Excelentíssimo Senhor Doutor
Desembargador Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo
Ementa: 1) Artigo 5º, da Lei Municipal n.
4.107, de 13 de dezembro de 2007, do Município de Araras. 2) Permite
o “enquadramento” de servidores em cargos distintos, sem necessária
identidade de funções, e mesmo sem o preenchimento de requisitos para o
provimento do novo cargo. 3)Violação do princípio constitucional do concurso,
da acessibilidade de cargos, empregos e funções públicas, da isonomia e da
impessoalidade (art.111, e 115, II da Constituição Paulista). 4) Inconstitucionalidade constatada. 5) Ação Direta visando a declaração
da inconstitucionalidade da norma impugnada. |
O Procurador-Geral de Justiça de São Paulo,
no exercício da atribuição prevista no art. 116, inciso VI, da Lei Complementar
Estadual n.º 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público
de São Paulo), e em conformidade com o disposto nos arts. 125, § 2.º, e 129,
inciso IV, da Constituição Federal, e arts. 74, inciso VI, e 90, inciso III, da
Constituição do Estado de São Paulo, com base nos elementos de convicção
existentes no incluso protocolado (PGJ n.º 73.995/07), vem perante esse Egrégio Tribunal de Justiça promover a
presente AÇÃO DIRETA DE
INCONSTITUCIONALIDADE, com pedido de
medida liminar, do art. 5º, da Lei n. 4.107, de 13 de dezembro de 2007, do
Município de Araras, pelas razões e
fundamentos a seguir expostos:
O art. 5º da Lei Municipal n.
4.107, de 13 de dezembro de 2007, “ altera
a Lei n. 3.982/07 – Agentes de Trânsito
– nos aspectos que menciona e dá providências correlatas”, de Araras, tem a
seguinte redação:
“Art.5-
Enquanto não houver preenchimento do cargo, mediante a realização do concurso
público, a atividade AGENTE DE TRÂNSITO será desempenhada por servidores
públicos efetivos que tenham interesse e que foram aprovados em treinamento
específico, nos termos do Estatuto dos Servidores Públicos Municipais, não
sendo incorporada nenhuma vantagem oriunda do cargo, quando o servidor retornar
às atividades que exercia anteriormente”.
Como
adiante melhor se demonstrará, tal preceito normativo é verticalmente
incompatível com nossa sistemática constitucional.
De fato, o dispositivo impugnado viola a exigência
constitucional de concurso público, contida nos artigos 111 e 115, II da
Constituição Estadual, que reproduz o art.37 II da Constituição Federal.
É bem verdade que a violação foi sutil. Mas efetivamente
ocorreu.
Ao prever o dispositivo que “enquanto não houver preenchimento do cargo, mediante a realização do
concurso público, a atividade AGENTE DE TRÂNSITO será desempenhada por
servidores públicos efetivos que tenham interesse e que foram aprovados em
treinamento específico, nos termos do Estatuto dos Servidores Públicos
Municipais, não sendo incorporada nenhuma vantagem oriunda do cargo, quando o
servidor retornar às atividades que exercia anteriormente”, permite que servidores
efetivos da Prefeitura Municipal de Araras, admitidos por concurso público para
o exercício de outros cargos, possam exercer temporariamente a função de agente de trânsito.
O diploma, dessa forma, criou a possibilidade de que
servidores integrantes de duas carreiras distintas possam ter praticamente o
mesmo tratamento jurídico, eis que passaram a exercer as mesmas funções, embora
com a mesma remuneração.
Esse quadro apresenta, não há dúvida, todos os elementos que
permitem a configuração da hipótese de enquadramento de servidores de uma
categoria funcional em outra, o que significa violação à regra constitucional do
concurso.
Como anota Hely Lopes Meirelles, “o provimento derivado, que se faz por transferência, promoção, remoção,
acesso, reintegração, readmissão, enquadramento, aproveitamento ou reversão, é
sempre uma alteração na situação do serviço do provido. Em razão do art.37 II
da CF, qualquer investidura em carreira diversa daquela em que o servidor
ingressou por concurso é, hoje, vedada. Acrescente-se que a única reinvestidura
permitida sem concurso é a reintegração, decorrente da ilegalidade do ato de demissão”
(Direito administrativo brasileiro, 33ª
ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p.425).
Como anotou oportunamente Adilson Abreu Dallari, criticando
a sistemática constitucional anterior que, por lacunosa, deixava margem a
interpretações que quase aniquilavam a exigência de concurso, “a redação do texto da atual Constituição
Federal, no tocante ao concurso público, representa uma reação a tudo isso e
tem por objetivo evitar que esses mesmos comportamentos venham a ocorrer no
futuro” (Regime constitucional dos
servidores públicos, 2ªed., 2ª tir., São Paulo, 1992, p.36).
Assim, ainda que não tenha ocorrido explicitamente o
“enquadramento” dos servidores públicos efetivos como agentes de trânsito, se
na prática é isso o que pode decorrer da aplicação do dispositivo impugnado, em
razão do acesso de servidores de uma carreira a outra, a solução legal é
inconstitucional.
No caso em concreto é perfeitamente aplicável, a súmula 685
do Pretório Excelso, pela qual “é
inconstitucional toda modalidade de provimento que propicie ao servidor
investir-se, sem prévia aprovação em concurso público destinado ao seu
provimento, em cargo que não integra a carreira na qual anteriormente
investido”.
Na prática, os servidores públicos efetivos que tenham
interesse e que foram aprovados em treinamento específico estarão sendo alçados
à condição de Agentes de Trânsito, sem que tenham, legitimamente, ingressado em
tal carreira por concurso.
A propósito, já afirmou o Pretório Excelso:
“O
respeito efetivo à exigência de prévia aprovação em concurso público
qualifica-se, constitucionalmente, como paradigma de legitimação ético-jurídica
da investidura de qualquer cidadão em cargos, funções ou empregos públicos,
ressalvadas as hipóteses de nomeação para cargos em comissão (CF, art. 37, II).
A razão subjacente ao postulado do concurso público traduz-se na necessidade
essencial de o Estado conferir efetividade ao princípio constitucional de que
todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, vedando-se,
desse modo, a prática inaceitável de o Poder Público conceder privilégios a
alguns ou de dispensar tratamento discriminatório e arbitrário a outros." (ADI
2.364-MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 1º-8-01, DJ de 14-12-01).
“Concurso
público: não mais restrita a sua exigência ao primeiro provimento de cargo
público, reputa-se ofensiva do art. 37, II, CF, toda modalidade de ascensão de
cargo de uma carreira ao de outra, a exemplo do 'aproveitamento' e 'acesso' de
que cogitam as normas impugnadas (§§ 1º e 2º do art. 7º do ADCT do Estado do
Maranhão, acrescentado pela EC 3/90).” (ADI 637, Rel. Min. Sepúlveda
Pertence, julgamento em 25-8-04, DJ de 1º-10-04)
"É
certo que, no julgamento das ADIs 1.591, Rel. Min. Octavio Gallotti, e 2.713, Rel.
Min. Ellen Gracie, este colendo
Tribunal entendeu que o aproveitamento de ocupantes de cargos extintos nos
recém-criados não viola a exigência da prévia aprovação em concurso público, ‘desde que haja uma completa identidade
substancial entre os cargos em exame, além de compatibilidade funcional e
remuneratória e equivalência dos requisitos exigidos em concurso’. Sucede
que, à luz dos textos normativos hostilizados, resta patenteado que o cargo
efetivo de carcereiro em nada se identifica com o de detetive." (ADI
3.051, voto do Min. Carlos Britto, julgamento em 30-6-05, DJ de 28-10-
Alegação
de afronta ao disposto no art. 37, II, da Constituição Federal, uma vez que
dita lei autoriza, sem prévio concurso público, o 'enquadramento' de servidores
públicos de nível médio para exercerem cargos públicos efetivos de nível
superior. Não é possível acolher como em
correspondência ao art. 37, II, da Constituição, o pretendido enquadramento dos
Agentes Tributários Estaduais no mesmo cargo dos Fiscais de Renda. Configurada
a passagem de um cargo a outro de nível diverso, sem concurso público, o que
tem a jurisprudência da Corte como inviável." (ADI
2.145-MC, Rel. Min. Néri da Silveira, julgamento em 7-6-00, DJ de 31-10-
A hipótese sugere exatamente que,
nesse contexto, seria necessária a realização do concurso, conferindo-se a
possibilidade isonômica de participação a todo e qualquer cidadão interessado.
A solução encontrada, contudo, limitou a possibilidade de acesso à condição de Agente
de Trânsito.
Moralidade, razoabilidade, impessoalidade e
eficiência são princípios reconhecidos
expressamente no art.111 da Constituição do Estado, e aplicáveis aos Municípios
por determinação do art.144 da referida Carta.
Em oportuna síntese, anota Maria
Sylvia Zanella Di Pietro que “sempre que
em matéria administrativa se verificar que o comportamento da Administração ou
do administrado que com ela se relaciona juridicamente, embora em consonância
com a lei, ofende a moral, os bons costumes, as regras de boa administração, os
princípios de justiça e de equidade, a idéia comum de honestidade, estará
havendo ofensa ao princípio da moralidade administrativa” (Direito Administrativo, 19ª ed., São
Paulo, Atlas, 2006, p.94).
Tudo indica que os servidores públicos efetivo
que tiveram interesse e que foram aprovados em treinamento específico estejam
desempenhando, em evidente desvio de função, atribuições privativas dos Agentes
de Trânsito. O que o ato normativo impugnado pretendeu, no caso, foi legalizar
o desvio de função, permitindo o acesso de integrantes de uma carreira a outra,
até a realização de suposto concurso público.
Esta solução fere o princípio da
moralidade administrativa.
Ademais, há também, violação ao princípio da razoabilidade.
Em sede doutrinária, Gilmar Ferreira Mendes, examinando a
aplicação do princípio da proporcionalidade pelo Pretório Excelso, anotou “de maneira inequívoca a possibilidade de se
declarar a inconstitucionalidade da lei em caso de sua dispensabilidade
(inexigibilidade), inadequação (falta de utilidade para o fim perseguido) ou de
ausência de razoabilidade em sentido estrito (desproporção entre o objetivo
perseguido e o ônus imposto ao atingido)” (cf. A proporcionalidade na jurisprudência do STF, publicado em Direitos fundamentais e controle de
constitucionalidade, São Paulo, Instituto Brasileiro de Direito
Constitucional e Celso Bastos Editor, 1998, p.83).
O
ato normativo impugnado, de fato, fere o princípio da razoabilidade.
A solução encontrada pelo legislador
(permissão para que servidores efetivos de outros cargos exercem a função de
agente de trânsito, sem concurso específico), é não só indesejável, como
inadequada.
Ademais,
os sacrifícios impostos à coletividade servidores realizando funções para as
quais não são devidamente habilitados não se justificarão em vista dos fins
colimados com a medida (desproporção entre os meios e os fins, ou violação da
proporcionalidade em sentido estrito).
Remanesce, no
presente caso, a necessidade da concessão de medida liminar. A
plausibilidade jurídica da tese ora exposta decorre da inconstitucionalidade material
do ato legislativo que autorizou o enquadramento de servidores em funções
diversas daquelas correspondentes aos cargos de que são titulares, em desacordo
com as normas constitucionais federais e estaduais que asseguram a igual
acessibilidade dos cargos, empregos e funções públicas e condicionam a
investidura em cargo público à aprovação prévia em concurso público, donde bem
configurado o “fumus boni iuris”.
E,
por outro lado, com a entrada em vigor do presente dispositivo legal, do que
resulta próxima a possibilidade de dano irreversível ou de difícil reparação, torna-se
necessário impedir o enquadramento dos servidores em desvio de função (“periculum in mora”).
Em situações como esta, “o Colendo Supremo
Tribunal Federal - atento ao pressuposto de relevante conveniência pública - tem atendido ao requerimento de provimento
cautelar, quando a alegação, revestida de razoabilidade, recaia sobre pontos
particularmente sensíveis dos princípios que norteiam a Administração do
Estado” (RTJ 132/38-39), entre os quais se destacam o da legalidade,
impessoalidade, razoabilidade, moralidade, finalidade, interesse público,
igualdade e o concurso público.
Destarte, requeiro seja autorizado o processamento
da presente ação, colhendo-se as informações da Câmara Municipal e do Prefeito do
Município de Araras, sobre as quais me manifestarei oportunamente.
Por
todo o exposto, aguarda-se a procedência
da presente ação direta, reconhecendo-se
a inconstitucionalidade do art. 5º, da Lei Municipal n. 4.107, de 13 de dezembro de 2007, do
Município de Araras.
São Paulo, 08 de outubro de 2008.
FERNANDO GRELLA VIEIRA
PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA