EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADORPRESIDENTE DO Egregio TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

 

Protocolado n.º 79.254/2011

Assunto: inconstitucionalidade da Lei Complementar n.º 266, de 27 de setembro de 2007, do Município de Caçapava.

 

 

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Complementar n.º 266/2007, do Município de Caçapava, que “Dispõe sobre a criação da Secretaria Municipal de Segurança e Trânsito, Guarda Municipal de Caçapava e dá outras providências”. Carreira essa que, porém, foi subdividida em duas classes – Guarda Municipal e Guarda Municipal de Transporte e Trânsito –, com remunerações distintas. Impossibilidade, pois os cargos integrantes de uma carreira devem ser da mesma profissão ou atividade e ter igual remuneração. Enquadramento dos antigos ocupantes de cargos públicos [fiscais de transporte público e trânsito] nos empregos de Guarda Municipal de Transporte e Trânsito. Caracterizada a transposição. Delegação de poderes ao Poder Executivo para fixar as atribuições e requisitos de ingresso. Precedentes do TJ/SP. Caracterizada a violação dos arts. 5.º, § 1.º, 19, III, 115, II, 124, caput, e seu § 1.º, 144 e 147 da Constituição do Estado de São Paulo. Acolhimento da representação.

 

O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, inciso VI, da Lei Complementar Estadual n.º 734 de 26 de novembro de 1993, e em conformidade com o disposto no art. 125, § 2.º, e no art. 129, inciso IV, da Constituição da República, e ainda no art. 74, inciso VI, e no art. 90, inciso III da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado (PGJ n.º 79.254/2011, que segue como anexo), vem perante esse egrégio Tribunal de Justiça promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE da Lei Complementar n.º 266, de 27 de setembro de 2007, do Município de Caçapava, pelos fundamentos expostos a seguir.

1)  LEI IMPUGNADA.

A propositura da presente ação direta de inconstitucionalidade decorre do acolhimento de representação feita a esta Procuradoria-Geral de Justiça – pelo Ministério Público do Trabalho – que tem como alvo a Lei n.º 266, de 27 de setembro de 2007, do Município de Caçapava, a qual “dispõe sobre a criação da Secretaria Municipal de Segurança e Trânsito, Guarda Municipal de Caçapava e dá outras providências” (cópia cf. fls. 53/63) e contém a seguinte redação:

LEI COMPLEMENTAR N.º 266, DE 27 DE SETEMBRO DE 2007

 

PROJETO DE LEI COMPLEMENTAR Nº 17/2007

Autor: Prefeito Municipal Carlos Antônio Vilela

 

Dispõe sobre a criação da Secretaria Municipal de Segurança e Trânsito, Guarda Municipal de Caçapava e dá outras providências.

  

CARLOS ANTÔNIO VILELA, PREFEITO MUNICIPAL DE CAÇAPAVA, NO USO DAS  ATRIBUIÇÕES LEGAIS QUE LHE CONFERE O ARTIGO 70, INCISO V, CONCOMITANTE COM O ARTIGO 41, INCISO I E ART. 6.º, INC. XVI DA LEI ORGÂNICA DO MUNICÍPIO, FAZ SABERQUE A CÂMARA  MUNICIPAL APROVOU E EU SANCIONO E PROMULGO A SEGUINTE LEI  COMPLEMENTAR:

  

Capítulo I

 

Da  Criação

  

Art. 1º  Fica criada a Secretaria Municipal de Segurança e Trânsito, com objetivo fundamental de planejar e executar as políticas de proteção ao patrimônio, bens e serviços municipais, bem como cumprir e fazer cumprir a legislação e as normas de trânsito e transportes públicos, no Município de Caçapava.

  

 

Capítulo II

 

Da  Competência

 

Art. 2º  Compete à Secretaria Municipal de Segurança e Trânsito:

 

I - promover a proteção do patrimônio, bens e serviços municipais, incluindo os logradouros e as áreas de preservação do patrimônio natural, histórico e cultural do Município;

 

II - colaborar com as demais unidades da Administração na fiscalização quanto à aplicação da legislação municipal relativa ao exercício do poder de polícia administrativa do Município;

 

III - cumprir e fazer cumprir a legislação e as normas de trânsito e transportes públicos, no Município de Caçapava.

