Excelentíssimo Senhor Doutor Desembargador Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo

 

 

 

 

“Ação direta de inconstitucionalidade. § 1º do art. 5º da Lei n. 3.122, de 13 de novembro de 1997, do Município de Cruzeiro. Instituição, em favor de servidor público, de gratificação pelo exercício do cargo em regime de dedicação integral em percentuais variáveis dos vencimentos definidos a critério do Chefe do Poder Executivo. Violação dos princípios da separação de poderes, da legalidade, da moralidade e da impessoalidade. Arts. 5º, 24, § 2º, 1, 111, 115, XI, e 144, da Constituição do Estado de São Paulo.

1. A possibilidade de escolha aleatória, subjetiva, pessoal e diferenciada dos percentuais de gratificação de dedicação integral a servidores públicos agride os princípios da impessoalidade e da moralidade.

2. A exigência de legalidade na fixação dos vencimentos dos servidores públicos abrange as vantagens pecuniárias.

3. Não é dado ao Poder Legislativo renunciar sua competência exclusiva para fixação do valor da gratificação de maneira impessoal, abstrata e genérica, mesmo em face da iniciativa legislativa reservada ao Chefe do Poder Executivo”.

 

 

             O Procurador-Geral de Justiça, com fundamento nos arts. 74, VI, e 90, III, da Constituição Estadual, no art. 116, VI, da Lei Complementar Estadual n. 734/93, e nos arts. 125, § 2º, e 129, IV, da Constituição Federal, e com base nos elementos de convicção constantes do expediente anexo (Protocolado n. 82.099/08), vem, respeitosamente, promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE, com pedido de liminar, em face do § 1º do art. 5º da Lei n. 3.122, de 13 de novembro de 1997, do Município de Cruzeiro, pelos motivos seguir expostos:

 

1.           O art. 5º da Lei n. 3.122, de 13 de novembro de 1997, do Município de Cruzeiro, está assim redigido:

“Artigo 5º. Ao servidor público poderá ser atribuída gratificação pelo regime de dedicação integral, que o obriga a exercer suas funções, além do horário normal estabelecido, a qualquer momento que for solicitado, inclusive, sábados, domingos e feriados.

Parágrafo 1º. Pelo exercício do cargo de regime de dedicação integral, o servidor poderá receber gratificações que poderão variar de 20 (vinte) a 100% (cem por cento) dos vencimentos mensais, a critério do Chefe do Poder Executivo.

Parágrafo 2º. As gratificações a que se refere o presente artigo serão conferidas mediante portaria.

Parágrafo 3º. O servidor beneficiado pela gratificação de que trata este artigo, mesmo que incorporada ao vencimento, não terá direito ao recebimento de hora extra”.

 

2.           Como se infere de sua atenta leitura, o caput do art. 5º institui em favor de servidores públicos vantagem pecuniária consistente em gratificação pelo regime de dedicação integral para remuneração de função que exige regime especial de trabalho. De natureza ex facto officci e pro labore faciendo, tendo na ampliação da jornada de trabalho seu pressuposto porque o servidor público desenvolve certas atividades que demandam maior assistência e disposição integral e exclusiva em favor da Administração Pública.

 

3.           Todavia, o § 1º desse art. 5º estabelece que:

“Pelo exercício do cargo de regime de dedicação integral, o servidor poderá receber gratificações que poderão variar de 20 (vinte) a 100% (cem por cento) dos vencimentos mensais, a critério do Chefe do Poder Executivo”.

 

4.           Essa regra estipula o valor das gratificações em percentual variável sobre os vencimentos mensais do servidor público, cuja fixação é delegada ao Chefe do Poder Executivo, possibilitando que assim o faça de maneira aleatória, subjetiva, pessoal e diferenciadamente para cada servidor público que esteja em regime de dedicação plena gratificação, escolhendo ad nutum os percentuais de 20 a 100% do valor de seus vencimentos mensais.            

 

5.           E exatamente nisto reside a inconstitucionalidade do § 1º do art. 5º da Lei n. 3.122/97 do Município de Cruzeiro por incompatibilidade vertical com os arts. 5º, 24, § 2º, 1, 111, 115, XI, e 144, da Constituição do Estado de São Paulo, que assim dispõem:

“Artigo 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

§ 1º - É vedado a qualquer dos Poderes delegar atribuições.

§ 2º - O cidadão, investido na função de um dos Poderes, não poderá exercer a de outro, salvo as exceções previstas nesta Constituição.

(...)

Artigo 24 - A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Assembléia Legislativa, ao Governador do Estado, ao Tribunal de Justiça, ao Procurador-Geral de Justiça e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.

(...)

§ 2º - Compete, exclusivamente, ao Governador do Estado a iniciativa das leis que disponham sobre:

1 - criação e extinção de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica, bem como a fixação da respectiva remuneração;

(...)

Artigo 111 – A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência.

(...)

Artigo 115 - Para a organização da administração pública direta e indireta, inclusive as fundações instituídas ou mantidas por qualquer dos Poderes do Estado, é obrigatório o cumprimento das seguintes normas:

(...)

