, 34ªed., São Paulo, RT, 2008, p.440/441).

 

         Acrescente-se, ademais, que a existência de formas de provimento derivadas “de modo algum significa abertura para costear se o sentido próprio do concurso público. Como este é sempre específico para dado cargo, encartado em carreira certa, quem nele se investiu não pode depois, sem novo concurso público, ser trasladado para cargo de natureza diversa ou de outra carreira melhor retribuída ou de encargos mais nobres e elevados. O nefando expediente a que se alude foi algumas vezes adotado, no passado, sob a escusa de corrigir desvio de funções ou com arrimo na nomenclatura esdrúxula de ‘transposição de cargos’. Corresponde a uma burla manifesta do concurso público. É que permite a candidatos que ultrapassaram apenas concursos singelos, destinados a cargos de modesta expressão –e que se qualificaram tão somente para eles– venham a aceder, depois de aí investidos, a cargos outros, para cujo ingresso se demandaria sucesso em concursos de dificuldades muito maiores, disputados por concorrentes de qualificação bem mais elevada” (Celso Antônio Bandeira de Mello, Regime Constitucional dos Servidores da Administração Direta e Indireta, São Paulo, RT, 1995, p. 55).

 

         Não se nega, observe-se, a possibilidade de aprimoramento na organização administrativa de determinado ente federativo, e tampouco a reestruturação do respectivo quadro de cargos, empregos e funções. Tal possibilidade é ínsita à própria autonomia de cada ente federativo, e em especial dos Municípios (art.29, 30 I d aCR/88).

 

         Também não se refuta a possibilidade de enquadramento de servidores, já integrantes da administração, nos casos de extinção ou transformação de cargos, empregos e funções, desde que idênticas as atribuições do novo cargo, e idênticos os requisitos ou condições exigidos dos candidatos ao seu provimento. Contudo, como anota Hely Lopes Meirelles, “se a transformação implicar alteração do título e das atribuições do cargo, configura novo provimento, que exige concurso público” (Direito Administrativo Brasileiro, cit.,p.427).

 

         É oportuno averbar que no E. STF a matéria é pacífica. Encontra-se sedimentada no verbete nº685 da súmula da jurisprudência dominante da Corte, com a seguinte dicção:

 

"É inconstitucional toda modalidade de provimento que propicie ao servidor investir-se, sem prévia aprovação em concurso público destinado ao seu provimento, em cargo que não integra a carreira na qual anteriormente investido." (SÚM. 685).

 

            Há diversos precedentes do E. STF que, sob vários aspectos e em situações diferentes, confirmam afirmação de que nosso sistema constitucional não transige com a regra do concurso público. Assim, como quando a Corte veda a ascensão e a transferência, que são formas de ingresso em carreira diversa daquela para a qual o servidor público ingressou por concurso (ADI 231, Rel. Min. Moreira Alves, julgamento em 5-8-92, DJ de 13-11-92; ADI 3.582, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 1º-8-07, DJ de 17-8-07); ou ao proibir o mero enquadramento de prestadores de serviço (ADI 3.434-MC, voto do Min. Joaquim Barbosa, julgamento em 23-8-06, DJ de 28-9-07); ou mesmo ao vedar o enquadramento de servidores que exerçam determinadas funções, em cargos que integram carreira distinta, ainda que com período prévio de reciclagem (ADI 388, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 20-9-07, DJ de 19-10-07; ADI 3.442, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 7-11-07, DJ de 7-12-07).

 

         Relevante notar, do mesmo modo, que a exigência de concurso público para a investidura em cargo assegura, entre outras coisas, o respeito aos princípios da impessoalidade e o da isonomia. A estabilidade constitucional anômala e transitória prevista no art.19 do ADCT-CR/88, aplicável aos servidores não concursados que, quando da promulgação da Carta Federal, contassem com, no mínimo, cinco anos ininterruptos de serviço público, tem sido interpretada restritivamente. O E. STF tem reiteradamente afirmado a inconstitucionalidade de normas estaduais que ampliam a exceção à regra da exigência de concurso para o ingresso no serviço: ADI 498, Rel. Min. Carlos  Velloso (DJ de 9-8-1996); ADI 208, Rel. Min. Moreira Alves (DJ de 19-12-2002); ADI 100, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 9-9-04, DJ de 1º-10-04; ADI 88, Rel. Min. Moreira Alves, julgamento em 11-5-00, DJ de 8-9-00; ADI 289, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 9-2-07, DJ de 16-3-07; ADI 125, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 9-2-07, DJ de 27-4-07.   

 

3)Conclusão e pedido.

 

         Diante do exposto, requer-se que, conhecida esta, bem como requisitadas informações à Prefeitura Municipal e à Câmara Municipal de Cubatão, seja ao final julgada procedente esta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade dos dispositivos mencionados na inicial (art.26 II a e parágrafo único; art.27 a, b, c,  d e e) da Lei Municipal nº1986, 25 de outubro de 1991, de Cubatão.

 

         Termos em que,

         Pede-se deferimento.

 

São Paulo, 21 de maio de 2008.

 

 

 

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça