Excelentíssimo Senhor Doutor Desembargador Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

 

Protocolado n. 99.790/2010

 

Assunto: Inconstitucionalidade da Lei nº 6.427, de 13 de julho de 2010, do Município de Mogi das Cruzes.

 

 

 

 

 

Ementa: Constitucional. Lei nº 6.427/10 (Ordenamento do Uso e Ocupação do Solo), do Município de Mogi das Cruzes. Processo legislativo. Inconstitucionalidade. 1. A lei de ordenamento do uso e ocupação do solo tem como elemento formal obrigatório, para atribuição de legitimidade substancial ao uso do poder, a participação popular em todas as suas fases, bem como o planejamento técnico. 2. Violação dos arts. 180, I , II e V, 181 e 191, Constituição Estadual.

 

 

 

          O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, VI da Lei Complementar Estadual n. 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo), em conformidade com o disposto no art.125, § 2º e art. 129, IV da Constituição Federal, e ainda no art. 74, VI e art. 90, III da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado, vem, respeitosamente, perante esse Egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE da Lei nº 6.427, de 13 de julho de 2010, do Município de Mogi das Cruzes, pelos fundamentos a seguir expostos:

 

I – O Ato Normativo Impugnado

 

1.                 A Lei nº 6.427, de 13 de julho de 2010 (fls. 460/466), do Município de Mogi das Cruzes, de autoria do Legislativo Municipal, resultado do Projeto de Lei 95/10 (fls. 81/84), dispõe sobre o ordenamento do uso e ocupação do solo no Município de Mogi das Cruzes, modificando parcialmente a Lei Municipal 2.683, de 16 de agosto de 1983 - Lei Orgânica - (fls. 189/270) e suas alterações.

2.                 A mencionada lei, no entanto, padece de incompatibilidade vertical com a Constituição do Estado de São Paulo, como adiante será demonstrado, na medida em que a aprovação do projeto que lhe deu origem ocorreu sem planejamento prévio consistente em estudos técnicos obrigatórios e oitiva da comunidade. 

3.                 No tocante à falta de participação popular, apesar da aprovação das “demandas para alteração da Lei Municipal 2.683/82” em reunião do Conselho Municipal (CONCIDADE), datada de 17 de junho de 2010 (fls. 136/152), a Câmara acabou por aprovar o posterior  Projeto de Lei 95/10, de 1º de julho de 2010 (fls. 81/84) e suas Emendas Aditivas, datadas de 29 e 30 de julho de 2010 (fls. 77 e 78), sem que estes tivessem sido submetidos ao crivo do Conselho Municipal ou de qualquer outra forma de participação da comunidade.

4.                 Assim, a análise do projeto de lei revela que, desde sua apresentação até sua conclusão no Poder Legislativo, não foi observada a participação da comunidade nem o prévio planejamento técnico, pois somente anteprojeto de lei foi aprovado.

5.                 Registre-se que no trâmite do projeto de lei foram apresentadas emendas – inovadoras – as quais, igualmente, não foram submetidas à apreciação da participação comunitária.

 

II – O parâmetro da fiscalização abstrata de constitucionalidade

 

6.                 O processo legislativo do referido diploma legal contraria frontalmente a Constituição do Estado de São Paulo, a qual está subordinada a produção normativa municipal por força do seguinte preceito, ante a previsão dos arts.1º, 18, 29 e 31 da Constituição Federal:

“Art. 144. Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição”.

7.                 A lei local impugnada contrasta os seguintes preceitos da Constituição Paulista:

“Art. 180. No estabelecimento de diretrizes e normas relativas ao desenvolvimento urbano, o Estado e os Municípios assegurarão:

I - o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e a garantia do bem-estar de seus habitantes;

II - a participação das respectivas entidades comunitárias no estudo, encaminhamento e solução dos problemas, plano, programas e projetos que lhes sejam concernentes;

(...)

V - a observância das normas urbanísticas, de segurança, higiene e qualidade de vida;

(...)

Art. 181. Lei municipal estabelecerá em conformidade com as diretrizes do plano diretor, normas sobre zoneamento, loteamento, parcelamento, uso e ocupação do solo, índices urbanísticos, proteção ambiental e demais limitações administrativas pertinentes.

(...)

Art. 191. O Estado e os Municípios providenciarão, com a participação da coletividade, a preservação, conservação, defesa, recuperação e melhoria do meio ambiente natural, artificial e do trabalho, atendidas as peculiaridades regionais e locais e em harmonia com o desenvolvimento social e econômico.”

8.                 Tais dispositivos resultaram violados. A Constituição Paulista exige que a disciplina urbanística da propriedade – inclusive o código de obras do Município – tenha compatibilidade com o plano diretor e que a legislação de uso e ocupação do solo urbano, assim como sua elaboração e modificação, seja precedida de estudos técnicos e de oitiva da comunidade, de maneira a impedir revisões pontuais que molestem o desenvolvimento sustentável, a função social da cidade, o interesse público, o planejamento urbano, o bem-estar dos habitantes e a qualidade de vida nas comunas.

9.                 O uso e ocupação do solo também tem como elemento formal obrigatório o planejamento prévio, em conformidade com o instrumento de maior importância urbanística, que é o Plano Diretor, não bastando o planejamento executado na elaboração deste.

10.               Não fosse assim, o Plano Diretor, que contém apenas princípios e disposições genéricas, seria verdadeiro “cheque em branco” em favor da administração pública e do legislador local. E essa interpretação colocaria por terra os princípios do planejamento e da participação, que inspiram as diretrizes constitucionais para a edição legislativa nessa matéria.

11.               Cabe salientar que a Constituição Federal, em seu art. 30, inciso VIII, prevê a competência dos Municípios para promover o “adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento, e da ocupação do solo urbano”, reforçando a necessidade de planejamento prévio para leis de cunho urbanístico.

12.               Nesse diapasão, este Egrégio Tribunal de Justiça já decidiu anteriormente pela imprescindibilidade do planejamento precedido de oitiva da comunidade e de estudos técnicos na produção da legislação urbanística:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - Lei n. 2.786/2005 de São José do Rio Pardo - Alteração sem plano diretor prévio de área rural em urbana - Hipótese em que não foi cumprida disposição do art. 180, II, da Constituição do Estado de São Paulo que determina a participação das entidades comunitárias no estudo da alteração aprovada pela lei - Ausência ademais de plano diretor - A participação de Vereadores na votação do projeto não supre a necessidade de que as entidades comunitárias se manifestem sobre o projeto - Clara ofensa ao art. 180, II, da Constituição Estadual - Ação julgada procedente.” (TJSP, ADIN 169.508.0/5, Comarca de São Paulo, Rel. Des. Aloísio de Toledo César, j. 18.02.2009, grifo nosso)

 “Ação direta de inconstitucionalidade - Leis n° 1.305 de 5 de setembro de 2001; 1.340 de 27 de fevereiro de 2002 e 1.336 de 19 de fevereiro de 2002 que dispõe sobre a transformação de área rural em área urbana - Ausência de estudos técnicos, oitiva da comunidade e Plano Diretor à época da aprovação das leis - Clara intenção de majoração de arrecadação municipal - Violação ao princípio da democracia participativa e artigos 111, 144, 152, l, II e III ,180, II, V, 181, 191 e 196 da Constituição Estadual – Ação procedente” (TJSP, ADI 147.253-0/7-00, Órgão Especial, v.u., 20-02-2008, grifo nosso).

13.               Ademais, essa premissa foi louvada pelo eminente Desembargador Samuel Junior em declaração de voto vencedor em julgamento proferido recentemente por esse colendo Órgão Especial, cuja ementa assim está redigida:

 

ação direta de inconstitucionalidade lei complementar disciplinando o uso e ocupação do solo – processo legislativo submetido À participação popular – votação, contudo, de projeto substitutivo que, a despeito de alterações significativas do projeto inicial, não foi levado ao conhecimento dos munícipes – vício insanável – inconstitucionalidade declarada.

‘O projeto de lei apresentado para apreciação popular atendia aos interesses da comunidade local, que atuava ativamente a ponto de formalizar pedido exigindo o direito de participar em audiência pública. Nada obstante, a manobra política adotada subtraiu dos interessados a possibilidade de discutir assunto local que lhes era concernente, causando surpresa e indignação. Cumpre ressaltar que a participação popular na criação de leis versando sobre política urbana local não pode ser concebida como mera formalidade ritual passível de convalidação. Trata-se de instrumento democrático onde o móvel do legislador ordinário é exposto e contrastado com idéias opostas que, se não vinculam a vontade dos representantes eleitos no momento da votação, ao menos lhe expõem os interesses envolvidos e as conseqüências práticas advindas da aprovação ou rejeição da norma, tal como proposta” (TJSP, ADI 994.09.224728-0, Rel. Des. Artur Marques, m.v., 05-05-2010, grifo nosso).

14.               Se assim é em face da oferta de substitutivo, idêntico tratamento deve ser dispensado ao projeto de lei em face de seu anteprojeto, porque a democracia participativa assegurada no inciso II do art. 180 e no art. 191 da Constituição Estadual, assim como no inciso XII do art. 29 da Constituição Federal, alcança a elaboração da lei de uso e ocupação do solo antes e durante seu processo legislativo, até o estágio final de produção da lei.

15.               A ausência de participação comunitária não configura apenas um desprezo aos ditames da Constituição do Estado de São Paulo, mas, antes de tudo, fere princípio fundamental do Estado Democrático de Direito presente na Constituição Federal, in verbis:

“Art. 1º. (...)

Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”

16.               Ora, comprovada a falta de planejamento prévio pela supressão da participação comunitária e dos estudos técnicos obrigatórios, verificam-se vícios no processo legislativo e, consequentemente, extreme de dúvida, a inconstitucionalidade da Lei nº 6.427, de 13 de julho de 2010, do Município de Mogi das Cruzes.

 

III – Pedido liminar

 

17.               À saciedade demonstrado o fumus boni iuris, pela ponderabilidade do direito alegado, soma-se a ele o periculum in mora, pois, como exposto, construções podem ser impedidas, cerceando o direito de construir de maneira abusiva e arbitrária, como podem ser toleradas à margem de qualquer processo objetivo, impessoal e imparcial, comprometendo irremediavelmente a qualidade de vida e o desenvolvimento sustentável da comuna, razão pela qual se requer a concessão de liminar para suspensão da eficácia, até final e definitivo julgamento desta ação, da Lei n. 6.427/10, de 13 de julho de 2010, do Município de Mogi das Cruzes.

 

IV – Pedido

 

18.               Face ao exposto, requerendo o recebimento e o processamento da presente ação para que, ao final, seja julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei nº 6.427, de 13 de julho de 2010, do Município de Mogi das Cruzes.

19.               Requer-se ainda sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Prefeito Municipal, bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para se manifestar sobre o ato normativo impugnado, protestando por nova vista, posteriormente, para manifestação final.

 

São Paulo, 21 de outubro de 2010.

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

 

 

 

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Protocolado n. 99.790/2010

 

Assunto: Inconstitucionalidade da Lei nº 6.427, de 13 de julho de 2010, do Município de Mogi das Cruzes.

 

 

 

 

 

1.    Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade, em face da Lei nº 6.427, de 13 de julho de 2010, do Município de Mogi das Cruzes, junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

2.    Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.

 

                    São Paulo, 21 de outubro de 2010.

 

 

 

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça