Excelentíssimo
Senhor Doutor Desembargador Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado
de São Paulo.
EMENTA:
Inciso XIV do art. 17 da Lei Orgânica Municipal de Bebedouro. Disposição
normativa que atribui à Câmara competência para – mediante lei – atribuir nomes
aos próprios, vias e logradouros públicos municipais, assim como modificá-los.
Usurpação de competência do Executivo. Violação do princípio da independência e
harmonia entre os Poderes (CE, art. 5.º). Precedentes do TJ/SP. Acolhimento da
representação.
O
Procurador-Geral de Justiça de São Paulo, no exercício de atribuição prevista
no artigo 116, inciso VI, da Lei Complementar Estadual n.º 734, de 26 de
novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo), e em conformidade
com o disposto nos artigos 125, § 2.º, e 129, inciso IV, da Lei Maior, e artigos
74, inciso VI, e 90, inciso III, da Constituição Estadual, com base nos
elementos de convicção extraídos no incluso protocolado (PGJ n.º 129.951/2011),
vem perante esse egrégio Tribunal de Justiça promover a presente AÇÃO DIRETA
DE INCONSTITUCIONALIDADE – com
pedido de liminar – do inciso XIV do art. 17 da Lei Orgânica do Município
de Bebedouro, pelas razões e fundamentos a seguir expostos:
A iniciativa do ajuizamento
da presente ação direta de inconstitucionalidade decorre do acolhimento de
representação formulada pela Promotoria de Justiça de Bebedouro, ante a notícia
de que – no aludido município – há alguns próprios, vias e logradouros públicos
municipais aos quais foram atribuídos nomes de pessoas vivas, inclusive de
ex-prefeito municipal candidato nas últimas eleições.
O dispositivo legal em
epígrafe reza o seguinte:
“Art.
17 – Compete à Câmara Municipal, com a sanção
do prefeito, dispor sobre as matérias de competência do Município,
especialmente sobre:
..........................................................
XIV
– dar nomes aos próprios, vias e logradouros públicos municipais, assim como
modificá-los;”
É fora de duvida que a
denominação de logradouros públicos municipais trata-se de matéria de interesse local (CF, art. 30, I),
dispondo, assim, os Municípios de ampla competência para regulamentá-la, pois
foram dotados de autonomia administrativa e legislativa. E, vale acrescentar, não
há na Constituição em vigor reserva dessa matéria em favor de qualquer dos
Poderes, donde se conclui que a iniciativa das leis que dela se ocupem só pode
ser geral ou concorrente.
Contudo, afigura-se necessário
distinguir as seguintes situações:
(a) a edição de regras que disponham
genérica e abstratamente sobre a denominação de logradouros públicos, ou
alterações na nomenclatura já existente, caso em que a iniciativa é
concorrente;
(b) o ato de atribuir nomes a
logradouros públicos, segundo as regras legais que disciplinam essa atividade,
que é da competência privativa do Executivo.
No Brasil, como se sabe, o
governo municipal é de funções divididas, incumbindo à Câmara as legislativas e
ao Prefeito as executivas. Entre esses Poderes locais não existe subordinação
administrativa ou política, mas simples entrosamento de funções e de atividades
político-administrativas. “Nessa sinergia de funções é que residem a
independência e a harmonia dos poderes, princípio constitucional extensivo ao
governo municipal.” (Cf. HELY LOPES MEIRELLES, “Direito Municipal
Brasileiro”, Malheiros, São Paulo, 8.ª ed., pp. 427 e 508.)
Pois bem, em sua função normal
e predominante sobre as outras, a Câmara elabora leis, isto é, normas
abstratas, gerais e obrigatórias de conduta. Esta é sua atribuição específica,
bem diferente daquela outorgada ao Poder Executivo, que consiste na prática de
atos concretos de administração. Ou seja, a Câmara edita normas gerais, enquanto que o Prefeito as aplica aos casos
particulares ocorrentes. (ob. cit., p. 429).
Assim, no exercício de sua
função normativa, a Câmara está habilitada a editar normas gerais, abstratas e
coativas a serem observadas pelo Prefeito, para a denominação das vias e
logradouros públicos, como, por exemplo: proibir que se atribua o nome de
pessoa viva, determinar que nenhum nome poderá ser composto por mais de três
palavras, exigir o uso de vocábulos da língua portuguesa, etc. (Cf. ADILSON
DE ABREU DALLARI, “Boletim do Interior”, Secretaria do Interior do Governo
do Estado de São Paulo, 2/103).
A nomenclatura de logradouros
públicos, que constitui elemento de sinalização
urbana, tem por finalidade precípua a orientação da população (Cf. JOSÉ
AFONSO DA SILVA, “Direito Urbanístico Brasileiro”, Malheiros, São Paulo, 2.ª
ed., p. 285). De fato, se não houvesse sinalização, a identificação e a
localização dos logradouros públicos seria tarefa quase impossível,
principalmente nos grandes aglomerados urbanos, como, por exemplo, a cidade de
São Paulo.
Diferentemente, porém, é a
finalidade da denominação de próprios, que, “prima facie”, não visa a orientar
a população, mas simplesmente homenagear determinadas pessoas ou fatos
históricos.
Contudo, a despeito de tal
distinção, nada obsta que o nome dado a determinado logradouro público cumpra
não só a função de permitir sua identificação e exata localização, mas sirva
também para homenagear pessoas ou fatos históricos, segundo os critérios
previamente estabelecidos em lei editada para regulamentar essa matéria.
Definidas essas premissas
básicas, tem-se no caso sob exame que a Lei Orgânica do Município de Bebedouro,
em seu art. 17, XIV, ao dispor que compete
à Câmara dar nomes aos próprios, vias e logradouros públicos municipais, assim
como modificá-los, é inconstitucional ao permitir à Câmara legislar de
forma concreta e específica sobre questão que é da alçada exclusiva do Prefeito
Municipal.
Na verdade, da forma como está
redigido, o inciso XIV do art. 17 da Lei Orgânica Municipal de Bebedouro autoriza
a Câmara a praticar ato concreto de administração, por meio de lei apenas em sentido formal, que não
encerra o conteúdo de uma norma abstrata ou teórica, instituída em caráter
permanente e de generalidade.
Ou seja, a Câmara pode, por
meio dessa aparente lei, cuja edição está autorizada pelo inciso XIV do art. 17,
compelir o Prefeito a atender tal determinação, invadindo sua esfera de poder.
As leis formais não se mostram regras jurídicas, mas simples atos administrativos dos poderes
legislativos.
Na ordem constitucional
vigente, que incorporou o postulado da separação de funções, a fim de limitar o
poder estatal, na consagrada fórmula de Montesquieu, não existe a menor
possibilidade de a administração municipal ser exercida pela Câmara, por meio de
leis (Estado legal), pois a Constituição é clara ao atribuir ao Prefeito a
competência privativa para exercer, com o auxílio dos Secretários Municipais, a
direção superior da administração municipal (CE, art. 47, II) e praticar os
atos de administração, nos limites de sua competência (CE, art. 47, XIV).
Bem por isso, aliás, ELIVAL
DA SILVA RAMOS adverte que:
“Sob
a vigência de Constituições que agasalham o princípio da separação de Poderes
(...) não é lícito ao Parlamento editar, ao seu bel-prazer, leis de conteúdo
concreto e individualizante. A regra é a de que as leis devem corresponder ao
exercício da função legislativa. A edição de leis meramente formais, ou seja,
‘aquelas que, embora fluindo das fontes legiferantes normais, não apresentam os
caracteres de generalidade e abstração, fixando, ao revés, uma regra dirigida,
de forma direta, a uma ou várias pessoas ou a determinada circunstância’,
apresenta caráter excepcional. Destarte, deve vir expressamente autorizada no
Texto Constitucional, sob pena de inconstitucionalidade substancial.” (“A
Inconstitucionalidade das Leis - Vício e Sanção”, Saraiva, 1994, p. 194.)
Nesse contexto, a aprovação de
lei, pela Câmara, que atribui nome a logradouro ou prédio público só pode ser
interpretada como atentatória ao postulado constitucional da independência e
harmonia entre os poderes (CE, art. 5.º).
Ao examinar assunto correlato,
no julgamento da Repr. n.º 1.117-SP, o insigne Ministro FRANCISCO REZEK consignou
no seu respeitável Voto que:
“No contexto dos debates que esta matéria
provocou na origem, e que envolveram os três poderes do Estado, vez por outra
afloram equívocos conceituais de certa monta, qual o entendimento da
prerrogativa de dar nome à sede forense como atributo da propriedade
imobiliária, ou a visão do poder Executivo como titular do domínio dos bens
públicos afetos a seus próprios serviços, tanto quanto aos da Legislatura e aos
da Justiça.
Tudo
isso posto de lado, porque desnecessário ao completo esquema da questão de
inconstitucionalidade que aqui se discute, reponta claro o argumento do
Presidente da Assembléia Legislativa de São Paulo: parece-lhe que a competência
para dar nome a logradouros públicos, porque não disciplinada na lei
fundamental, há de sê-lo em lei ordinária; e que entre aqueles não há por que
distinguir os de uso especial da Justiça dos vinculados aos demais poderes, ou
entregues ao uso comum do povo. Aquela primeira idéia se viu desenvolver com
esmero pelos fundadores da federação norte-americana, e, dessa e de outras
fontes, foi sabidamente assimilada pelo direito público brasileiro: tudo quanto
a Carta não diz por si mesma, di-lo-á não o Governo, nem tampouco a Justiça,
mas o Congresso, compositor, por excelência, da ordem jurídica que a lei fundamental
encabeça, sem poder exaurir.
Essa
regra eminente traz, porém, consigo, duas presunções tácitas, a ditar-lhe o
exato contorno. A primeira é a de que esse espaço a ser preenchido pela
produção congressional reclame substância normativa, vestida da abstração e da
generalidade que lhe são próprias. A segunda, indissociável da precedente, é a
de que o vasto domínio dos poderes implícitos do Congresso não pretenda
estender-se sobre área reservada pela lei fundamental às prerrogativas do
Executivo e do Judiciário, com todos os desdobramentos necessários a que se não
lhes afronta a independência.”
Guardadas as devidas
proporções, o que a Lei Orgânica do Município de Bebedouro estabelece, em face
da ausência de previsão constitucional expressa, é a sua competência plena para
atribuir denominação a logradouros ou prédios públicos municipais, o que,
porém, como registrado precedentemente, constitui ato concreto de
administração, parte integrante do serviço público de sinalização urbana,
cujo único responsável é o Prefeito.
Não há, porém, considerando-se
os argumentos acima reproduzidos, como incluir no rol dos poderes implícitos da
Câmara a competência para editar leis formais, desvestidas dos atributos de
generalidade e abstração, tampouco estender esses poderes sobre área de atuação
exclusiva do Poder Executivo, a quem compete a administração dos bens públicos
e a prestação de serviços públicos municipais, constituindo o ato de atribuir
nomes a logradouros ou prédios públicos mero corolário do poder de administrar.
Bem a propósito, ao examinar
leis de conteúdo semelhante, esse egrégio Tribunal de Justiça decidiu que:
“Ação
Direta de Inconstitucionalidade – Lei Municipal que impõe ao Chefe do Poder
Executivo nome de rua – Vício de iniciativa – Invasão de esfera privativa deste
– Ação procedente” (ADI nº 115.877.0/5, Rel. Des. Laerte
Nordi, j. em 20/7/2005).
“EMENTA:
Constitucional. ADI. Inciso XV do artigo 35 da Lei Orgânica do Município de
Olímpia. Atribui à Câmara, com sanção do Prefeito, dar denominações a próprios,
vias e logradouros públicos, inclusive de pessoas vivas que mereçam e
justifiquem a homenagem. Matéria relativa à direção superior da administração
municipal. Usurpação de atribuições do Chefe do Executivo.
Inconstitucionalidade. Violação do disposto nos artigos 5.º, 47, incisos II e
XIV, e 144 da Constituição do Estado de São Paulo.” (ADI 163.689-0/3-00,
Rel. Des. Luiz Tâmbara, j. em 22/7/2009, v.u.)
Em suma, a Câmara não pode
arrogar a si a competência para autorizar a prática de atos concretos de
administração. E a nomenclatura de logradouros e próprios públicos - que
constitui atividade relacionada ao serviço público municipal de sinalização e
identificação - enquadra-se exatamente nessa hipótese, resultando, daí, a
conclusão inafastável de que a lei em epígrafe é manifestamente incompatível
com o princípio da separação dos poderes.
Por tais razões, aguardo seja
declarada a inconstitucionalidade do inciso XIV do art. 17 da Lei Orgânica do
Município de Bebedouro, por afronta aos arts. 5.º, 37 e 47, inciso II da
Constituição Paulista, cuja observância é obrigatória pelos Municípios, ex
vi do art. 144 dessa mesma Carta Política.
Nessa linha, apresenta plena
verossimilhança a alegação de inconstitucionalidade, consoante precedentes do
próprio egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo.
O fumus boni iuris
decorre da demonstrada incompatibilidade vertical entre o inciso XIV do art. 17
da Lei Orgânica do Município de Bebedouro e a Constituição do Estado de São
Paulo, enquanto que o requisito do periculum in mora consiste na
possibilidade de a lei ensejar a prática de atos jurídicos contrários ao
interesse público, como, aliás, já ocorreu no Município de Bebedouro, no qual o
nome de ex-prefeito – candidato a deputado nas últimas eleições – serviu para
denominar via pública, o que motivou o oferecimento de representação a esta
Procuradoria-Geral de Justiça.
À vista do exposto, requeiro
que seja determinado o processamento da presente AÇÃO DIRETA DE
INCONSTITUCIONALIDADE, concedendo-se
liminar para suspensão dos efeitos do inciso XIV do art. 17 da Lei Orgânica do
Município de Bebedouro, colhendo-se as informações pertinentes a serem
prestadas pela Câmara dos Vereadores e pelo Prefeito Municipal de Bebedouro,
sobre as quais me manifestarei oportunamente, vindo, afinal, a ser declarada a
inconstitucionalidade do dispositivo em questão – por afronta aos arts. 5.º, 37
e 47, inciso II da Constituição Paulista – e adotadas as medidas atinentes à
sua suspensão definitiva do ordenamento jurídico.
São Paulo, 10 de outubro de 2011.
FERNANDO GRELLA VIEIRA
Procurador-Geral de Justiça
krcy
Protocolado nº
129.951/2011
Interessado: Promotoria
de Justiça de Bebedouro
1. Distribua-se
a inicial da ação direta de inconstitucionalidade.
2. Oficie-se
ao Interessado para comunicar a propositura desta ação, fornecendo-lhe a
respectiva cópia da inicial.
3. Cumpra-se.
São
Paulo, 10 de outubro de 2011.
Fernando
Grella Vieira
Procurador-Geral
de Justiça
srs