Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente
do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
O
Procurador-Geral de Justiça de São Paulo, no exercício da atribuição
prevista no art. 116, inciso VI, da Lei Complementar Estadual n. 734, de 26 de
novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo), e em
conformidade com o disposto nos arts. 125, § 2.º, e 129, inciso IV, da Lei
Maior, e arts. 74, inciso VI, e 90, inciso III, da Constituição Estadual, com
base nos elementos de convicção existentes no incluso protocolado (PGJ n. 79.433/07),
vem perante esse Egrégio Tribunal de
Justiça promover a presente
AÇÃO DIRETA DE
INCONSTITUCIONALIDADE
de parte do Anexo “II”, referente aos cargos de Assessor Jurídico,
Assessor Contábil e Médico Perito, previsto no art. 11 da Lei Municipal n.
3.957, de 28 de dezembro de 2006, que alterou a Lei n. 3.806, de 24 de novembro
de 2005, do município de Araras que,
dentre outras providências, institui o Quadro Geral dos servidores do Serviço
de Previdência Social do Município de Araras (ARAPREV), definindo, de forma
inconstitucional, como de provimento em comissão cargos cujas funções são
eminentemente técnicas, pelas razões e fundamentos a seguir expostos:
O
art. 11 da Lei Municipal n. 3.957, de 28 de dezembro de 2006, alterou a Lei n.
3.806, de 24 de novembro de 2005, nos seguintes termos:
Art. 11 – Fica devidamente alterado o
quadro de cargos da ARAPREV, previsto no art. 175, objeto do Anexo II, parte
integrante desta Lei[1].
O
Quadro Geral do Anexo II está reproduzido a fls. 86 e prevê os seguintes cargos
de forma inconstitucional:
CARGO |
NATUREZA |
PROVIMENTO |
Assessor Jurídico |
Comissão |
Livre Escolha |
Assessor Contábil |
Comissão |
Livre Escolha |
Médico Perito |
Comissão |
Livre Escolha |
O
art. 11 da Lei Municipal n. 3.957, de 28 de dezembro de 2006, ao alterar a Lei
n. 3.806, de 24 de novembro de 2005, e ao prever que citados cargos sejam de
provimento em comissão, embora se refiram a funções técnicas e burocráticas,
acabou por infringir a Constituição do Estado de São Paulo, pois a Administração
Pública direta deve obedecer diversos princípios (CE, art. 111), sendo de rigor
que seja garantida a acessibilidade aos brasileiros, após aprovação prévia em
concurso público de provas ou de provas e títulos (CE, art. 115).
O
acesso por meio de nomeações para cargo em comissão é excepcional e só pode
ocorrer nos casos declarados em lei e para o desempenho de funções de direção,
chefia e assessoramento, nos termos do art. 37, V, da Constituição Federal, com
a redação dada pela EC n. 19/98, aplicável aos municípios por força do art. 144
da Constituição paulista.
Por isso, há manifesta incompatibilidade com a
Constituição do Estado de São Paulo, em especial com as seguintes disposições:
“Art. 111 – A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer
dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade,
moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação e interesse
público.
Art. 115 - Para a organização da
administração pública direta e indireta, inclusive as fundações instituídas ou
mantidas por qualquer dos Poderes do Estado, é obrigatório o cumprimento das
seguintes normas:
I - os cargos, empregos e funções
públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos
estabelecidos em lei;
II - a investidura em cargo ou emprego
público depende de aprovação prévia, em concurso público de provas ou de provas
e títulos, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão, declarado em lei,
de livre nomeação e exoneração;
Art. 144 - Os Municípios, com autonomia
política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por Lei
Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta
Constituição.”
A
Constituição em vigor consagrou o Município como entidade federativa
indispensável ao nosso sistema federativo, integrando-o na organização
político-administrativa e garantindo-lhe plena autonomia, como se observa da análise dos arts. 1.º, 18, 29, 30 e
34, VI, “c” da CF (Cf. Alexandre de Moraes, in “Direito Constitucional”, Atlas,
7.ª ed., p. 261).
Essa autonomia consagrada aos Municípios não tem caráter absoluto e
soberano, muito pelo contrário, encontra limites nos princípios emanados dos
poderes públicos e dos pactos fundamentais, que instituíram a soberania de um
povo (Cf. De Plácido e Silva, “Vocabulário Jurídico”, Forense, Rio de Janeiro,
Volume I, 1984, p. 251), sendo definida por José Afonso da Silva como “a
capacidade ou poder de gerir os próprios negócios, dentro de um círculo
prefixado por entidade superior”, que no caso é a Constituição (Cf. “Curso de
Direito Constitucional Positivo”, Malheiros Editores, São Paulo, 8.ª ed., 1992,
p. 545).
A
autonomia municipal se assenta em
quatro capacidades básicas: (a)
auto-organização, mediante a elaboração de lei orgânica própria, (b) autogoverno, pela eletividade do
Prefeito e dos Vereadores as respectivas Câmaras Municipais, (c) autolegislação, mediante competência
de elaboração de leis municipais sobre áreas que são reservadas à sua
competência exclusiva e suplementar, (d)
auto-administração ou administração própria, para manter e prestar os serviços
de interesse local (Cf. José Afonso da Silva, ob. cit., p. 546).
Nessas
quatro capacidades, encontram-se caracterizadas a autonomia política
(capacidades de auto-organização e autogoverno), a autonomia normativa
(capacidade de fazer leis próprias sobre matéria de sua competência), a autonomia administrativa
(administração própria e organização dos serviços locais) e a autonomia
financeira (capacidade de decretação de seus tributos e aplicação de suas
rendas, que é uma característica da auto-administração) (ob. e loc. cits).
Assim,
por força da autonomia administrativa de que foram dotadas, as entidades municipais
são livres para organizar os seus próprios serviços, segundo suas conveniências
locais. E, na organização desses serviços públicos, a Administração cria cargos e funções, institui classes
e carreiras, faz provimentos e lotações, estabelece vencimentos e vantagens e
delimita os deveres e direitos de seus servidores (Cf. Hely Lopes Meirelles, in
“Direito Municipal Brasileiro”, Malheiros Editores, São Paulo, 1996, 8.ª
edição, p. 420).
Contudo,
a liberdade conferida aos Municípios para organizar os seus próprios serviços
não é ampla e ilimitada; ela se subordina às seguintes regras fundamentais e
impostergáveis: (a) a que exige que
essa organização se faça por lei; (b)
a que prevê a competência exclusiva da entidade ou Poder interessado; e (c) a
que impõe a observância das normas constitucionais federais pertinentes ao
servidor público (ob. e loc. cits.)
Feitas
essas observações iniciais, verifica-se neste caso que a Prefeitura Municipal e
a Câmara Municipal de Porto Feliz criaram cargos de
provimento em comissão para o exercício de funções estritamente técnicas ou
profissionais, próprias dos cargos de provimento efetivo. São funções que
denotam a natureza profissional do vínculo entre seus agentes e a Administração
Pública e que, por essa razão, só poderiam ser preenchidas por concurso público.
Segundo
RUY CIRNE LIMA (“Princípios de
Direito Administrativo, RT, 6.ª ed., p. 162), o funcionário público
profissional se peculiariza por quatro característicos básicos, a saber: (a)
natureza técnica ou prática do serviço prestado; (b) retribuição de cunho
profissional; (c) vinculação jurídica à Administração Direta; (d) caráter
permanente dessa vinculação.
Desse
modo, nitidamente diferenciado dos cargos que reclamam provimento em comissão,
as funções profissionais devem ser exercidas em caráter permanente, ou seja,
pelo quadro estável de servidores públicos municipais, os quais, em
conformidade com o disposto no art. 115, inciso II, da Constituição do Estado
de São Paulo, só podem ser arregimentados por concurso público de provas ou de
provas e títulos.
Na
verdade, o cargo em comissão destina-se apenas às atribuições de “direção,
chefia e assessoramento” (CF., art. 37, inciso V, com a redação dada pela EC
n.º 19/98) e tem por finalidade propiciar ao governante o controle das
diretrizes políticas traçadas. Exige, portanto, das pessoas indicadas a
titularizá-los, absoluta fidelidade à orientação fixada pela autoridade
nomeante. Em outras palavras, o cargo de provimento em comissão está
diretamente ligado ao dever de lealdade à linha fixada pelo agente político
superior.
Daí
por que a exceção contida na parte final do inciso II, do artigo 115, da
Constituição do Estado de São Paulo - “ressalvadas
as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e
exoneração” -, que, no ponto, reproduz a dicção do artigo 37, inciso II, da
Constituição da República, tem alcance limitado à situações excepcionais,
relativas aos cargos cuja natureza especial justifique a dispensa de concurso
público.
Torna-se
evidente, portanto, que a limitação apontada não tem caráter puramente formal,
de simples e incriteriosa indicação legal de cargos de provimento em comissão,
que pudesse afastar o princípio constitucional da igual acessibilidade aos cargos públicos.
Bem
a propósito, ao estudar com profundidade esse assunto, o jurista MARCIO CAMMAROSANO deixou anotado que o
princípio democrático implica no princípio da igualdade “e este no princípio da igual acessibilidade dos cargos públicos, com o
que se resguarda também o princípio da probidade administrativa” (Cf. “Provimento de Cargos Públicos no
Direito Brasileiro”, Revista dos Tribunais, São Paulo, 1.ª ed., p. 45).
Assim,
para que a lei criadora de um cargo em comissão não venha a se constituir em
burla ao princípio constitucional arrolado, enunciado expressamente pelo artigo
37, incisos I e II, da Constituição da República, deverá observar
criteriosamente a natureza das funções a serem desempenhadas, pois, no dizer de
CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO (O Conteúdo
Jurídico do Princípio da Igualdade, Editora Revista dos Tribunais, 1.ª edição,
pág. 49), “impende que exista uma
adequação racional entre o tratamento diferençado construído e a razão
diferencial que lhe serviu de supedâneo”.
Afinado
a esse mesmo entendimento, HELY LOPES
MEIRELLES (“Direito Administrativo Brasileiro”, Malheiros, 18.ª ed., p.
378) adverte sobre pronunciamento do Supremo Tribunal Federal no sentido de que
“a criação de cargo em comissão em
moldes artificiais e não condizentes com as praxes de nosso ordenamento
jurídico e administrativo, só pode ser encarada como inaceitável esvaziamento
da exigência constitucional de concurso”.
E,
da mesma forma, já decidiu o Pretório Excelso que “a exigência constitucional
do concurso público não pode ser contornada pela criação arbitrária de cargos
em comissão para o exercício de funções que não pressuponham o vínculo de
confiança que explica o regime de livre nomeação e exoneração que os
caracteriza.” (STF, RTJ 156/793).
Nesse
contexto, não existe qualquer necessidade do estabelecimento de vínculo de
confiança para o exercício dos cargos reproduzidos na presente inicial.
Na
esteira desse raciocínio, é inescusável que a parte final do inciso II do art.
115 da Constituição do Estado de São Paulo, tem alcance circunscrito a
situações em que o requisito da confiança seja predicado indispensável ao
exercício do cargo. De fato, como se trata de uma exceção à regra do concurso
público, a criação de cargos em comissão pressupõe o atendimento do interesse
público e só se justifica para o exercício de funções de “direção, chefia e
assessoramento”, em que seja necessário o estabelecimento de vínculo de
confiança entre a autoridade nomeante e o servidor nomeado. Fora desses
parâmetros, é inconstitucional qualquer tentativa de criação de cargos dessa
natureza.
Os cargos, cuja validade
jurídico-constitucional ora se examina, não se apresentam como cargos ou funções
de administração superior, ou mesmo de “direção, chefia e assessoramento”, que
exija relação de confiança ou especial fidelidade às diretrizes traçadas pela
autoridade nomeante, mas sim de cargo comum, de natureza profissional, que deve
ser assumido em caráter permanente por servidores aprovados em concurso.
Bem
a propósito, ao examinar iniciativa semelhante, o Órgão Especial desse Egrégio
Tribunal de Justiça (ADIn. n.º 11.939-0, relator Des. OLIVEIRA COSTA) entendeu
por bem declarar a inconstitucionalidade material de expressões de lei criadora
de cargos em comissão, cuja natureza não correspondia às características
próprias dessas funções.
O
Supremo Tribunal Federal, ao julgar a ADI n. 3706/MS[2], e
apreciar caso semelhante, declarou a inconstitucionalidade de Lei Estadual que
criou cargo em comissão que tem atribuição meramente técnica:
“AÇÃO
DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI ESTADUAL QUE CRIA CARGOS
Conclui-se,
portanto, que o dispositivo legal sindicado, nos pontos em que criou cargos de
provimento em comissão, que não dependem para o seu exercício do
estabelecimento de qualquer vínculo de confiança com a autoridade nomeante, é
verticalmente incompatível com os arts. 111 e 115, incisos I e II, da
Constituição do Estado de São Paulo, cuja observância é obrigatória pelos
Municípios, por força do art. 144 dessa mesma Carta, impondo-se, por
conseguinte, a sua exclusão da ordem constitucional em vigor.
Nestes termos, aguardo seja determinado
o processamento da presente ação, colhendo-se informações do Prefeito e da
Câmara Municipal de Araras, as quais examinarei oportunamente, vindo, no final,
a ser declarada a inconstitucionalidade de
parte do Anexo “II” previsto no art. 11 da Lei Municipal n. 3.957, de 28 de
dezembro de 2006, que alterou a Lei n. 3.806, de 24 de novembro de 2005, do
município de Araras, mais especificamente, da parte reproduzida na presente
ação direta, devendo, após, ser oficiado aos membros daquela Comuna solicitando
a adoção das providências necessárias à suspensão definitiva dos efeitos de sua
execução.
São Paulo, 4 de setembro de 2008.
FERNANDO GRELLA VIEIRA
Procurador-Geral de Justiça