EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO E. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Protocolado nº 82.490/2008

Assunto: inconstitucionalidade da Lei Complementar Municipal nº 206, de 29 de dezembro de 2005, e da Lei Municipal nº 3710, de 06 de junho de 2007, ambas de Mococa .

Ementa:

1)Lei Complementar Municipal nº206, de 29 de dezembro de 2005, de Mococa. Autorização para concessão de direito real de uso de imóvel. Especificação do destinatário e ausência de licitação.

2)Lei Municipal nº3710, de 06 de junho de 2007, de Mococa. Autorização para transferência da administração e mantença de cursos mantidos por Fundação Municipal para fundação privada.

3)Violação da regra da separação de poderes. Atos normativos que indicam o beneficiário da concessão. Delegação inversa de poder (art. 5º, e §§, bem como no art. 47, II e XIV da Constituição Paulista).

4)Violação do princípio da impessoalidade (art. 111 da Constituição Paulista).

5)Violação do princípio da licitação (art. 117 da Constituição Paulista).

6)Efeito repristinatório. Declaração de inconstitucionalidade que provocará a revitalização da redação anterior do dispositivo, que padecia do mesmo vício. Necessidade de declaração de inconstitucionalidade, por arrastamento, do preceito revogado. Pedido sucessivo. Precedentes do E. STF.

O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, inciso VI, da Lei Complementar Estadual nº 734 de 26 de novembro de 1993, e em conformidade com o disposto no art. 125, § 2º, e art. 129, inciso IV, da Constituição da República, e ainda art. 74, inciso VI, e art. 90, inciso III da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado (PGJ nº 82.490/08, que segue como anexo), vem perante esse Egrégio Tribunal de Justiça promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE da Lei Complementar Municipal nº206, de 29 de dezembro de 2005, e da Lei Municipal nº3710, de 06 de junho de 2007, ambas de Mococa, pelos fundamentos expostos a seguir.

1)Atos normativos impugnados.

A Lei Complementar nº 206, de 29 de dezembro de 2005, de Mococa, (fls. 199/202 do pt. nº 82490/2008) que, conforme respectiva rubrica, “Autoriza a alienação, por concessão de direito real de uso com encargos, de imóvel público que especifica à Fundação Vida Cristã, para os fins que especifica e dá outras providências”, tem a seguinte redação (a descrição do imóvel envolvido encontra-se na lei, e não será reproduzida, aqui, por apego à brevidade):

“Art. 1º. Fica o Poder Executivo Municipal autorizado a alienar, por concessão de direito real de uso, à Fundação Vida Cristã, a área municipal localizada no Conjunto Habitacional ‘Dr. Gilberto Rossetti’, em Mococa, denominada Área ‘A’, remanescente da Área institucional ‘N’, bem como a edificação nela existente, abaixo descritas:

I – (...);

II – (...);

§ 1º. A concessão de direito real de uso a que se refere o caput deste artigo será feita por 30 (trinta) anos, renováveis por igual período, e para o fim específico de ser construído no local o campus universitário da cessionária, objetivando a criação, instalação e manutenção de cursos superiores de graduação e de pós-graduação, ficando expressamente proibida a criação, instalação e manutenção de cursos superiores de graduação já existentes no Município de Mococa.

§ 2º. A cessionária fica obrigada a conceder a alunos carentes, para cada curso instalado, durante todo o período que a mesma desenvolver suas atividades no imóvel objeto do artigo 1º, bolsas de estudo totalmente gratuitas, cujos critérios serão definidos no contrato de concessão de direito real de uso.

Art. 2º. A concessionária terá prazo de 06 (seis) meses após a publicação desta Lei Complementar para a apresentação do projeto definitivo e cronograma de construção, tendo 24 (vinte e quatro) meses para a conclusão da obra, a partir da apresentação do mencionado projeto.

Parágrafo único. A Prefeitura Municipal de Mococa poderá prorrogar o prazo total para a conclusão da obra, mencionada no caput deste artigo, pelo período complementar de até 12 (doze) meses, mediante decreto, desde que a cessionária apresente justificativa técnica solicitando a prorrogação, consubstanciado-a com dados, relatórios, análises e outros subsídios que julgar válidos, bem como a redefinição dos cronogramas de prazos que serão implementados.

Art. 3º. No instrumento de concessão de direito real de uso deverão constar os prazos para o término da construção, bem como o do início das atividades, ressalvando-se, inclusive, a destinação única e exclusiva da área e os encargos de contrapartida obrigacional aos quais a cessionária se submete.

Art. 4º. No imóvel objeto desta concessão de direito real de uso, a cessionária não poderá exercer atividades diversas das propostas em seu objeto social, sem a prévia anuência da Prefeitura Municipal de Mococa, mediante expressa autorização legal.

Art. 5º. No caso de não cumprimento do disposto nesta Lei Complementar ou nas disposições constantes no projeto definitivo de construção, cronograma de construção e projeto e cronograma de instalação dos cursos superiores, por parte da cessionária, ocorrerá a reversão pura e simples da área recebida em concessão de direito real de uso, em favor do patrimônio público bem como as respectivas construções e benfeitorias, de qualquer espécie, edificadas no local, sem quaisquer indenizações por parte da Municipalidade, a que título for.

Art. 6º. No caso da cessionária pretender a transferência do imóvel objeto desta concessão de direito real de uso a terceiros, somente poderá fazê-lo desde que mantidas as suas atividades originais e mediante prévia anuência da Prefeitura Municipal de Mococa, que poderá vetar a transferência, obtida por meio de Lei Complementar que a autorize.

Parágrafo único. O imóvel objeto desta concessão de direito real de uso não poderá ser oferecido como garantia, de qualquer espécie, por parte da concessionária.

Art. 7º. Ao final do prazo da concessão de direito real de uso, previsto no parágrafo 1º do artigo 1º, o imóvel, com todas as construções e benfeitorias, de qualquer espécie, edificadas no local, reverterão pura e simplesmente ao patrimônio público municipal, sem quaisquer indenizações por parte da Municipalidade, a que título for.

Art. 8º. As despesas decorrentes da execução desta Lei Complementar correrão por conta da cessionária, inclusive as despesas com lavratura de escrituras, contratos, notificações, averbações em Cartórios, registros imobiliários e outras.

Art. 9º. Fica fazendo parte integrante desta Lei Complementar o desenho contendo a planta do local e o Memorial Descritivo do imóvel mencionado no artigo 1º.

Art. 10. Esta Lei Complementar entra em vigor na data de sua publicação, revogando-se as disposições em contrário, em especial os artigos 2º, 3º, 4º, 5º, 6º, 7º, 8º, 9º e 10 da Lei Complementar nº 170 de 08 de julho de 2004.”

Com base na referida lei foi lavrado o contrato de concessão de direito real de uso (cf. fls. 204/213, pt. 82.490/2008), sendo certo que o imóvel envolvido no negócio jurídico foi avaliado em R$ 2.411.983,23 (dois milhões quatrocentos e onze mil novecentos e oitenta e três reais e vinte e três centavos).

De outro lado, a Lei Municipal nº 3710, de 06 de junho de 2007 (cf. fls. 217 do pt. 82.490/2008), que, conforme respectiva rubrica, “Autoriza a transferência da administração e da mantença dos cursos mantidos pela Fundação Municipal de Ensino de Mococa ‘Antônio Carlos Massaro’, a outra Fundação de fim igual ou semelhante, observados os preceitos estatuídos na Lei Federal nº 8666, de 21 de junho de 1993 e suas alterações”, tem a seguinte redação:

“Art. 1º. Fica a Fundação Municipal de Ensino de Mococa ‘Antônio Carlos Massaro’ autorizada a transferir, de forma integral, sua administração, seus direitos e seus deveres, bem como a mantença de seus cursos, à outra Fundação de fim igual ou semelhante, observados os preceitos estatuídos na Lei Federal nº 8666, de 21 de junho de 1993 e suas alterações.

Parágrafo único. Para implantação da transferência de que trata o caput deste artigo, poderá a Fundação Municipal de Ensino de Mococa ‘Antônio Carlos Massaro’, através de seu representante legal, firmar documentos, termos e outros, visando os fins desta Lei.

Art. 2º. Terminada a implantação da transferência, o Executivo Municipal, nos termos do art. 69, do Código Civil Brasileiro, encaminhará ao Poder Legislativo Municipal, Projeto de lei tratando da extinção da Fundação Municipal de Ensino de Mococa ‘Antônio Carlos Massaro’, assim, como a destinação de seus bens e patrimônio constituído.

Art. 3º. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação, revoga-se (sic) as disposições em contrário.”

Entretanto, os dois diplomas são verticalmente incompatíveis com nossa sistemática constitucional.

2)Violação da separação de poderes.

A Lei Complementar Municipal nº 206, de 29 de dezembro de 2005, bem como a Lei Municipal nº 3710, de 06 de junho de 2007, violaram a regra da separação de poderes, prevista no art. 5º e §§, e art. 47, II e XIV da Constituição do Estado.

A concessão de uso, como anota Hely Lopes Meirelles é “contrato administrativo pelo qual o Poder Público atribui a utilização exclusiva de um bem de seu domínio particular, para que o explore segundo sua destinação específica. O que caracteriza a concessão de uso e a distingue dos demais institutos assemelhados – autorização e permissão de uso – é o caráter contratual e estável da outorga do uso do bem público ao particular, para que o utilize com exclusividade e nas condições convencionadas com a Administração” (Direito Administrativo Brasileiro, 33ª ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 529).

A doutrina, de outro lado, indica a necessidade de autorização legislativa como um dos pré-requisitos para a concessão (Cf. Hely Lopes Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro, cit., p. 529; Diógenes Gasparini, Direito Administrativo, 3ªed., São Paulo, Saraiva, 1993, p. 531; Odete Medauar, Direito Administrativo Moderno, 5ªed., São Paulo, RT, 2001, p. 294; entre outros), exigência essa que se faz presente também no art.19, V da Constituição do Estado, aplicável aos Municípios por força do art. 144 da mesma Carta.

Entretanto, no caso em exame, a lei foi além de simplesmente autorizar a concessão do uso do imóvel, indicando o respectivo destinatário.

Ainda que a iniciativa legislativa tenha partido do Chefe do Executivo, quando da apresentação do projeto de lei que culminou sendo convertido na Lei Complementar Municipal nº 206/2005, o fato é que o ato normativo significa, na prática, violação da regra da separação de poderes, por delegação de atribuições do Executivo ao Legislativo, expressamente proibida no § 1º do art. 5º da Constituição Paulista. Escolher o destinatário da concessão, previamente autorizada por ato legislativo, é decisão que cabe exclusivamente ao Poder Executivo. Ao indicá-lo, a lei assume feição de ato administrativo, embora se trate do ponto de vista meramente formal, de ato normativo. Daí a quebra da regra da separação de poderes.

É ponto pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

O legislador municipal, na hipótese analisada, praticou verdadeiro ato materialmente administrativo, ao escolher o destinatário da concessão de uso do imóvel público. E o fato de se tratar de projeto de lei de iniciativa do Executivo não altera tal quadro, dada a vedação à delegação de poder do Executivo ao Legislativo.

Referido diploma, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art. 2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15ªed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.

Esse E. Tribunal de Justiça tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais de iniciativa parlamentar que interferem na gestão administrativa, com amparo na violação da regra da separação de poderes. Confiram-se os seguintes julgados: ADI 149.044-0/8-00, rel. des. Armando Toledo, j.20.02.2008, v.u.; ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j. 05.03.2008; ADI 142.496-0/9-00, rel. Junqueira Sangirardi, j. 07.05.08, v.u.; ADI ° 154.411-0/5-00, rel. Walter Swensson, j.02.04.08, v.u..

Essa mesma linha de raciocínio aplica-se à inconstitucionalidade reconhecível na Lei Municipal nº 3710/2007.

Tal ato normativo simplesmente autorizou a Fundação Municipal de Ensino de Mococa a “transferir, de forma integral, sua administração, seus direitos e seus deveres, bem como a mantença de seus cursos, à outra Fundação de fim igual ou semelhante” (cf. art. 1º da Lei Municipal nº 3710/2007.

A Fundação Municipal de Ensino de Mococa foi instituída por lei e integra a Administração Indireta do Município.

A despeito da discussão sobre natureza jurídica da Fundação instituída pelo Poder Público (cf. Hely Lopes Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro, cit., p. 360/361; e Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito Administrativo, cit., p. 426 e ss; Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, 25ª ed., São Paulo, Malheiros, 2008, p. 183/185), e independentemente da posição que se adote a propósito, não se pode negar que, uma vez criada a entidade, reveste-se ela de características inerentes à sua condição de entidade integrante da Administração Indireta.

Tanto é assim que o art. 5º, IV do Decreto-lei nº 200/67, com a redação que lhe foi dada pela Lei Federal nº 7596/87, conceituou Fundação Pública “a entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, criada em virtude de autorização legislativa, para o desenvolvimento de atividades que não exijam execução por órgãos ou entidades de direito público, com autonomia administrativa, patrimônio próprio gerido pelos respectivos órgãos de direção, e funcionamento custeado por recursos da União e de outras fontes”.

Em função disso, afirma Maria Sylvia Zanella Di Pietro que as fundações públicas “embora definidas como pessoas de direito privado, passaram a ter, na esfera federal, a partir da Lei nº 7596/87, natureza jurídica predominante pública.” (Direito Administrativo, cit., p. 432).

Desse modo, integrando o Poder Executivo, deve o legislador observar, com relação a elas, a regra da separação dos poderes, prevista no art. 5º e §§, bem como no art. 47, II e XIV da Constituição Paulista.

Em outras palavras, considerando que a Fundação integra a Administração Pública Indireta, seus atos de gestão devem ser praticados sem que para isso seja necessária a edição de lei contendo autorizações específicas.

Dessa forma, a Lei Municipal nº 3710/2007, mesmo partindo de iniciativa do Poder Executivo, ao autorizar a transferência de direito e deveres, bem como a mantença de seus cursos, feriu o princípio da separação de poderes. A lei autorizou, em outras palavras, aquilo que já cabia à Fundação realizar naturalmente, por meio de seus órgãos gestores, sem a necessidade de disposição legislativa específica para tanto.

3)Violação do princípio da impessoalidade.

Não bastasse isso, a Lei Complementar nº 206/2005 violou o princípio da impessoalidade, previsto no art. 111 da Constituição do Estado, aplicável ao Município por força do art. 144 da mesma Carta, na medida em que indicou o beneficiário do ato de concessão de direito real de uso do bem imóvel nela discriminado.

Note-se que ao indicar o beneficiário da concessão, o ato normativo não deixou qualquer espaço para decisão por parte da Administração, violando a impessoalidade que deve imperar na esfera da atividade legislativa.

A respeito do princípio da impessoalidade, anota Edmir Netto de Araújo que seu sentido é o da “imparcialidade, significando que a Administração não pode agir motivada por interesses particulares, interesses políticos, de grupos, por animosidades ou simpatias pessoais, políticas, ideológicas, etc., implicando sempre em regra de agir objetiva para o administrador” (Curso de direito Administrativo, São Paulo, Saraiva, 2005, p. 56).

Ou então, como pontua Maria Sylvia Zanella Di Pietro, “o princípio estaria relacionado com a finalidade pública que deve nortear toda a atividade administrativa. Significa que a Administração não pode atuar com vistas a prejudicar ou beneficiar pessoas determinadas, uma vez que é sempre o interesse público que tem que nortear o seu comportamento” (Direito administrativo, 19ª ed., São Paulo, Atlas, 2006, p. 85).

É assente no E. STF, ser imperativo o respeito aos princípios constitucionais da Administração, tendo ficado assentado que:

"A Administração Pública é norteada por princípios conducentes à segurança jurídica — da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência. A variação de enfoques, seja qual for a justificativa, não se coaduna com os citados princípios, sob pena de grassar a insegurança." (MS 24.872, voto do Min. Marco Aurélio, julgamento em 30-6-05, DJ de 30-9-05).

E mutatis mutandis, os princípios constitucionais da Administração Pública são aplicáveis ao Poder Legislativo quando da elaboração de leis. Não é aceitável que determinado diploma legal estabeleça cláusula que crie favorecimento a particular determinado.

Daí a inconstitucionalidade da regra, tomando como parâmetro o art. 111 da Constituição do Estado.

4)Violação do princípio da licitação.   

Houve também, quanto à Lei Complementar nº 206/2005, violação ao princípio constitucional da licitação, que decorre do art. 117 da Constituição do Estado, aplicável aos Municípios por força do art. 144 da mesma Carta.

O art. 117 da Constituição Paulista, que reproduz o art. 37 XXI da Constituição da República, é bem verdade, faz ressalva quanto à possibilidade de não realização de licitação, “nos casos especificados na legislação”.

Entretanto, cabendo à União legislar a respeito de regras gerais sobre licitação e contratos da Administração Pública direta e indireta (art. 22 XXVII da CR/88), regula a matéria a Lei nº 8.666/93.

As hipóteses de dispensa e inexigibilidade de licitação, como é cediço, estão previstas no art. 24 e no art. 25 da Lei nº 8.666/93, e, quando presentes, exigem a justificação formal, em processo administrativo, nos termos do art. 26 da referida lei, a partir de hipóteses de dispensa ou inexigibilidade previstas na própria Lei de Licitações.

Previsões contidas em outros diplomas, estaduais ou municipais, no sentido da dispensa ou inexigibilidade da licitação, calcados, por exemplo, no “interesse público”, ou na “existência de destinatário certo” (como sustentou a Municipalidade nas informações que prestou, invocando o art. 95, § 1º da Lei Orgânica Municipal), só podem ser compreendidas e interpretadas, de forma sistemática, em conjunto com os dispositivos da Lei nº 8.666/93 que contemplam os casos de dispensa ou inexigibilidade do certame. São apenas essas hipóteses, da lei federal, que podem configurar o “interesse público”, para fins de não realização da licitação.

Saliente-se: não se trata, no caso, sequer de sustentar a inconstitucionalidade de dispositivo da legislação municipal que sugere maior dimensão para os casos de não realização de licitação, mas apenas de interpretá-lo de forma sistemática, em conformidade com a matriz da legislação federal que indica, taxativamente, quais os casos em que o certamente não precisa ser realizado.

Contrario sensu, ao simplesmente determinar a realização de contrato de concessão com determinada beneficiária, criando uma hipótese sui generis de dispensa, o legislador fere diretamente o próprio princípio da licitação, assente no ordenamento constitucional.

É o que anota José Afonso da Silva, ao afirmar que “o princípio da licitação significa que essas contratações ficam sujeitas, como regra, ao procedimento de seleção de propostas mais vantajosas para a Administração Pública. Constitui um princípio instrumental de realização dos princípios da moralidade administrativa e do tratamento isonômico dos eventuais contratantes com o Poder Público” (Curso de Direito Constitucional Positivo, 28ª ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 672).

Anote-se que o E. STF tem reconhecido a inconstitucionalidade de leis que ferem o princípio da impessoalidade, que deve imperar na atividade estatal. Confiram-se os seguintes precedentes: ADI 3.853, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 12-9-07, DJ de 26-10-07; ADI 1267/AP, Rel. Min. Eros Grau, j. 30/09/2004, DJ 10-08-2006; ADI 100/MG, Rel. Min. Ellen Grace, j. 09/09/2004, DJ 01-10-2004.

5)Efeito repristinatório e inconstitucionalidade por arrastamento.

Caso seja acolhida, como se espera, a alegação de inconstitucionalidade da Lei Complementar Municipal nº 206/2005, ocorrerá a repristinação dos art. 2º, 3º, 4º, 5º, 6º, 7º, 8º, 9º e 10 da Lei Complementar nº 170, de 08 de julho de 2004, de Mococa (cf. fls. 367/371).

Ocorre, entretanto, que parte dos mencionados dispositivos, tratando de concessão de direito real de uso da mesma área indicada na Lei Complementar Municipal nº 206/2005, ostenta os mesmos vícios apresentados por esta última.

Para que não haja qualquer dúvida, é oportuno transcrever os dispositivos da Lei Complementar Municipal nº 170, de 08 de julho de 2004 (fls. 367/371 do pt. nº 82.490/08) que “Autoriza o desmembramento de área institucional municipal, o desafetamento (sic) e a cessão de direito real de uso da área remanescente consubstanciada em imóvel público localizado no Conjunto Habitacional ‘Dr. Gilberto Rosseti’, à entidade de ensino Sociedade de Ensino Superior de Mococa Ltda, para os fins que especifica e dá outras providências”, que serão repristinados e são igualmente incompatíveis com a nossa ordem constitucional:

“Lei Complementar nº 170/2004

(...)

Art. 2º. Fica o Poder Executivo Municipal autorizado a alienar, por concessão de direito real de uso com encargos, a área municipal localizada no Conjunto Habitacional ‘Dr. Gilberto Rosseti’, denominada ‘Área A’, remanescente da Área institucional ‘N’, bem como a edificação nela existente, abaixo descritas, para a entidade de ensino denominada Sociedade de Ensino Superior de Mococa Ltda:

(...)

§ 1º. A concessão de direito real de uso a que se refere o caput deste artigo será feita por 30 (trinta) anos, renováveis por igual período, e para o fim específico de ser implantado no local o campus universitário da cessionária, objetivando a criação, instalação e manutenção de cursos superiores de graduação, na forma como consta da Carta de Intenções protocolizada junto à Prefeitura Municipal de Mococa, ficando expressamente proibida a criação, instalação e manutenção de cursos superiores de graduação já existentes no Município.

§ 2º. A cessionária se obriga a implantar, em uma primeira etapa e de acordo com o cronograma de instalação de cursos superiores de que trata o artigo 3º, os seguintes cursos superiores de graduação, sem prejuízo de outros objetivos:

I – Curso de Fisioterapia;

II – Curso de Enfermagem;

III – Curso de Administração com habilitações em Comércio Exterior e Agronegócios;

IV – Curso de Propaganda e Marketing;

V – Cursos Tecnológicos em Informática, Web Designer e Gerenciamento de Redes de Informação;

VI – Curso de Medicina Veterinária;

VII – Curso de Agronomia.

§ 3º. A cessionária fica obrigada a conceder a alunos carentes, por ela selecionados, para cada curso superior instituído, durante todo o período que a mesma desenvolver suas atividades, 2 (duas) bolsas de estudos, totalmente gratuitas.

Art. 3º. A cessionária terá prazo de 06 (seis) meses após a publicação desta Lei Complementar para a apresentação do projeto definitivo de construção, cronograma de construção e projeto de cronograma de instalação dos cursos superiores, tendo 24 (vinte e quatro) meses para a conclusão da obra, a partir da apresentação do mencionado projeto.

Parágrafo único. A Prefeitura Municipal de Mococa poderá prorrogar o prazo total para a conclusão da obra, mencionado no caput deste artigo, pelo período complementar de até 24 (vinte e quatro) meses, desde que a cessionária apresente justificativa técnica solicitando a prorrogação, consubstanciando-a com dados, relatórios, análises e outros subsídios que julgar válidos, bem como a redefinição dos cronogramas de prazos que serão implementados.

Art. 4º. No instrumento de concessão de direito real de uso deverão constar os prazos para o término da construção, bem como o do início das atividades, ressalvando-se, inclusive, a destinação única e exclusiva da área e os encargos de contrapartida obrigacional aos quais a cessionária se submete.

Art. 5º. No imóvel objeto desta concessão de direito real de uso, a cessionária não poderá exercer atividades diversas das propostas em seu objeto social, sem a prévia anuência da Prefeitura Municipal de Mococa, mediante expressa autorização legal.

Art. 6º. No caso de não cumprimento do disposto nesta Lei Complementar ou das disposições constantes no projeto definitivo de construção, cronograma de construção e projeto de cronograma de instalação dos cursos superiores, por parte da cessionária, ocorrerá a reversão pura e simples da área recebida em concessão de direito real de uso, em favor do patrimônio público bem como as respectivas construções e benfeitorias edificadas no local, sem quaisquer indenizações por parte da Municipalidade, a que título for.

Art. 7º. No caso da cessionária pretender a transferência do imóvel objeto desta concessão de direito real de uso a terceiros, somente poderá fazê-lo desde que mantidas as suas atividades originais e mediante prévia anuência da Prefeitura Municipal de Mococa, que poderá vetar a transferência, obtida por meio de Lei Complementar que a autorize.

Parágrafo único. O imóvel objeto desta concessão de direito real de uso não poderá ser oferecido como garantia, de qualquer espécie, por parte da cessionária.

Art. 8º. As despesas decorrentes da execução desta Lei Complementar correrão por conta da cessionária, inclusive as despesas com lavratura de escrituras, contratos, notificações, averbações em Cartórios, registros imobiliários e outras.”

Como se sabe, o reconhecimento da inconstitucionalidade da lei produzirá o efeito repristinatório com relação à norma que vigorava anteriormente à impugnada na ação direta.

Como anotou o Min. Celso de Mello, “A declaração de inconstitucionalidade "in abstracto", considerado o efeito repristinatório que lhe é inerente (RTJ 120/64 - RTJ 194/504-505 - ADI 2.867/ES, v.g.), importa em restauração das normas estatais revogadas pelo diploma objeto do processo de controle normativo abstrato. É que a lei declarada inconstitucional, por incidir em absoluta desvalia jurídica (RTJ 146/461-462), não pode gerar quaisquer efeitos no plano do direito, nem mesmo o de provocar a própria revogação dos diplomas normativos a ela anteriores. Lei inconstitucional, porque inválida (RTJ 102/671), sequer possui eficácia derrogatória. A decisão do Supremo Tribunal Federal que declara, em sede de fiscalização abstrata, a inconstitucionalidade de determinado diploma normativo tem o condão de provocar a repristinação dos atos estatais anteriores que foram revogados pela lei proclamada inconstitucional”. (ADI 3148/TO, rel. Min. Celso de Mello, j.13/12/2006, Tribunal Pleno, DJe-112, DIVULG 27-09-2007, PUBLIC 28-09-2007, DJ 28-09-2007PP-00026, EMENT VOL-02291-02 PP-00249).

Ocorre que, no caso em exame, a norma repristinada padece do mesmo vício que a norma que, como se espera, será declarada inconstitucional.

É necessária, desse modo, a declaração da inconstitucionalidade, por arrastamento, do ato normativo repristinado, sob pena de ineficácia e inutilidade da procedência desta ação direta.

Tal solução é possível, sempre que (a) o reconhecimento da inconstitucionalidade de determinado dispositivo legal torna despidos de eficácia e utilidade concreta, outros preceitos do mesmo diploma que não tenham sido impugnados, e (b) nos casos em que o efeito repristinatório restabelece dispositivos já revogados pela lei viciada que ostentem o mesmo vício.

Para tanto desnecessário se mostraria pedido expresso do autor. Nem há suposto limite relacionado à estabilização da demanda (art. 264 do CPC). Raciocínio contrário importaria trazer para o processo objetivo regras procedimentais do processo individual, que àquele não se aplicam, pela absoluta diversidade quanto à sua natureza e função.      Essa solução tem sido reconhecida pacificamente pelo E. STF (v.g.: ADI 1144/RS, rel. Min. EROS GRAU, j.16/08/2006, T. Pleno; DJ 08-09-2006 PP-00033, EMENT VOL-02246-01 PP-00057, LEXSTF v. 28, n. 334, 2006, p. 20-26; ADI 3255/PA, rel.Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, j.22/06/2006, T. Pleno, DJe-157  DIVULG 06-12-2007, DJ 07-12-2007 PP-00018,  EMENT VOL-02302-01,  PP-00127; ADI 3645/PR, rel.  Min. ELLEN GRACIE, j. 31/05/2006, T. Pleno, DJ 01-09-2006 PP-00016, EMENT VOL-02245-02 PP-00371, LEXSTF v. 28, n. 334, 2006, p. 75-91), não surgindo qualquer óbice em razão da não impugnação, na inicial, dos dispositivos repristinados.

Note-se que a declaração da inconstitucionalidade de preceitos não mencionados expressamente pelo autor é viável em razão da natureza objetiva do processo de controle abstrato de normas, em que não se identificam réus ou partes contrárias, mas exclusivamente o interesse veiculado, pelo requerente, no sentido da preservação da segurança jurídica (cf. ADI-ED 2982/CE, rel. Min. GILMAR MENDES, j.02/08/2006, T. Pleno, DJ 22-09-2006 PP-00029, EMENT VOL-02248-01 PP-00171, LEXSTF v. 28, n. 335, 2006, p. 53-59).

Entretanto, para que não reste qualquer dúvida, fica formulado expressamente o pedido sucessivo, no sentido de que, acolhida a ação direta, seja também reconhecida a inconstitucionalidade do dispositivo que será repristinado.

6)Da liminar.

Estão presentes os pressupostos para a concessão da liminar, determinando-se a suspensão dos atos normativos hostilizados.

A razoável fundamentação jurídica evidencia-se pelos motivos que lastreiam a propositura desta ação direta, antes declinados.

Quanto ao perigo da demora, evidencia-se pelo fato de que, a prevalecer, por ora, a presunção de constitucionalidade das leis glosadas nesta ação direta, atos materiais serão realizados no sentido de concretização de suas previsões normativas, gerando situações cuja reversão ao satatus quo ante, futuramente, será de considerável grau de dificuldade.

As situações consolidadas, muitas vezes, criam espaço para argumentação no sentido da improcedência da ação, ou mesmo afastamento de seus efeitos concretos, desprestigiando, em última análise, o próprio sistema de controle concentrado de constitucionalidade, bem como esvaziando a autoridade da Corte Constitucional, seja no plano federal, como no estadual.

De resto, ainda que não houvesse essa singular situação de risco, restaria, ao menos, a excepcional conveniência da medida. Com efeito, no contexto das ações diretas e da outorga de provimentos cautelares para defesa da Constituição, o juízo de conveniência é um critério relevante, que vem condicionando os pronunciamentos mais recentes do Supremo Tribunal Federal, preordenados à suspensão liminar de leis aparentemente inconstitucionais (cf. ADIN-MC 125, j. 15.2.90, DJU de 4.5.90, p. 3.693, rel. Min. Celso de Mello; ADIN-MC 568, RTJ 138/64; ADIN-MC 493, RTJ 142/52; ADIN-MC 540, DJU de 25.9.92, p. 16.182).

Requer-se, destarte, a concessão da liminar, determinando-se a suspensão da eficácia da Lei Complementar Municipal nº 206, de 29 de dezembro de 2005, e da Lei Municipal nº 3710, de 06 de junho de 2007, ambas de Mococa, até o julgamento definitivo desta ação.

7)Conclusão e pedido.

Diante de todo o exposto, aguarda-se o recebimento e processamento da presente ação declaratória, para que ao final seja ela julgada procedente, reconhecendo-se a inconstitucionalidade da Lei Complementar Municipal nº 206, de 29 de dezembro de 2005, e da Lei Municipal nº 3710, de 06 de junho de 2007, ambas de Mococa.

Requer-se ainda sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Senhor Prefeito Municipal de Mococa, bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para manifestar-se sobre o ato normativo impugnado.

Posteriormente, aguarda-se vista para fins de manifestação final.

São Paulo, 20 de março de 2009.

 

        Fernando Grella Vieira

        Procurador-Geral de Justiça

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Protocolado nº  82.490/08 - MP

Interessado:  Conselho Estadual de Educação – Gabinete da Presidência

Assunto: Inconstitucionalidade da Lei Complementar Municipal nº 206, de 29 de dezembro de 2005, e da Lei Municipal nº 3710, de 06 de junho de 2007, ambas de Mococa.

 

 

 

 

 

1.     Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade, em face da Lei Complementar Municipal nº 206, de 29 de dezembro de 2005, e da Lei Municipal nº 3710, de 06 de junho de 2007, ambas de Mococa, junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

2.     Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.

 

 

                   São Paulo, 20 de março de 2009.

 

 

 

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

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