 

 

Capítulo III

 

Da Composição da Secretaria e Criação dos Empregos

                     

Art. 3º  A Secretaria Municipal de Segurança e Trânsito terá o Organograma constante do Anexo I, que faz parte integrante desta Lei Complementar.

 

Art. 4º  Ficam transferidos o Departamento de Transporte Público e Trânsito e a Seção de Vigilância, da Secretaria de Obras e Serviços Municipais para a Secretaria Municipal de Segurança e Trânsito, conforme Organograma constante do Anexo I, que faz parte integrante desta Lei Complementar.

 

Art. 5º  Ficam renomeados os órgãos e empregos públicos a seguir discriminados:

 

DENOMINAÇÃO ANTERIOR

DENOMINAÇÃO ATUAL

Departamento de Transporte Público e Trânsito

Departamento da Guarda Municipal e Trânsito

Divisão de Operação e Fiscalização

Divisão de Operação e Sinalização

Diretor do Departamento de Transporte Público e Trânsito

Diretor do Departamento da Guarda Municipal e Trânsito

Fiscal de Transporte Público e Trânsito

Guarda Municipal de Transporte e Trânsito

 

Art. 6º  Ficam extintos a Seção de Inspeção de Frota e Fiscalização e o emprego público em comissão de Chefe de Seção de Inspeção de Frota e Fiscalização.

 

Art. 7º  Ficam criados no Quadro de Pessoal da Prefeitura Municipal de Caçapava, para atender necessidades da Secretaria Municipal de Segurança e Trânsito, os empregos públicos permanentes e em comissão, conforme Anexos II e III respectivamente, que fazem parte integrante desta Lei Complementar.

 

 

Capítulo IV

 

Da Guarda Municipal

 

Seção I

 

Da Criação

  

Art. 8º  Fica criada, subordinada à Secretaria Municipal de Segurança e Trânsito, a GUARDA MUNICIPAL DE CAÇAPAVA, lotada no Departamento da Guarda Municipal e Trânsito.

 

Art. 9º A Guarda Municipal de Caçapava é uma corporação uniformizada, hierarquizada e devidamente aparelhada, destinada a proteger o patrimônio, bens e serviços públicos municipais, conforme o disposto no artigo 144, parágrafo 8.º da Constituição Federal e artigo 6º inciso XVI e artigo 89 da Lei Orgânica Municipal.

 

Art. 10  A Guarda Municipal de Caçapava será dividida em Guarda Municipal e Guarda Municipal de Transporte e Trânsito.

 

 

 

Seção II

 

Das Finalidades e Atribuições

 

Art. 11  A Guarda Municipal de Caçapava exercerá suas atividades em toda a extensão do território do Município, cumprindo as leis e assegurando o exercício de poderes constituídos no âmbito de sua competência.

 

Parágrafo único. A organização hierárquica operacional e técnica da Guarda Municipal de Caçapava, tem por princípio a hierarquia e disciplina.

 

Art. 12  A Guarda Municipal de Caçapava, além das atribuições definidas no artigo 2.º, desta Lei Complementar poderá:

 

I - atuar em colaboração com órgãos Estaduais e Federais na manutenção da ordem e da segurança pública e atender situações excepcionais;

 

II - atender a população em eventos danosos, em auxílio à Comissão Municipal de Defesa Civil e autoridades competentes no município;

 

III - participar das comemorações cívicas programadas pelo município, destinadas à exaltação do patriotismo.

 

Art. 13 A Guarda Municipal de Caçapava obedecerá o mesmo regime jurídico em vigor para os servidores públicos municipais, submetendo-se especificamente às normas previstas no Regimento próprio desta Corporação.

  

 

Seção III

 

Do Efetivo

 

Art. 14  O efetivo da Guarda Municipal de Caçapava é fixado em 50 (cinquenta) guardas municipais e 21 (vinte e um) guardas municipais de transporte e trânsito.

 

 

Seção IV

 

Do Horário de Trabalho

                    

Art. 15  A Guarda Municipal de Caçapava atuará em turnos diurnos e noturnos de acordo com regulamentação específica.

 

Seção V

                  

Da Composição da Guarda Municipal de Caçapava

 

Art. 16 A Guarda Municipal de Caçapava será composta, obedecendo à hierarquia da seguinte maneira:

 

I – Diretor do Departamento da Guarda Municipal e Trânsito;

 

II – Inspetor Geral da Guarda Municipal;

 

III - Inspetor da Guarda Municipal e Inspetor da Guarda Municipal de Transporte e Trânsito;

 

IV - Subinspetor da Guarda Municipal e Subinspetor da Guarda Municipal de Transporte e Trânsito;

 

V – Guarda Municipal Classe 1 e Guarda Municipal de Transporte e Trânsito Classe 1;

                  

VI – Guarda Municipal Classe 2 e Guarda Municipal de Transporte e Trânsito Classe 2;

 

VII – Guarda Municipal Classe 3 e Guarda Municipal de Transporte e Trânsito Classe 3.

 

 

Seção VI

 

Das  Promoções

 

Art. 17  As promoções na Guarda Municipal de Caçapava serão realizadas para a classe imediatamente superior, e somente para os empregos previstos nos incisos V, VI e VII do art. 16, conforme Anexo II, desta Lei Complementar.

 

Parágrafo Único - A investidura para os cargos de Guarda Municipal e Guarda Municipal de Transporte e Trânsito iniciará sempre na Classe 3.

 

Art. 18  Para a promoção, adotar-se-á o critério de permanência no emprego, desde que o servidor não seja punido em processo administrativo disciplinar, conforme disposição do Decreto n.º 482/91 do Regulamento de Pessoal e ou regime disciplinar próprio.

 

§1º Para efeito de promoção prevista neste artigo, contar-se-á o tempo no cargo de Guarda Municipal e ou Guarda Municipal de Transporte e Trânsito.

 

§2º Os servidores renomeados para o cargo de Guarda Municipal de Transporte e Trânsito, conforme artigo 5º, incorporarão o tempo de serviço na função anterior, para efeito da promoção contida neste artigo.

 

§3º A investidura nos empregos públicos previstos nos incisos II, III e IV, do artigo 16, desta Lei Complementar, serão de livre provimento dentre os integrantes da Guarda Municipal de Caçapava.

 

§4º  A investidura nos cargos de Secretário Municipal de Segurança e Trânsito e Diretor do Departamento da Guarda Municipal e Trânsito serão de livre provimento e nomeação pelo Chefe do Executivo Municipal.

 

 

 

Seção VII

 

Do Interstício para Promoção

  

Art. 19  O lapso temporal, decorrido para progressão prevista nos artigos. 17 e 18, desta Lei Complementar, será de 3 (três anos) em cada classe.

 

Art. 20  Para provimento dos cargos contidos nos incisos II, III e IV, (do artigo 16, acréscimo nosso) desta Lei Complementar, necessário se faz 9 (nove) anos de efetivo exercício na Guarda Municipal de Caçapava, observado o disposto no parágrafo 2º, do artigo 18, desta Lei Complementar.

  

 

Seção VIII

 

Do Adicional de Risco

 

Art. 21  Fica assegurado aos integrantes da Guarda Municipal de Caçapava, quando no exercício de suas atribuições, a percepção de Adicional de Risco, em percentual de 30% (trinta por cento), calculado sobre o padrão base do servidor.

 

Art. 22  O Adicional de Risco é devido ao integrante da Guarda Municipal de Caçapava, que desempenha suas atribuições e esteja regularmente capacitado para a função.

 

Parágrafo único.  O Adicional de Risco se incorpora aos vencimentos dos servidores em atividade, para todos os efeitos legais.

 

Art. 23 Não terá direito ao percebimento do Adicional de Risco, o servidor que for readaptado ou remanejado de função, ou não estiver exercendo a função efetiva de integrante da Guarda Municipal de Caçapava.

 

Art. 24  O adicional previsto nesta Lei Complementar equipara-se para todos os efeitos do Decreto-Lei n.º 5452/1943 ao adicional de periculosidade.

 

 

Capítulo V

 

Das Disposições Finais

 

Art. 25  Os descritivos dos novos empregos públicos, contendo as atribuições e os pré-requisitos para ingresso, serão fixados por decreto do Poder Executivo.

 

Art. 26  O Poder Executivo poderá realizar, por ato próprio, a relotação de servidores em quaisquer unidades administrativas, a fim de atender as necessidades específicas de cada órgão.

 

Art. 27 Para atender o disposto nesta Lei Complementar fica o Poder Executivo autorizado a abrir na Secretaria de Finanças, em sua Divisão de Economia e Orçamento, crédito adicional especial no valor de até R$ 300.000,00 (trezentos mil reais).

 

Art. 28  Os recursos para a cobertura do crédito especial de que trata esta lei complementar serão indicados no ato de abertura, nos termos dos art. 42 e 43, da Lei Federal nº 4.320/64.

 

Art. 29  Esta Lei Complementar entrará em vigor a partir de 1º de janeiro de 2008, revogadas as disposições em contrário. (NR). Artigo alterado pela Lei Complementar n.º 267/2007

 

Prefeitura Municipal de Caçapava, 27 de setembro de 2007.

  

CARLOS ANTÔNIO VILELA

PREFEITO MUNICIPAL

 

         2) NORMAS CONSTITUCIONAIS ESTADUAIS VIOLADAS.

A lei acima reproduzida, como será visto a seguir, é verticalmente incompatível com a Constituição do Estado de São Paulo, em especial com os seus arts. 5.º, § 1.º, 19, inciso III, 115, inciso II, 124, e seu § 1.º, 144 e 147, que dispõem:

“Art. 5.º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

§ 1.º - É vedado a qualquer dos Poderes delegar atribuições.

Art. 19 – Compete à Assembléia legislativa, com a sanção do Governador, dispor sobre todas as matérias de competência do Estado, ressalvadas as especificas no art. 20, e especialmente sobre:

III – criação, transformação e extinção de cargos, empregos e funções públicas, observado o que estabelece o art. 47, XIX, “b”;

Art. 115 – Para a organização da administração pública direta e indireta, inclusive as fundações instituídas ou mantidas por qualquer dos Poderes do Estado, é obrigatório o cumprimento das seguintes normas:

II – a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia, em concurso público de provas ou de provas e títulos, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão, declarado em lei, de livre nomeação e exoneração;

Art. 124 – Os servidores da administração pública direta, das autarquias e das fundações instituídas ou mantidas pelo Poder Público terão regime jurídico único e planos de carreira (.g.n.).

 § 1.º - A lei assegurará aos servidores da administração direta isonomia de vencimentos para cargos de atribuições iguais ou assemelhados do mesmo Poder, ou entre servidores dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, ressalvadas as vantagens de caráter individual e as relativas à natureza ou ao local de trabalho.

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.

Art. 147 – Os Municípios poderão, por meio de lei municipal, constituir guarda municipal, destinada à proteção de seus bens, serviços e instalações, obedecidos os preceitos da lei federal.”

        

3) CONSIDERAÇÕES GERAIS.

Como se sabe, “a organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos da Constituição.” (CF, art. 18, caput)

Assim, a exemplo da União, dos Estados e do Distrito Federal, os Municípios brasileiros foram dotados de autonomia legislativa e administrativa que é consubstanciada nas capacidades de legislar sobre assuntos de interesse local (CF, art. 30, I), suplementar a legislação federal e a estadual no que couber (CF, art. 30, II) e organizar o seu funcionalismo e os seus próprios serviços, incluindo a criação de cargos, empregos ou funções públicas.

         Essa autonomia, porém, não se confunde com soberania, ou seja, ela não constitui um poder ilimitado, porquanto deve sempre ser exercida nos limites fixados pela Constituição, que, no seu art. 147, autoriza os Municípios a constituírem guardas municipais, destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei, e no seu art. 124 prevê que os servidores da administração pública direta, das autarquias e das fundações instituídas ou mantidas pelo Poder Público terão regime jurídico único e planos de carreira.

         A respeito desse tema, colhe-se na doutrina a seguinte lição:

“O novo texto constitucional eleva o Município à condição de entidade federativa, investido de autonomia ampliada, com responsabilidade de governo na esfera de Segurança Pública. Embora o preceito lhe confira atribuições policiais restritas, as guardas municipais poderão constituir importante instrumento de integração comunitária, pois estão voltadas à garantia de interesses especificamente municipais. A regulamentação legal, desde que assimiladas modernas concepções sobre a natureza da atividade policial preventiva e administrativa, provocará maior aproximação e confiança entre o cidadão e o policial.

Não se confundam, porém, as atribuições da guarda municipal com o serviço de segurança prestado pelo Estado através da Polícia Militar. Com efeito, a esta cabem o policiamento ostensivo e a preservação da ordem pública (art. 144, § 5.º).” (Cf. “Breves Anotações à Constituição de 1988”, Fundação Prefeito Faria Lima – CEPAM, Centro de Estudos e Pesquisas de Administração Municipal, Atlas, São Paulo, 1990, p. 335)

 

4) FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA.

Firmadas essas premissas básicas, tem-se no caso sob exame que a Câmara Municipal de Caçapava aprovou projeto de lei complementar de autoria do Prefeito que, a par de outras providências, criou a Guarda Municipal de Caçapava, subordinada à Secretaria Municipal de Segurança e Trânsito.

         Até aí nenhuma novidade, pois, conforme visto, a própria Constituição autoriza os Municípios a constituírem guardas municipais, destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações (CE, art. 147), encontrando-se, assim, a iniciativa em análise em perfeita conformidade com os ditames constitucionais.

         Ocorre, porém, que, sob o pretexto de agir nos limites da autonomia municipal, a Câmara Municipal de Caçapava editou lei complementar cujo teor desbordou por completo dos parâmetros constitucionalmente previstos, mediante (1) a criação artificial de carreira (Guarda Municipal), que é constituída de empregos com atribuições diversas (Guarda Municipal e Guarda Municipal de Transporte e Trânsito); (2) a adoção de tratamento remuneratório diferenciado entre os ocupantes dos empregos de Guarda Municipal e aqueles investidos nos empregos de Guarda Municipal de Transporte e Trânsito; (3) o ingresso de servidores (antigos fiscais de transporte público e trânsito) na nova carreira, independentemente de submissão prévia a concurso de provas ou de provas e títulos [transposição]; (4) a delegação de poderes ao Executivo para fixar por decreto as atribuições e os requisitos para ingresso nesses novos empregos públicos, matéria sujeita à reserva legal.

         A boa doutrina define carreira como sendo “o agrupamento de classes da mesma profissão ou atividade, escalonadas segundo a hierarquia do serviço, para acesso privativo dos titulares dos cargos que a integram”, enquanto que classe “é o agrupamento de cargos da mesma profissão, e com idênticas atribuições, responsabilidades e vencimentos. As classes constituem os degraus de acesso na carreira” (Cf. HELY LOPES MEIRELLES, “Direito Administrativo Brasileiro”, RT, São Paulo, 16.ª edição, 2.ª tiragem, p. 357; Cf TITO PRATES DA FONSECA, “Lições de Direito Administrativo”, 1943, p. 225).

         Pois bem, o art. 147 da Carta Política Estadual, reprodução do art. 144, § 8.º, da Constituição Federal, dispõe que “os Municípios poderão, por meio de lei municipal, constituir guarda municipal, destinada à proteção de seus bens, serviços e instalações”.

         Assim, torna-se fácil perceber que a Constituição facultou a criação da guarda municipal, pelos Municípios, com destinação previamente definida (proteção de seus bens, serviços e instalações), mas a autonomia municipal não vai ao ponto de possibilitar a criação da carreira de guarda municipal, nos moldes da Lei Complementar n.º 266/2007, de Caçapava, e a sua subdivisão em guarda municipal e guarda municipal de transporte e trânsito (classes distintas).

         Embora engenhosa, porquanto apta a induzir em erro os operadores do direito, a fórmula adotada pelo legislador municipal é materialmente inconstitucional porque A CARREIRA DA GUARDA MUNICIPAL É UNA E INDIVISÍVEL (no seu art. 147, a Constituição só prevê a criação de guarda municipal, destinada à proteção de bens, serviços e instalações municipais) e, evidentemente, não admite a coexistência de duas classes, uma composta de empregos (guarda municipal) que são compatíveis com a sua finalidade constitucional e a outra de empregos (guarda municipal de transporte e trânsito) cujas atribuições não mantêm, prima facie, nenhuma pertinência com essa finalidade.

         Além de ofensiva ao art. 147 da Carta Paulista, que só prevê a criação de uma guarda municipal, a lei complementar em análise desvirtua por completo o significado de carreira, visto que os servidores pertencentes a uma classe (guarda municipal) nunca poderão ter acesso aos cargos integrantes da outra classe (guarda municipal de transporte e trânsito), que, não se sabe o motivo, são mais bem remunerados.

         A movimentação na carreira é bem explicitada por TITO PRATES DA FONSECA:

“As classes seguem um movimento ascensional, das atribuições de menor para as de maior responsabilidade, no mesmo conjunto profissional. E como, em um sistema bem regulado, a dificuldade e responsabilidade devem conjugar-se com os estipêndios, diremos, com o Estatuto, que carreira é um conjunto de classes da mesma profissão, escalonadas segundo os padrões de vencimentos.” (ob. e loc. citadas)

         A teratológica carreira prevista na lei ora impugnada prevê a co-existência de agrupamentos de classes de diferentes profissões, escalonadas segundo os padrões de vencimentos (verdadeiras mini-carreiras), que, a princípio, são incomunicáveis, mas nada impede, por exemplo, que os integrantes da Guarda Municipal de Caçapava ocupem o cargo de Inspetor Geral da corporação, superior aos demais, que é de livre provimento (art. 18, § 3.º). 

         Na verdade, o modelo adotado pelo legislador local – qual seja a subdivisão de classes na mesma carreira, o que, inclusive, soa paradoxal, pois uma carreira só poderia ser composta por agrupamento de classes da mesma profissão ou atividade – tem a ver com a necessidade de justificar o enquadramento dos antigos fiscais de transporte público e trânsito nos cargos de guarda municipal de transporte e trânsito, independentemente de submissão prévia a concurso público, mas, neste caso, a emenda ficou pior do que o soneto.

         Em defesa dessa regra, o Município de Caçapava alegou que: ‘... atinente ao emprego antes denominado de fiscal de transporte público e trânsito, este foi renomeado para Guarda Municipal de Transporte e Trânsito, contudo preservada suas antigas atribuições, requisitos de investidura e seu respectivo concurso público, inclusive com convocação e investidura de concursados após a criação da Guarda Municipal” (fl. 301 do expediente anexo).

         Admite-se como legítimo o enquadramento de servidores em novos cargos no caso de simples alteração das nomenclaturas, desde que preservadas as atribuições originais e os requisitos de investidura, mas, neste caso, na expectativa de evitar que sua iniciativa fosse censurada por violação à regra moralizadora do concurso público, o legislador municipal investiu contra a regra da carreira.

         Mas não é só. Tal iniciativa atenta, a um só tempo, contra os arts. 124, § 1.º, e 147 da Constituição do Estado de São Paulo; o primeiro deles prevê a instituição de planos de carreira e assegura aos servidores da administração direta isonomia de vencimentos para cargos de atribuições iguais ou assemelhados do mesmo Poder, enquanto que o segundo prevê a criação da guarda municipal, destinada à proteção de bens, serviços e instalações municipais, cuja subdivisão, na espécie, objetivou a burla da regra moralizadora do concurso público, ao permitir a investidura de servidores em empregos com funções diversas daquelas para os quais foram originalmente admitidos, donde também caracterizada a violação do art. 115, II, da referida Carta Política. 

         No Decreto n.º 22.906, de 4/12/2007 (Regimento Interno da Guarda Municipal de Caçapava), baixado pelo Prefeito Municipal de Caçapava, esse propósito ficou escancarado, ao dispor-se que “O Guarda Municipal de Transporte e Trânsito é Guarda Municipal, que exercerá primordialmente atribuições afetas a questões de transporte e trânsito, além daquelas contidas no artigo 18 do presente Regimento”; tal artigo diz respeito exatamente às atribuições da Guarda Municipal e, após o pedido de informações desta Procuradoria-Geral de Justiça, teve a sua redação alterada para constar o seguinte: “O Guarda Municipal de Transporte e Trânsito exercerá primordialmente atribuições afetas a questões de transporte e trânsito, auxiliando no que couber nas disposições contidas no artigo 18 do presente Regimento.

         Evidentemente, essa menção é feita apenas a título de reforço de argumentação, embora seja prescindível, pois a inconstitucionalidade dessa lei complementar independe, para sua aferição, do exame prévio de outras normas.

         Aliás, no seu art. 9.º, a lei ora impugnada dispõe que:

“A Guarda Municipal de Caçapava é uma corporação uniformizada, hierarquizada e devidamente aparelhada, destinada a proteger o patrimônio, bens e serviços públicos municipais, conforme o disposto no artigo 144, parágrafo 8.º, da Constituição Federal e art. 6.º, inciso XVI e artigo 89 da Lei Orgânica Municipal”.

         Se a Guarda Municipal de Caçapava é uma corporação destinada a proteger o patrimônio, bens e serviços públicos municipais, consoante o art. 144, § 8.º, da Constituição Federal, nada justifica sua subdivisão em Guarda Municipal e Guarda Municipal de Transporte e Trânsito, exceto a necessidade de acomodar os antigos fiscais de transporte público e trânsito na nova carreira, independentemente de submissão prévia a concurso público.    

         A jurisprudência desse egrégio Tribunal de Justiça tem sido bastante rigorosa na interpretação da regra moralizadora do concurso público, conforme o precedente abaixo:

Ementa. Ação direta de inconstitucionalidade - Lei Complementar n.° 41/02 04.2009, do Município de Magda, que institui plano de cargos, carreiras e salários para os servidores que comporão o quadro pessoal da administração direta e indireta do Município e dá outras providências sustentada inconstitucionalidade de parte do Anexo IX, previsto no seu art. 8.o - aproveitamento de servidores efetivos - palpável violação dos artigos 111, 115, I e II, e 144 da CE - aplicação, na espécie, da Súmula n° 685, do C. STF (É inconstitucional toda modalidade de provimento que propicie ao servidor investir-se, sem prévia aprovação em concurso público destinado ao seu provimento, em cargo que não integra a carreira na qual anteriormente investido") - ademais, dispondo embora que "Extinto o cargo ou declarada a sua desnecessidade, o servidor estável ficará em disponibilidade, com remuneração proporcional ao tempo de serviço, até seu adequado aproveitamento em outro cargo", o § 3.o, do art. 41, da CF não permite que este se dê em qualquer outro cargo, mas naquele que guarde compatibilidade de atribuições e vencimentos com o cargo anterior - ação procedente.” (ADI 0010186-39.2010.8.26.0000, Rel. Des. PALMA BISSON, j. em 3/11/2010)

 

         Com relação à ofensa ao princípio da isonomia, que vem expressamente consagrado no art. 124, § 1.º, da Constituição Estadual, é bem de ver que, após subdividir a Guarda Municipal de Caçapava em Guarda Municipal e Guarda Municipal de Transporte e Trânsito, o legislador atribuiu a esta remuneração bem superior à daquela (Anexo II), o que, porém, não se explica, tendo em vista que a carreira é a mesma e as funções se equivalem, tanto assim que, em nível superior, as remunerações são idênticas, conforme o Anexo III da Lei Complementar n.º 266/2007, no qual se verifica que o Inspetor da Guarda Municipal e o Subinspetor da Guarda Municipal possuem remunerações idênticas às pagas aos ocupantes dos empregos equivalentes de Inspetor da Guarda Municipal de Transporte e Trânsito e Subinspetor da Guarda Municipal de Transporte e Trânsito.

         Enfim, ao prever no seu art. 25 que os descritivos dos novos empregos públicos, contendo as atribuições e os pré-requisitos para ingresso, serão fixados por decreto do Poder Executivo, a lei ora impugnada contrariou expressamente os arts. 5.º, § 1.º, e 19, inciso III, da Constituição do Estado de São Paulo, porquanto a criação de cargos públicos – o que compreende inclusive a definição de suas atribuições e requisitos de ingresso – é matéria submetida à reserva legal e, desse modo, a Câmara não poderia delegar ao Prefeito a regulamentação desse assunto, que deveria estar disciplinado na própria lei.

         Nesse mesmo sentido:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - Lei n.° 4.493/07, art. 1.o, §§ 1.o e 2.o, Lei n.° 4.053/04, arts. 5.o, inciso I, letra "a", e 22, inciso VII, e Decreto n.° 7.380/07, todos do Município de Americana - Dispositivos que permitem a investidura de servidor em cargo diverso daquele para o qual foi admitido por concurso - Transposição de cargos - Inadmissibilidade - Jurisprudência e Súmula 685 do Colendo Supremo Tribunal Federal - Afronta aos arts. 111 e 115, inciso II, da Constituição Estadual - Caracterização - Decreto n.° 7.380/07 cuidou de matéria reservada a lei (g.n.) – Inconstitucionalidade declarada - Ação procedente.” (ADI n.º 9029560-19.2009.8.26.0000, Rel. Des. SOUSA LIMA, j. em 25/5/2011)

         Uma última observação faz-se necessária: a lei foi impugnada no todo, e não parcialmente, porque se for declarada a inconstitucionalidade apenas da parte alusiva à Guarda Municipal o texto remanescente ficará sem sentido, tornando-se, assim, imprescindível a utilização neste caso da técnica de arrastamento.

Em suma, a Lei Complementar Municipal n.º 266/2007, de Caçapava, é materialmente inconstitucional porque: [1] desvirtua a noção de carreira, ante a instituição da Guarda Municipal de Caçapava, a qual, porém, é composta por agrupamentos de classes de profissões diversas (CE, art. 124, caput); [2] a remuneração diferenciada para os que integram classes análogas atenta contra a isonomia (CE, art. 124, § 1.º); [3] possibilita a passagem dos servidores de uma carreira (fiscal de trânsito) para outra (guarda municipal) sem submissão prévia a concurso público de provas ou de provas e títulos (CE, art. 115, II); [4] a estipulação por decreto das atribuições e pré-requisitos para ingresso nos cargos e empregos criados por lei constitui indisfarçável delegação ao Poder Executivo de função legislativa (CE, arts. 5.º, § 1.º, e 19, inciso III).

5) DA LIMINAR.

Estão presentes, na hipótese examinada, os pressupostos do fumus bonis iuris e do periculum in mora, a justificar a suspensão liminar da vigência e eficácia dos dispositivos destacados anteriormente.

A razoável fundamentação jurídica decorre dos motivos expostos, que indicam, de forma clara, que a lei impugnada nesta ação padece de inconstitucionalidade.

O perigo da demora decorre especialmente da ideia de que sem a imediata suspensão da vigência e eficácia dos preceitos questionados, subsistirá a sua aplicação, com realização de despesas (e imposição de obrigações à Municipalidade) que dificilmente poderão ser revertidas aos cofres públicos, na hipótese provável de procedência da ação direta.

Basta lembrar que os pagamentos realizados a título de remuneração dificilmente serão revertidos ao erário, pela argumentação usual, em casos desta espécie, no sentido do caráter alimentar da prestação e, portanto, irrepetível.

A ideia do fato consumado, com repercussão concreta, guarda relevância para a apreciação da necessidade da concessão da liminar na ação direta de inconstitucionalidade.

Note-se que, com a procedência da ação, pelas razões declinadas, dificilmente será possível restabelecer o status quo ante.

Assim, a imediata suspensão da eficácia das normas impugnadas evitará a ocorrência de maiores prejuízos, além dos que já se verificaram.

De resto, ainda que não houvesse essa singular situação de risco, restaria, ao menos, a excepcional conveniência da medida.

No contexto das ações diretas e da outorga de provimentos cautelares para defesa da Constituição, o juízo de conveniência é um critério relevante, que vem condicionando os pronunciamentos do Supremo Tribunal Federal, preordenados à suspensão liminar de leis aparentemente inconstitucionais (cf. ADIN-MC 125, j. 15.2.90, DJU de 4.5.90, p. 3.693, rel. Min. Celso de Mello; ADIN-MC 568, RTJ 138/64; ADIN-MC 493, RTJ 142/52; ADIN-MC 540, DJU de 25.9.92, p. 16.182).

Diante do exposto, requer-se a concessão da liminar, para fins de suspensão imediata da eficácia da lei impugnada nesta ação direta.

6) CONCLUSÃO E PEDIDO.

Diante de todo o exposto, aguarda-se o recebimento e processamento da presente ação declaratória, para que ao final seja ela julgada procedente, reconhecendo-se a inconstitucionalidade da Lei Complementar Municipal n.º 266, de 27 de setembro de 2007, de Caçapava.

Requer-se, ainda, que sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Senhor Prefeito Municipal de Caçapava, além de a posterior citação do Procurador-Geral do Estado para manifestar-se sobre o ato normativo impugnado.

Posteriormente, aguarda-se vista para fins de manifestação final.

Termos em que,

Aguarda-se deferimento.

São Paulo, 29 de julho de 2011.

 

        Fernando Grella Vieira

        Procurador-Geral de Justiça

 

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Protocolado nº 79.254/2011

Assunto: inconstitucionalidade da Lei Complementar Municipal n.º 266, de 27 de setembro de 2007, de Caçapava.

 

 

 

1.     Distribua-se a inicial da ação direta de inconstitucionalidade.

2.     Oficie-se ao Interessado para comunicar o ajuizamento desta ação, a quem ainda deverá ser fornecida cópia da inicial.

3.     Cumpra-se.

São Paulo, 21 de julho de 2011.

 

 

        Fernando Grella Vieira

        Procurador-Geral de Justiça

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