EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO E. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Protocolado nº 87.353/08

Assunto: Inconstitucionalidade da Lei nº 1.059, de 24 de março de 2008, do município de Avaré.

 

Ementa: Lei de iniciativa de Vereador que proíbe a instalação de portas giratórias em instituições bancárias. Ato normativo editado com fundamento na competência suplementar do Município. Faculdade, entretanto, que não pode contradizer frontalmente a ordem nacional, sendo que a União editou lei sobre o assunto, permitindo a instalação de referido dispositivo. Ordem pública preservada. Proibição que malfere a razoabilidade e proporcionalidade. Concorrência da competência legislativa privativa de um ente (União) e da competência suplementar de outro (Município). Coexistência harmônica entre ambas. Inconstitucionalidade reconhecida. Ação Procedente.

         

O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, inciso VI da Lei Complementar Estadual nº 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo), em conformidade com o disposto no art.125, § 2º e art. 129, inciso IV da Constituição Federal, e ainda art. 74, inciso VI e art. 90, inciso III da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado, vem, respeitosamente, perante esse Egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE da Lei nº 1.059, de 24 de março de 2008, do município de Avaré ,  pelos fundamentos a seguir expostos.

1)   Do ato normativo impugnado

A Lei nº 1.059, de 24 de março de 2008, do município de Avaré, dispõe sobre a proibição de uso de portas giratórias e detector de metais para acesso ao interior de bancos e demais instituições financeiras, a saber:

Artigo 1º - Fica estabelecida a proibição do uso de portas giratórias em vidro ou qualquer outra modalidade de produto, bem como a instalação de detector de metais, no acesso a bancos comerciais, estaduais e outros estabelecimentos financeiros no município de Avaré.

Artigo 2º - As instituições financeiras terão prazo de 120 (cento e vinte) dias para se adaptarem à nova legislação, bem como buscar mecanismos de segurança que substituam as portas giratórias.

Artigo 3º - Ficam proibidos quaisquer mecanismos que inibam, constranjam, humilhem e desrespeitem a pessoa humana.

 Artigo 4º - Os agentes de segurança devidamente contratados para trabalharem nas agências bancárias devem, impreterivelmente, possuir treinamento adequado com empresas profissionais e qualificadas do ramo.

Artigo 5º -  As instituições que desobedecerem esta lei ficam sujeitas à multa de 5.000 UFMAs, sendo cobrada em dobro em caso de reincidência.

Artigo 6º -  despesas decorrentes da execução desta lei correrão por conta das dotações orçamentárias próprias, suplementadas se necessário.

Artigo 7º - Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação.

Contudo, é possível afirmar que a Lei impugnada ofende frontalmente os seguintes dispositivos da Constituição do Estado de São Paulo:

Artigo 1º - O Estado de São Paulo, integrante da República Federativa do Brasil, exerce as competências que não lhe são vedadas pela Constituição Federal.

Artigo 111 - A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência.

Artigo 144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

 É o que será demonstrado a seguir.

2)Violação de princípio constitucional estabelecido: o princípio federativo.

O ato normativo em epígrafe é verticalmente incompatível com o art. 144 da Constituição Paulista, que tem a seguinte redação:

“Art.144. Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

Um dos princípios constitucionais estabelecidos é o denominado princípio federativo, que está assentado nos arts. 1º e 18 da Constituição da República, bem como no art. 1º da Constituição Paulista.

Como é cediço, a Constituição da República estabelece a repartição constitucional de competências entre as diversas esferas da federação brasileira. E a repartição de competências entre os entes federados é o corolário mais evidente do princípio federativo.

Referindo-se aos princípios fundamentais da Constituição, que revelam as opções políticas essenciais do Estado, José Afonso da Silva aponta que entre eles podem ser inseridos, entre outros, “os princípios relativos à existência, forma, estrutura e tipo de Estado: República Federativa do Brasil, soberania, Estado Democrático de Direito (art. 1º)” (Curso de direito constitucional positivo, 13ªed., ed., São Paulo, Malheiros, 1997, p.96, g.n.).

Um dos aspectos de maior relevo, e que representa a dimensão e alcance do princípio do pacto federativo, adotado pelo Constituinte em 1988, é justamente o que se assenta nos critérios adotados pela Constituição Brasileira para a repartição de competências entre os entes federativos, bem como a fixação da autonomia, e dos respectivos limites, dos Estados, Distrito Federal e Municípios, em relação à União.

Anota a propósito Fernanda Dias Menezes de Almeida que “avulta, portanto, sob esse ângulo, a importância da repartição de competências, já que a decisão tomada a respeito é que condiciona a feição do Estado Federal, determinando maior ou menor grau de descentralização.” Daí a afirmação de doutrinadores no sentido de que a repartição de competências é “’a chave da estrutura do poder federal’, ‘o elemento essencial da construção federal’, ‘a grande questão do federalismo’, ‘o problema típico do Estado Federal’” (Competências na Constituição Federal de 1988, 4ªed., São Paulo, Atlas, 2007, p.19/20).

Não pairaria qualquer dúvida a respeito da inconstitucionalidade de proposta de emenda constitucional ou de lei que sugerisse, por exemplo, a extinção da própria Federação: a Constituição veda, como visto, proposta de emenda “tendente a abolir”, entre outros, “a forma federativa de Estado” (art. 60 § 4º inciso I da CR/88).

A preservação do princípio federativo tem contado com a anuência do E. STF, pois como destacado em julgado relatado pelo Min. Celso de Mello:

"(...) a idéia de Federação — que tem, na autonomia dos Estados-membros, um de seus cornerstones — revela-se elemento cujo sentido de fundamentalidade a torna imune, em sede de revisão constitucional, à própria ação reformadora do Congresso Nacional, por representar categoria política inalcançável, até mesmo, pelo exercício do poder constituinte derivado (CF, art. 60, § 4º, I)." (HC 80.511, voto do Min. Celso de Mello, julgamento em 21-8-01, DJ de 14-9-01).

Por essa linha de raciocínio, pode-se também afirmar que a Lei Municipal que regula matéria cuja competência é do legislador federal e do estadual está, ao desrespeitar a repartição constitucional de competências, a violar o princípio federativo.

A sistemática constitucional relativa à segurança indica caber aos Estados, e não aos Municípios, a definição e a implementação da política governamental na matéria (art. 144 §§ 4º ao 6º da CR/88).

Desse modo, o legislador municipal, ao vedar a instalação de portas giratórias em instituições bancárias no Município, invadiu matéria reservada ao Estado. Isso significa usurpação de competência constitucional, e em última análise, violação do próprio princípio federativo.

Cumpre recordar, com a abalizada lição de Alexandre de Moraes, que “o princípio geral que norteia a repartição de competência entre as entidades componentes do Estado Federal é o da predominância do interesse (...), à União caberá aquelas matérias e questões de predominância do interesse geral, ao passo que aos Estados referem-se às matérias de predominante interesse regional e aos municípios concernem os assuntos de interesse local” (Direito constitucional, 19ª ed., São Paulo, Atlas, 2006, p.270, g.n.).

Decididamente, não há, na hipótese, predominância do interesse local, pressuposto que seria indispensável para autorizar o legislador municipal a editar ato normativo a respeito da matéria em questão.

Relevante notar que quando do julgamento da ADI 130.227.0/0-00 em 21.08.07, rel. des. Renato Nalini, esse E. Tribunal de Justiça acolheu a tese acima aventada (possibilidade de declaração de inconstitucionalidade de lei municipal por violação do princípio da repartição de competências estabelecido pela Constituição Federal), sendo relevante trazer excerto de voto do i. Desembargador Walter de Almeida Guilherme, imprescindível para a elucidação da questão:

“(...) Ora, um dos princípios da Constituição Federal – e de capital importância – é o princípio federativo, que se expressa, no Título I, denominado ‘Dos Princípios Fundamentais’, logo no art.1º: ‘A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito...’.

Sendo a organização federativa do Estado brasileiro um princípio fundamental da República do Brasil, e constituindo elemento essencial dessa forma de estado a distribuição de competência legislativa dos entes federados, inescapável a conclusão de ser essa discriminação de competência um princípio estabelecido na Constituição Federal.

Assim, quando o referido art.144 ordena que os Municípios, ao se organizarem, devem atender os princípios da Constituição Federal, fica claro que se estes editam lei municipal fora dos parâmetros de sua competência legislativa, invadindo a esfera de competência legislativa da União, não estão obedecendo ao princípio federativo, e, pois, afrontando estão o art.144 da Constituição do Estado (...)” (trecho do voto do i. des. Walter de Almeida Guilherme, no julgamento da ADI 130.227.0/0-00).

Assim, por violação de princípio constitucional estabelecido – princípio federativo -, demonstrando vertical incompatibilidade com o art. 144 da Constituição Paulista, deve ser reconhecida a inconstitucionalidade do ato normativo impugnado.

A União disciplinou o tema, criando inclusive sistema próprio de penalidades, indicando órgão apto a fiscalizar as instituições financeiras, no particular, a Lei n. 7.102, de 20 de junho de 1983, a saber:

“Art. 1º É vedado o funcionamento de qualquer estabelecimento financeiro onde haja guarda de valores ou movimentação de numerário, que não possua sistema de segurança com parecer favorável à sua aprovação, elaborado pelo Ministério da Justiça, na forma desta lei. (Redação dada pela Lei 9.017, de 1995).  

 Parágrafo único - Os estabelecimentos financeiros referidos neste artigo compreendem bancos oficiais ou privados, caixas econômicas, sociedades de crédito, associações de poupanças, suas agências, subagências e seções.

Art. 2º - O sistema de segurança referido no artigo anterior inclui pessoas adequadamente preparadas, assim chamadas vigilantes; alarme capaz de permitir, com segurança, comunicação entre o  estabelecimento financeiro e outro  da  mesma instituição, empresa de vigilância ou órgão policial mais próximo; e, pelo menos, mais um dos seguintes dispositivos:

I - equipamentos elétricos, eletrônicos e de filmagens que possibilitem a identificação dos assaltantes;

II - artefatos que retardem a ação dos criminosos, permitindo sua perseguição, identificação ou captura; e

III - cabina blindada com permanência ininterrupta de vigilante durante o expediente para o público e enquanto houver movimentação de numerário no interior do estabelecimento.

 Art. 6º Além das atribuições previstas no art. 20,  compete   ao Ministério da Justiça: (Redação dada pela Lei 9.017, de 1995)

I - fiscalizar os estabelecimentos financeiros quanto ao cumprimento desta lei; (Redação dada pela Lei 9.017, de 1995).

II - encaminhar parecer conclusivo quanto ao prévio cumprimento desta lei, pelo estabelecimento financeiro, à autoridade que autoriza o seu funcionamento; (Redação dada pela Lei 9.017, de 1995).

 III - aplicar aos estabelecimentos financeiros as penalidades previstas nesta lei.

Parágrafo único. Para a execução da competência prevista no inciso I, o Ministério da Justiça poderá celebrar convênio com as Secretarias de Segurança Pública dos respectivos Estados e Distrito Federal. (Redação dada pela Lei 9.017, de 1995)

Art. 7º O estabelecimento financeiro que infringir disposição desta lei ficará sujeito às seguintes penalidades, conforme a gravidade da infração e levando-se em conta a reincidência e a condição econômica do infrator: (Redação dada pela Lei 9.017, de 1995):

I - advertência; (Redação dada pela Lei 9.017, de 1995)

II - multa, de mil a vinte mil Ufirs; (Redação dada pela Lei 9.017, de 1995)

III - interdição do estabelecimento. (Redação dada pela Lei 9.017, de 1995).”

          Curioso o caso das instituições bancárias situados em Avaré; escolherão entre cumprir a norma nacional, e sujeitar-se à penalidade municipal, ou cumprir  os desígnios da lei  local, sujeitando-se à  penalidade aplicada pelo Ministério da Justiça (através de   seus órgãos, especialmente  DPF).

E a disciplina da segurança das instituições bancárias, que recebem milhares de usuários diariamente, vai muito além de mera legislação sobre posturas municipais, insere-se no conceito  de   ordem pública  cuja  garantia é função da política de segurança pública

O Município de Avaré, portanto, não tem competência constitucional para legislar sobre o tema, salvo a competência suplementar, mas eventual lei sua não pode ser menos restritiva que  as leis nacionais e estaduais. O Município, ao invadir tema sobre o qual não dispõe de competência constitucional ampla, malferiu o princípio do Estado federal. 

 REINHOLD ZIPPELIUS escreve sobre a estrutura de tal Estado:  "O Estado federal, é, pois também uma reunião de Estados, mas organizada de tal maneira que o seu conjunto constitui igualmente um Estado em si mesmo. Esse conjunto das respectivas competências estatais no Estado Federal acha-se de tal modo distribuído entre os órgãos do Estado Federal e os dos diferentes países que o constituem, que o problema da hierarquia dessas competências fica sempre como que suspenso e em aberto. Por via de regra, as atribuições exclusivas dos Estados são repartidas segundo o critério das diferentes matérias. Assim, serão geralmente cometidas aos órgãos centrais as questões da política externa e aos Estados membros as questões de segurança e ordem pública interior. A competência legislativa pode também pertencer, segundo a índole das matérias de que se trata, já aos órgãos do poder central, já aos dos diversos países ou Estados. Ambos podem, porém, colaborar também na feitura das leis, ficando aos órgãos centrais a promulgação e aos outros, os das regiões, a execução delas.’ Apud, Celso Bastos e Ives G. Martins, Comentários à Constituição do Brasil, p. 107, Saraiva, São Paulo, 3.º vol. Tomo I).

Ademais, a lei local malferiu o princípio da razoabilidade ou proporcionalidade (artigo 111, da Constituição do Estado), sendo que a proibição para evitar “constrangimentos e vexames”, segundo sua exposição de motivos, como se um simples perpassar por uma porta giratória bancária, tendo antes de se despir de  chaves,  moedas   etc,   possa   ser considerado constrangedor.

3. Conclusão e pedido

Por todo o exposto, evidencia-se a necessidade de reconhecimento da inconstitucionalidade da norma aqui apontada.

Assim, aguarda-se o recebimento e processamento da presente Ação Declaratória, para que ao final seja julgada procedente, reconhecendo-se a inconstitucionalidade da Lei nº 1.059, de 24 de março de 2008, do município de Avaré .

Requer-se ainda sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Prefeito Municipal, bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para se manifestar sobre o ato normativo impugnado.

Posteriormente, aguarda-se vista para fins de manifestação final.

São Paulo, 08 de fevereiro de 2010.

                

 

        Fernando Grella Vieira

        Procurador-Geral de Justiça

ef

 

 

 

 

 

Protocolado nº 87.353/08

Assunto: Inconstitucionalidade da Lei nº 1.059, de 24 de março de 2008, do município de Avaré

 

 

 

 

 

Distribua-se a inicial da ação direta de inconstitucionalidade ajuizada em face da Lei nº 1.059, de 24 de março de 2008, do município de Avaré; registre-se que a Lei n. 1.735, de 27 de agosto de 2008, do município de Jandira, expressamente revogou a Lei n. 1.697, de 25 de abril de 2008 (fls. 107), tornando-se desnecessária a propositura de ação direta em face de referido texto normativo

Oficie-se ao interessado, com o envio de cópias, comunicando-se a propositura da ação.

 

São Paulo, 08 de fevereiro de 2010.

 

 

        Fernando Grella Vieira

        Procurador-Geral de Justiça