XI – a revisão geral anual da remuneração dos servidores públicos, sem distinção de índices entre servidores públicos civis e militares, far-se-á sempre na mesma data e por lei específica, observada a iniciativa privativa em cada caso.

Artigo 144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição”.

 

6.           A instituição, em favor de servidor público, de gratificação pelo exercício do cargo em regime de dedicação integral, não ofende qualquer preceito constitucional.

 

7.           Todavia, a permissão contida na lei em foco que o valor dessa gratificação seja fixado a partir de percentuais variáveis aplicáveis aos vencimentos e definidos a critério do Chefe do Poder Executivo, ofende os princípios da legalidade, da moralidade e da impessoalidade na Administração Pública, previstos nos arts. 24, § 2º, 1, 111 e 115, XI, da Constituição Estadual, aplicáveis aos Municípios por obra de seu art. 144.

 

8.           Com efeito, resulta dos arts. 24, § 2º, 1, 111, e 115, XI, da Constituição Paulista, que os vencimentos dos servidores públicos devem ser fixados em lei específica.

 

9.           Nessa compreensão incluem-se as vantagens pecuniárias e seus respectivos valores.        A dimensão da reserva de lei - da tradição jurídico-constitucional brasileira (art. 15, n. 17, Constituição de 1824; art. 34, n. 24, art. 72, n. 32, Constituição de 1891; art. 65, IV, Constituição de 1946; arts. 43, V, e 57, II, Constituição de 1967; art. 37, X, Constituição de 1988) - abrange quaisquer espécies remuneratórias e, aliás, quaisquer estipêndios pagos pelo poder público sob qualquer rubrica, alcançando acréscimos e vantagens pecuniários, indenizações, auxílios, abonos.

 

10.         Pela lei local impugnada, todavia, mercê da previsão da vantagem pecuniária, a estipulação de seus valores ficou confiada ao alvedrio do Chefe do Poder Executivo, descumprindo o princípio da legalidade remuneratória atinente aos servidores públicos (e decorrência do princípio da legalidade administrativa).

 

11.         Não obstante, a delegação da eleição do percentual devido a título de gratificação de dedicação integral ofende ainda os princípios da moralidade e da impessoalidade, cunhados no art. 111 da Constituição Paulista.

 

12.         O esquema normativo impugnado, emergente do § 1º do art. 5º da lei local, fornece ao Chefe do Poder Executivo ampla e excessiva discricionariedade, permitindo-lhe aquinhoar, por escolha imotivada ou motivada por critérios alheios ao interesse público primário, alguns servidores credores da gratificação com percentuais maiores ou menores que outros igualmente nessa situação.

 

13.         A escolha aleatória, subjetiva, pessoal e diferenciada dos percentuais da gratificação não se amolda às exigências da moralidade e impessoalidade na medida em que é permeável a critérios desprovidos de objetividade, neutralidade, imparcialidade, igualdade e impessoalidade. Na compreensão do princípio da impessoalidade está, entre outros, a matriz da igualdade, repudiando tratamentos discriminatórios desprovidos de relação lógica e proporcional entre o fator de discriminação e a sua finalidade.

 

14.         A previsão legal impugnada possibilita, portanto, ao Chefe do Poder Executivo local atribuir diferentes percentuais (referentes à gratificação) sem qualquer critério objetivo ou por critérios sigilosos ou subjetivos, expondo a Administração Pública a tratamentos desigualitários, imorais, desarrazoados, e, sobretudo, distantes do interesse público primário.

 

15.         Se a mens legis é a remuneração condigna e diferenciadamente daqueles servidores públicos que, pela natureza de suas funções, estão sujeitos à plena dedicação à Administração Pública - justificando-se essa discriminação em seu favor e em detrimento dos demais - não há motivo plausível, racional, proporcional, ético, funcional e objetivo a sustentar a instituição nesse grupo, classe ou categoria de servidores públicos de tratamento diferenciado entre seus integrantes.

 

16.         A previsão legal impugnada permite, por exemplo, que, por favorecimentos ou perseguições, ou pela incidência dos vícios do amiguismo, do fllhotismo, do compadrio, do coronelismo, do aparelhamento, uns sejam aquinhoados com maiores percentuais da vantagem pecuniária que outros, mercê da identidade objetiva de situações jurídicas. 

 

17.        Por outro lado, patenteia-se a infração aos arts. 5º e 24, § 2º, 1, da Constituição Estadual, na medida em que a transferência ao Chefe do Poder Executivo de missão inerente ao Poder Legislativo - de definição do percentual devido a título de gratificação a cada servidor público - constitui agressão ao princípio da separação dos poderes.

 

18.         Como já exposto, a exigência de legalidade na fixação dos vencimentos dos servidores públicos é compreensiva das vantagens pecuniárias. Portanto, é do domínio exclusivo da lei a disciplina integral da essência da matéria, pertencendo ao Poder Legislativo a edição do competente ato normativo.

 

19.         Na prática, porém, a operação permitida no § 1º do art. 5º da lei local impugnada delega ao Chefe do Poder Executivo parcela de função indelegável do Poder Legislativo, a quem compete fixar os valores da gratificação instituída ou, quando muito, mediante parâmetros objetivos previamente dispostos, exigir regulamentação subalterna a respeito.

 

20.         Não é dado ao Poder Legislativo renunciar sua competência exclusiva para fixação do valor da gratificação, de maneira impessoal, abstrata e genérica, mesmo em face da iniciativa legislativa reservada ao Chefe do Poder Executivo. A previsão legal, no ponto, transborda os limites da separação de poderes.

 

21.         Em torno do tema, o Supremo Tribunal Federal prestigia a prevalência da reserva legal na remuneração dos servidores públicos e sua indelegabilidade:

“O tema concernente à disciplina jurídica da remuneração funcional submete-se ao postulado constitucional da reserva absoluta de lei, vedando-se, em conseqüência, a intervenção de outros atos estatais revestidos de menor positividade jurídica, emanados de fontes normativas que se revelem estranhas, quanto à sua origem institucional, ao âmbito de atuação do Poder Legislativo, notadamente quando se tratar de imposições restritivas ou de fixação de limitações quantitativas ao estipêndio devido aos agentes públicos em geral. - O princípio constitucional da reserva de lei formal traduz limitação ao exercício das atividades administrativas e jurisdicionais do Estado. A reserva de lei - analisada sob tal perspectiva - constitui postulado revestido de função excludente, de caráter negativo, pois veda, nas matérias a ela sujeitas, quaisquer intervenções normativas, a título primário, de órgãos estatais não-legislativos. Essa cláusula constitucional, por sua vez, projeta-se em uma dimensão positiva, eis que a sua incidência reforça o princípio, que, fundado na autoridade da Constituição, impõe, à administração e à jurisdição, a necessária submissão aos comandos estatais emanados, exclusivamente, do legislador. Não cabe, ao Poder Executivo, em tema regido pelo postulado da reserva de lei, atuar na anômala (e inconstitucional) condição de legislador, para, em assim agindo, proceder à imposição de seus próprios critérios, afastando, desse modo, os fatores que, no âmbito de nosso sistema constitucional, só podem ser legitimamente definidos pelo Parlamento. É que, se tal fosse possível, o Poder Executivo passaria a desempenhar atribuição que lhe é institucionalmente estranha (a de legislador), usurpando, desse modo, no contexto de um sistema de poderes essencialmente limitados, competência que não lhe pertence, com evidente transgressão ao princípio constitucional da separação de poderes” (STF, ADI-MC 2.075-RJ, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 07-02-2001, v.u., DJ 27-06-2003, p. 28).

 

“Em tema de remuneração dos servidores públicos, estabelece a Constituição o princípio da reserva de lei. É dizer, em tema de remuneração dos servidores públicos, nada será feito senão mediante lei, lei específica. CF, art. 37, X, art. 51, IV, art. 52, XIII. Inconstitucionalidade formal do Ato Conjunto n. 01, de 5-11-2004, das Mesas do Senado Federal e da Câmara dos Deputados” (STF, ADI 3.369-MC, Rel. Min. Carlos Velloso, 16-12-2004, DJ 01-02-2005).

 

 22.        Demonstrada quantum satis a inconstitucionalidade do § 1º do art. 5º da Lei n. 3.122, de 13 de novembro de 1997, do Município de Cruzeiro, por ofensa aos arts. 5º, 24, § 2º, 1, 111, 115, XI, e 144, da Constituição Estadual, é promovida a presente ação, requerendo a concessão de medida liminar.

 

23.         Em se tratando do controle normativo abstrato, uma vez verificada a cumulativa satisfação dos requisitos legais concernentes ao fumus boni iuris e ao periculum in mora, o poder geral de cautela autoriza a suspensão da eficácia do § 1º do art. 5º da Lei n. 3.122, de 13 de novembro de 1997, do Município de Cruzeiro.

 

24.         Convergem para tanto a plausibilidade jurídica da tese exposta na inicial e o delineamento da situação do risco irreparável consistente no pagamento de vantagens arbitrária e ilegalmente fixadas, de modo a gravar ilicitamente o erário e dispensar tratamento desigualitário com sérias repercussões financeiras e jurídicas na comuna.

 

25.         Face ao exposto, requer:

 

a) a concessão de liminar suspendendo a eficácia do § 1º do art. 5º da Lei n. 3.122, de 13 de novembro de 1997, do Município de Cruzeiro, até final julgamento da lide e o processamento do feito observando as prescrições legais e regulamentares;

 

b) a colheita das informações necessárias dos Excelentíssimos Senhores Prefeito e Presidente da Câmara Municipal de Cruzeiro, sobre as quais protesta por manifestação oportuna;

 

c) a oitiva do douto Procurador-Geral do Estado, nos termos do art. 90, § 2º, da Constituição Estadual;

 

d) ao final, seja julgada procedente a presente ação, declarando-se a inconstitucionalidade do § 1º do art. 5º da Lei n. 3.122, de 13 de novembro de 1997, do Município de Cruzeiro.

 

             Termos em que, pede deferimento.

 

             São Paulo, 01 de setembro de 2008.

 

 

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça