Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão n. 164.152-0/0-00 – São Paulo

Requerente: Procurador-Geral de Justiça

Requeridos: Tribunal de Contas do Estado de São Paulo e Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo

 

 

 

 

 

Egrégio Tribunal,

Colendo Órgão Especial,

Douto Relator:

 

 

 

 

 

1.           Foi promovida ação direta de inconstitucionalidade por omissão objetivando a declaração de mora legislativa na edição de lei específica para concretização da reserva de vagas a pessoas portadoras de necessidades especiais nos concursos públicos realizados no Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, com fixação de prazo razoável para sua implementação visando atribuir plena eficácia ao art. 115, IX, da Constituição Estadual, e ao seu cabo, se persistente a omissão, a concretização provisória, até que seja sanada a omissão normativa, da necessidade da reserva de vagas nos concursos públicos do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo mediante determinação da aplicação analógica da Lei Complementar Estadual n. 683/92 (fls. 02/14).

 

2.           A Assembléia Legislativa argüiu sua ilegitimidade passiva baseada na iniciativa legislativa reservada do Tribunal de Contas (fls. 32/39).

 

3.           O Tribunal de Contas pretende a improcedência da ação alegando inexistência de mora por ausência normativa de prazo para dispor sobre o assunto, aplicação da Lei Complementar Estadual n. 683/92 a alguns concursos públicos promovidos, inadmissibilidade e desnecessidade da reserva de vagas para os cargos de auditor na medida em que criaria injustificado privilégio, lembrando que esse cargo tem requisitos próprios de investidura (fls. 54/60).

 

4.           A douta Procuradoria-Geral do Estado manifestou desinteresse no processo (fls. 27/28).

 

5.           É o relatório.

 

6.            A respeito da preliminar sustentada pela Assembléia Legislativa deve se considerar que a função legislativa compete ao Poder Legislativo do Estado de São Paulo ainda que participe do respectivo processo produtivo de norma jurídica outro órgão público – no caso, o Tribunal de Contas – dotado, segundo as regras constitucionais, de iniciativa legislativa reservada, como exposto na petição inicial.

 

7.           Destarte, como o ato legislativo é ato complexo que envolve a participação do Tribunal de Contas na ignição – exclusiva – do respectivo processo legislativo e da Assembléia Legislativa na sua aprovação, é insuperável a legitimidade passiva do Poder Legislativo.

 

8.           Em hipótese assemelhada, o Supremo Tribunal Federal, por exemplo, reconheceu a mora legislativa da Assembléia Legislativa do Estado do Ceará e a conseqüente omissão inconstitucional na criação dos cargos de membros do Ministério Público e de auditores junto ao respectivo Tribunal de Contas:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. EC 54 À CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DO CEARÁ. TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO E TRIBUNAL DE CONTAS DOS MUNICÍPIOS. MODELO FEDERAL. ARTIGOS 73, § 2º, INCISOS I E II, E 75 DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. VAGA DESTINADA AOS MEMBROS DO MINISTÉRIO PÚBLICO E AOS AUDITORES. INEXISTÊNCIA DE LEI QUE IMPLEMENTA AS CARREIRAS. INÉRCIA DA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA QUANTO À CRIAÇÃO DE CARGOS E CARREIRAS DO MINISTÉRIO PÚBLICO ESPECIAL E DOS AUDITORES. OMISSÃO INCONSTITUCIONAL. 1. A nomeação livre dos membros do Tribunal de Contas do Estado e do Tribunal de Contas dos Municípios pelo Governador dar-se-á nos termos do art. 75 da Constituição do Brasil, não devendo alongar-se de maneira a abranger também as vagas que a Constituição destinou aos membros do Ministério Público e aos auditores. Precedentes. 2. O preceito veiculado pelo artigo 73 da Constituição do Brasil aplica-se, no que couber, à organização, composição e fiscalização dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, bem como dos Tribunais e Conselhos de Contas dos Municípios. Imposição do modelo federal nos termos do artigo 75. 3. A inércia da Assembléia Legislativa cearense relativamente à criação de cargos e carreiras do Ministério Público Especial e de Auditores que devam atuar junto ao Tribunal de Contas estadual consubstancia omissão inconstitucional. 4. Ação direta de inconstitucionalidade por omissão julgada procedente” (STF, ADI 3.726-CE, Tribunal Pleno, Rel. Min. Eros Grau, 02-06-2005, v.u., DJe 31-01-2008).

 

9.           Não bastasse isso, sequer se mostra adequada a afirmação de que a Assembléia Legislativa seria parte ilegítima para figurar no pólo passivo da ação direta de inconstitucionalidade por omissão, ainda por outro fundamento. É que aqui se trata de processo objetivo, no qual inexiste lide, bem como partes em relação de direito material. É nesse sentido que a doutrina e a jurisprudência se referem a esta modalidade de atuação jurisdicional como “processo sem partes” (v.g. STF, ADI-ED 3.615-PB, Tribunal Pleno, Rel. Min. Cármen Lúcia, 17-03-2008, DJe-074,  DIVULG 24-04-2008, PUBLIC 25-04-2008, EMENT VOL-02316-03, PP-00463). O órgão omisso quanto à deflagração do processo legislativo, ou mesmo o próprio Poder Legislativo, também ele omisso, não figuram aqui na condição de requeridos no sentido tradicionalmente estabelecido quanto ao processo civil tradicional, apenas prestando informações a respeito da omissão normativa.

 

10.         Fosse possível falar em legitimado passivo para a ação direta, este seria, no plano constitucional federal, o Advogado-Geral da União, citado para a defesa do ato normativo impugnado (art. 103 §3º da CR/88), ou então, no plano constitucional estadual, o Procurador-Geral do Estado, citado para o mesmo fim (art.90, §2º, da Constituição Paulista).

 

11.         No processo objetivo, o que se pretende é a declaração da inconstitucionalidade de ato normativo determinado, ou então – como no caso em exame – o reconhecimento de que a própria omissão normativa é inconstitucional. Nesse quadro, os órgãos responsáveis pela elaboração do ato normativo (no caso da ação declaratória de inconstitucionalidade) ou pela sua falta (na inconstitucionalidade por omissão), apenas prestam informações a respeito das afirmações contidas na demanda constitucional.

 

12.         O provimento jurisdicional, na ação direta, é meramente declaratório, não servindo como parâmetro de raciocínio os precedentes obtidos no julgamento de mandados de injunção, apresentados pela Assembléia, cuja essência e finalidade (provimentos mandamentais = obtenção de ordem dirigida a determinada autoridade) são absolutamente distintos.

 

13.         Nesse sentido, o art. 6º da Lei n. 9.868/99 (que trata do processo e julgamento das ações de inconstitucionalidade) prevê que “o relator pedirá informações aos órgãos ou às autoridades das quais emanou a lei ou o ato normativo impugnado”. Do mesmo modo, o Regimento Interno do Tribunal de Justiça de São Paulo, em seu art. 669, determina que “distribuído o feito, o relator pedirá informações ao autor do ato normativo, à Assembléia Legislativa ou à Câmara Municipal, conforme o caso.”

 

14.         Portanto, com a devida vênia, parece equivocado colocar a questão da requisição de informações ao Poder Legislativo na perspectiva da ilegitimidade. O fato objetivo é simplesmente este: a Assembléia Legislativa tem necessariamente que participar do processo de formação da lei. Se esta não foi editada, e se alega a inconstitucionalidade por omissão, ou se foi editada, e se argüi sua inconstitucionalidade, o Legislativo deve prestar informações.

 

15.         Ademais, ainda nesse particular, não procede a alegação de inviabilidade de cumprimento de eventual decisão que vier a impor a edição de ato normativo, sem que haja a iniciativa do egrégio Tribunal de Contas. É justamente por isso que foram cumulados três pedidos na inicial: (a) declaração da mora legislativa; (b) ciência ao Tribunal de Contas e à Assembléia, com prazo para ao suprimento da omissão normativa; (c) em caso de persistência da omissão, seu suprimento pelo próprio egrégio Tribunal de Justiça, com aplicação analógica da legislação existente. Isso afasta a afirmação de que seria impossível o cumprimento da decisão, em caso de acolhimento da iniciativa desta Procuradoria-Geral.

 

16.         Portanto, merece rejeição a preliminar.

 

17.         No mérito, a ação merece ser julgada procedente.

 

18.         Oswaldo Luiz Palu ressalta que:

“quando houver o claro e inequívoco dever de agir bem como a possibilidade de realização poderá caracterizar-se a omissão, a permitir o provimento mandamental no controle omissivo (...) A omissão legislativa somente pode significar que o legislador não fez algo que positivamente lhe era imposto pela Constituição. Não se trata, apenas, de um não fazer, mas de não fazer aquilo a que, de forma concreta e explícita, estava ele constitucionalmente obrigado. A omissão tem conexão com uma exigência de ação advinda da Constituição; caso contrário não haverá omissão. Em outras palavras, há o dever de legislar violado quando: a) do legislador não emana o ato legislativo obrigado; b) quando a lei editada favorece um grupo, olvidando-se de outros. É dizer: quando não se concretiza, ou não o faz, completamente, uma imposição constitucional” (Controle de Constitucionalidade, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, 2ª ed., p. 286).

 

19.         Logo, não é requisito de procedência da ação a inobservância do prazo estabelecido na Constituição para legislar. A omissão inconstitucional se caracteriza, com ou sem previsão de prazo na Constituição, quando o legislador não legisla de modo a inviabilizar o cumprimento da Constituição.

 

20.         É o que ocorre in casu. A falta de norma infraconstitucional tem o efeito nocivo de neutralizar o comando-garantia do art. 115, IX, da Constituição Estadual, coarctando, no plano concreto, a participação igualitária das pessoas com deficiência nos concursos públicos promovidos pelo Tribunal de Contas do Estado de São Paulo.

 

21.         É bem verdade que o Tribunal de Contas assinala a aplicação da Lei Complementar Estadual n. 683/92 a alguns concursos públicos promovidos.

 

22.         Alguns; não todos. Em verdade, a leitura dos documentos agregados às informações revela que a Lei Complementar Estadual n. 683/92 vem sendo aplicada para os concursos públicos dos cargos de agentes do Tribunal de Contas.

 

23.         Efetivamente, não é dado ao direito consagrado no art. 115, IX, da Constituição Estadual, ficar à mercê da vontade do Tribunal de Contas porquanto para o provimento dos cargos de auditor o órgão rechaçou a sua aplicação. Com efeito, consta da resposta do Tribunal de Contas ao Ministério Público no protocolado que instruiu a petição inicial que:

“Em primeiro lugar, temos um comando constitucional cuja aplicação depende da edição de lei específica a esse respeito (...)

Esse dispositivo constitucional, no Estado de São Paulo, está regulado pela Lei Complementar nº 683, de 18/09/1992, com as alterações introduzidas pela Lei Complementar nº 932, de 08/11/1992. No entanto, a sua aplicabilidade se dá apenas e tão somente ‘nos órgãos e entidades da administração direta, indireta e fundacional’, o que, em outras palavras, estabelece uma aplicabilidade adstrita ao Poder Executivo do Estado de São Paulo (...)

Há aqui, pois, um contexto no qual fica evidente que a Lei Complementar nº 683/92 alcança apenas e tão somente os órgãos e entidades do Poder Executivo do Estado de São Paulo, de forma a não existir tal lei específica, nos termos do inciso VIII, do artigo 37, da Constituição Federal, que vincule o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo” (fls. 126/127, apenso).

 

24.         É, no mínimo, motivo para reflexão a oscilante alegação do Tribunal de Contas, agora trazida nas informações, pois, abdica da integralidade de sua anterior argumentação, fundada na sua autonomia como órgão estatal independente, aplicando em parte a lei que só se refere ao Poder Executivo e não ao Tribunal de Contas e seus servidores.

 

25.        Aliás, nessas mesmas informações ora analisadas o Tribunal de Contas retoma em parte o argumento exposto na resposta ao Ministério Público, invocando simetria com os concursos públicos promovidos pelo Tribunal de Justiça e pela Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo, que não prezam pela reserva de vagas a pessoas com deficiência.

 

26.         Se, por um lado, o argumento é absolutamente estéril porque não está em exame a lei que disciplina o ingresso na Magistratura, por outro, não afasta a recordação de que o próprio Tribunal de Contas asseverou, antes da promoção da ação, que a situação era diferente da vivificada no Ministério Público, em que há previsão legal expressa no art. 123 da Lei Complementar Estadual n. 734/93 quanto à reserva de vagas.

 

27.        De qualquer modo, o argumento só reforça a evidência da omissão inconstitucional porque se, para o provimento do cargo de Promotor de Justiça no Ministério Público, há reserva de vagas no respectivo concurso público a pessoas com deficiência, não há razão lógica para a inexistência na lei que disciplina o provimento do cargo de Auditor do Tribunal de Contas – como, aliás, para qualquer outro, salvo razoável discriminação. 

 

28.         E a pretensa simetria com a Magistratura não é completa, na medida em que seu regime jurídico depende de lei nacional que não é de iniciativa do Tribunal de Justiça, não bastasse o fato de não haver qualquer semelhança entre o cargo de Juiz de Direito e o de Auditor do Tribunal de Contas, senão aquelas artificialmente estabelecidas na Lei Complementar Estadual n. 979/05 com duvidosa constitucionalidade (arts. 2º, § 1º, art. 4º, parágrafo único, v.g.).

 

29.         A terceira ordem de argumentos das informações concentra-se na inadmissibilidade e desnecessidade da reserva de vagas para os cargos de auditor, na medida em que criaria injustificado privilégio, lembrando que esse cargo tem requisitos próprios de investidura.

 

30.         Não há qualquer premissa científica a tornar incompatível o exercício do cargo de Auditor do Tribunal de Contas com o fato de seu ocupante ser pessoa portadora de deficiência. Em verdade, essa linha de argumentação tem um pecado básico e original: olvida que a Constituição – Federal e Estadual – ceifou qualquer possibilidade de discussão, de modo que não é possível vislumbrar na exigência constitucional um injustificado privilégio.

 

31.         A partir dos requisitos objetivos de investidura no cargo as informações esboçam essa linha de argumentação asseverando que:

“aquele que possa demonstrar essa experiência profissional de uma década já terá demonstrado, com antecedência, que não sofreu a interferência de eventuais limitações físicas ou intelectuais ou, se sofreu, soube superá-las sem a necessidade de valer-se de regras ou condições diferenciadas

(...)

a comprovação de 10 (dez) anos de experiência profissional já deixa patente que o candidato seguramente não é portador de deficiência limitante de sua incapacidade, donde não faria sentido a reserva de vagas para ingresso no cargo de Auditor.

(...)

Não teria sentido à pessoa com tal capacitação, fosse necessária a sua integração social, bem como ser destinatária da reserva de vagas no mercado de trabalho.

Quando dispõe sobre a promoção de ações eficazes que propiciem a inserção, nos setores públicos e privados, de pessoas portadoras de necessidades especiais, a Lei nº 7853/99, seguramente não visava aqueles que já resolvidos profissional e socialmente” (fls. 58/59).

 

32.         O extrato do argumento é o seguinte: a experiência profissional e a idade de per si superam a desigualdade. Ora, essas premissas são subjetivas e inadequadas, destoando evolução das ações afirmativas, cuja finalidade é a redução das desigualdades reais mediante a inserção de expedientes de equalização prática, sendo irrelevante discutir se constituem, ou não, discriminação reversa. Com efeito, ação afirmativa é conceituada como:

“o conjunto de estratégias, iniciativas ou políticas que visam favorecer grupos ou segmentos sociais que se encontram em piores condições de competição em qualquer sociedade em razão, na maior parte das vezes, da prática de discriminações positivas, sejam elas presentes ou passadas. Colocando-se de outra forma, pode-se asseverar que são medidas especiais que buscam eliminar os desequilíbrios existentes entre determinadas categorias sociais até que eles sejam neutralizados, o que se realiza por meio de providências efetivas em favor das categorias que se encontram em posições desvantajosas (...) a ação afirmativa tem por finalidade implementar uma igualdade concreta (igualdade material), no plano fático, que a isonomia (igualdade formal), por si só, não consegue proporcionar” (Paulo Lucena de Menezes. A ação afirmativa (affirmative action) no direito norte-americano, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, pp. 27-29).

 

33.         O mais relevante é a observação de que a norma constitucional é de eficácia limitada dependendo de lei integrativa, como pondera José Afonso da Silva (Comentário contextual à Constituição, São Paulo: Malheiros, 2006, 2ª ed., p. 340), bem como que:

“a reserva de percentual a deficientes físicos é obrigatoriedade constitucional, não se submetendo à discricionariedade da administração pública, e aplicando-se a todos os Poderes da República, independentemente do ente federativo” (Alexandre de Moraes. Constituição do Brasil Interpretada, São Paulo: Atlas, 2002, p. 848).

 

34.         Ora, dependendo a eficácia da norma constitucional da integração infraconstitucional é absolutamente intolerável a mora legislativa, causadora de prejuízo, razão pela qual reporto-me à petição inicial e requeiro a procedência da ação.

 

             São Paulo, 02 de outubro de 2008.

 

 

FERNANDO GRELLA VIEIRA

PROCURADOR DE JUSTIÇA