Excelentíssimo Senhor Doutor Desembargador Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

 

 

Protocolado n. 107.876/2013

 

 

Ementa: Constitucional e Administrativo. art. 77 da Lei Complementar n. 195, de 20 de julho de 1999, e Lei n. 217, de 31 de janeiro de 2001, ambos do Município de São João de Iracema. Servidor público. Vantagem pecuniária (gratificação concedida sobre o salário base de cada funcionário portador de título universitário). Inconstitucionalidade. legalidade. moralidade, impessoalidade, interesse público e necessidade do serviço. É inconstitucional lei local que outorga gratificação baseada na exclusiva vontade do servidor público, desassociada da especial natureza do serviço exigente de maior grau de disponibilidade do servidor público e que também não constitui retribuição por serviço comum prestado em condições anormais ou gerador de despesas extraordinárias ao servidor público. Ofensa ao princípio da razoabilidade. Benefício que não atende ao interesse público e às exigências do serviço. Constituição Estadual: arts. 111, 128 e 144.

     

         O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, VI, da Lei Complementar Estadual n. 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo), em conformidade com o disposto no art.125, § 2º, e art. 129, IV, da Constituição Federal, e ainda art. 74, VI, e art. 90, III, da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado, vem, respeitosamente, perante esse Egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE em face do art. 77 da Lei Complementar n. 195, de 20 de julho de 1999, e da Lei n. 217, de 31 de janeiro de 2001, ambos do Município de São João de Iracema, pelos fundamentos a seguir expostos:

 

I – Os Atos Normativos Impugnados

1.                O art. 77 da Lei Complementar n. 195, de 20 de julho de 1999, do Município de São João de Iracema, assim dispõe:

“Artigo 77 – A gratificação por nível universitário será devida ao servidor portador de diploma universitário”.

2.                Por sua vez, a Lei n. 217, de 31 de janeiro de 2001, também do Município de São João de Iracema, estabelece:

 “Artigo 1º - Fica o Chefe do Poder Executivo Municipal autorizado a conceder a título de gratificação, uma porcentagem de 10% (dez por cento) aos servidores municipais, portadores de Título Universitário.

Artigo 2º - A presente gratificação será concedida sobre o salário base de cada funcionário, não podendo ser incorporada definitivamente para qualquer vantagem do cargo, o que deverá o interessado apresentar o diploma pra ser beneficiado com a gratificação.

Artigo 3º - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação, retroagindo seus efeitos a 01 de janeiro de 2001, revogadas as disposições em contrário, e em especial as Leis Municipais n. 079 de 20 de abril de 1.994, Lei n. 128 de 16 de agosto de 1.995 e Lei n. 129 de 06 de setembro de 1.995.

Prefeitura Municipal de São João de Iracema, 31 de janeiro de 2001.

DAVID JOSÉ MARTINS RODRIGUES

PREFEITO MUNICIPAL”.

 

II – O parâmetro da fiscalização abstrata de constitucionalidade

3.                Os atos normativos impugnados contrariam frontalmente a Constituição do Estado de São Paulo, a qual está subordinada a produção normativa municipal por força dos seguintes preceitos (ante a previsão dos arts. 1º, 18, 29 e 31 da Constituição Federal):

“Art. 144. Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição”.

4.                Na espécie, a incompatibilidade vertical da lei local com a Constituição do Estado de São Paulo se manifesta pelo contraste direto com a seguinte disposição constitucional estadual:

“Art. 111. A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência.

(...)

Art. 128. As vantagens de qualquer natureza só poderão ser instituídas por lei e quando atendam efetivamente ao interesse público e às exigências do serviço”.

 

III – as inconstitucionalidades

5.                As vantagens pecuniárias são acréscimos permanentes ou efêmeros ao vencimento dos servidores públicos, compreendendo adicionais e gratificações.

6.                Enquanto o adicional significa recompensa ao tempo de serviço (ex facto temporis) ou retribuição pelo desempenho de atribuições especiais ou condições inerentes ao cargo (ex facto officii), a gratificação constitui recompensa pelo desempenho de serviços comuns em condições anormais ou adversas (condições diferenciadas do desempenho da atividade – propter laborem) ou retribuição em face de condições pessoais ou situações onerosas do servidor (propter personam) [Hely Lopes Meirelles. Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 2001, 26ª ed., p. 449; Diógenes Gasparini. Direito Administrativo, São Paulo: Saraiva, 2008, 13ª ed., p. 233; Marçal Justen Filho. Curso de Direito Administrativo, São Paulo: Saraiva, 2008, 3ª ed., p. 760].

7.                Se tradicional ensinamento assinala que “o que caracteriza o adicional e o distingue da gratificação é o ser aquele uma recompensa ao tempo do serviço do servidor, ou uma retribuição pelo desempenho de funções especiais que refogem da rotina burocrática, e esta, uma compensação por serviços comuns executados em condições anormais para o servidor, ou uma ajuda pessoal em face de certas situações que agravam o orçamento do servidor” (Hely Lopes Meirelles. Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 2001, 26ª ed., p. 452), agrega-se a partir de uma distinção mais aprofundada que “a gratificação é uma vantagem relacionada a circunstâncias subjetivas do servidor, enquanto o adicional se vincula a circunstâncias objetivas. (...) dois servidores que desempenhem um mesmo cargo farão jus a adicionais idênticos. Já as gratificações serão a eles concedidas em vista das características individuais de cada um. No entanto, é evidente que tais gratificações se sujeitam ao princípio da isonomia, de modo a que dois servidores que apresentem idênticas circunstâncias objetivas farão jus a benefícios iguais” (Marçal Justen Filho. Curso de Direito Administrativo, São Paulo: Saraiva, 2008, 3ª ed., p. 761).

8.                Ou seja, os adicionais são compensatórios dos encargos decorrentes de funções especiais apartadas da atividade administrativa ordinária e as gratificações dos riscos ou ônus de serviços comuns realizados em condições extraordinárias. Com efeito, “se o adicional de função (ex facto officii) tem em mira a retribuição de uma função especial exercida em condições comuns, a gratificação de serviço (propter laborem) colima a retribuição do serviço comum prestado em condições especiais” (Wallace Paiva Martins Junior. Remuneração dos agentes públicos, São Paulo: Saraiva, 2009, p. 85).  

9.                Ademais, oportuno admoestar que “as vantagens pecuniárias, sejam adicionais, sejam gratificações, não são meios para majorar a remuneração dos servidores, nem são meras liberalidades da Administração Pública. São acréscimos remuneratórios que se justificam nos fatos e situações de interesse da Administração Pública” (Diógenes Gasparini. Direito Administrativo, São Paulo: Saraiva, 2008, 13ª ed., p. 233).   

10.              Assim, importante frisar que as gratificações são precária e contingentemente instituídas para o desempenho de serviços comuns em condições anormais de segurança, salubridade ou onerosidade (gratificações de serviço) ou a título de ajuda em face de certos encargos pessoais (gratificações pessoais). A gratificação de serviço é propter laborem e “é outorgada ao servidor a título de recompensa pelos ônus decorrentes do desempenho de serviços comuns em condições incomuns de segurança ou salubridade, ou concedida para compensar despesas extraordinárias realizadas no desempenho de serviços normais prestados em condições anormais” (Diógenes Gasparini. Direito Administrativo, São Paulo: Saraiva, 2008, 13ª ed., p. 232), albergando, por exemplo, situações como risco de vida ou saúde, serviços extraordinários (prestação fora da jornada de trabalho), local de exercício ou da prestação do serviço, razão do trabalho (bancas, comissões).

11.              É assaz relevante destacar que “o que caracteriza essa modalidade de gratificação é sua vinculação a um serviço comum, executado em condições excepcionais para o funcionário, ou a uma situação normal do serviço mas que acarreta despesas extraordinárias para o servidor”, razão pela qual “essas gratificações só devem ser percebidas enquanto o servidor está prestando o serviço que as enseja, porque são retribuições pecuniárias pro labore faciendo e propter laborem. Cessado o trabalho que lhes dá causa ou desaparecidos os motivos excepcionais e transitórios que as justificam, extingue-se a razão de seu pagamento” (Hely Lopes Meirelles. Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 2001, 26ª ed., pp. 457-458).

12.              Convém insistir que as vantagens pecuniárias podem ser, (como os adicionais por tempo de serviço) instituídas pelo trabalho já realizado (pro labore facto), mas, a regra é que as demais (adicionais de função, gratificações de serviço ou pessoais), sejam ex facto officii ou propter laborem tem em mira o trabalho que está sendo feito, ou seja, são pro labore faciendo, de auferimento condicionado à efetiva prestação do serviço nas condições estabelecidas pela Administração Pública (Hely Lopes Meirelles. Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 2001, 26ª ed., pp. 450-451, 453).

13.              Feita essa digressão, cumpre assinalar que os diplomas normativos impugnados criam gratificação que não decorre do interesse público ou das exigências do serviço.

14.              Ocorre que a gratificação, pura e simplesmente, incide em relação a todos os servidores municipais que sejam possuidores de título universitário.

15.              Ou seja, há uma generalidade na sua incidência que não se justifica, apesar da louvável preocupação dos agentes políticos municipais.

16.              As premissas ou fundamentos concretos para a concessão do benefício acima mencionado servem apenas como mecanismo para aumentar os vencimentos dos agentes públicos.

17.              Bem observa Wellington Pacheco Barros, destacado Professor e Desembargador:

“Comungo com o pensamento político moderno de que uma das causas do inchaço da despesa pública é a remuneração com pessoal, que não raramente inviabiliza a tomada de decisões do agente político sobre investimentos de obras públicas de caráter benéfico à população. E uma das causas da despesa pública com pessoal é a atribuição indiscriminada pelo legislador de vantagens pecuniárias a servidor público sem que haja uma contraprestação de serviço e, o que é pior, com o rótulo de permanente e de efeito incorporador ao vencimento, elitizando a administração de existência de remunerações desproporcionais entre o maior e o menor vencimento de um cargo público” (O município e seus agentes, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 128).

18.              Acrescenta o citado jurista, que gratificação é “a vantagem pecuniária, de conteúdo precário, concedida ao servidor público como forma de contraprestação pelo exercício a mais daquele que lhe é atribuído pelo seu cargo” – g.n.

19.              No caso em tela não há qualquer contraprestação para que haja incidência da gratificação.

20.              Viola-se, pois, a regra da razoabilidade.

21.              A inconstitucionalidade, portanto, decorre da contrariedade ao art. 128 da Constituição do Estado, aplicável aos Municípios em razão do art. 144 da mesma Carta.

22.              Não bastasse isso, como consignamos anteriormente, as disposições legais que o instituíram e mantiveram contrariam o princípio da razoabilidade, que deve nortear a Administração Pública e a atividade legislativa, e tem assento no art. 111 da Constituição do Estado, aplicável aos Municípios por força do art. 144 da mesma Carta.

23.              Por força desse princípio é necessário que a norma passe pelo denominado “teste” de razoabilidade, vale dizer, que ela seja: (a) necessária (a partir da perspectiva dos anseios da Administração Pública); (b) adequada (considerando os fins públicos que com a norma se pretende alcançar); e (c) proporcional em sentido estrito (que as restrições, imposições ou ônus dela decorrentes não sejam excessivos ou incompatíveis com os resultados a alcançar).

24.              A gratificação ora questionada não passa por nenhum dos critérios do teste de razoabilidade: (a) não atende a nenhuma necessidade da Administração Pública, vindo em benefício exclusivamente da conveniência dos servidores públicos beneficiados por essa vantagem pecuniária; (b) é, por consequência, inadequada na perspectiva do interesse público; (c) é desproporcional em sentido estrito, pois cria ônus financeiros que naturalmente se mostram excessivos e inadmissíveis, tendo em vista que não acarretarão benefício algum para a Administração Pública.

25.              Inconstitucionais, portanto, as previsões a respeito da gratificação ora questionada, por contrariedade aos art. 111 e 128 da Constituição Paulista, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da mesma Carta.

26.              Acrescente-se, ainda, que as normas em foco não se justificam, porquanto não instituem regime especial baseado na especial natureza do serviço exigente de maior grau de disponibilidade do servidor público nem constitui serviço comum prestado em condições anormais ou gerador de despesas extraordinárias ao servidor público.

27.              Ademais, à míngua de qualquer outro elemento objetivo calcado na necessidade do serviço e no interesse público, subordina a outorga da gratificação a um juízo pura e exclusivamente subjetivo do servidor público, subtraindo o poder decisório da Administração Pública e tendo a potencialidade de premiar a ineficiência e indiscriminadamente conferir aumento indireto e dissimulado da remuneração.

28.              Atenta, pois, à lógica, à racionalidade, à objetividade e ao senso comum, vetores amparados pelo princípio de razoabilidade e, mormente, ao interesse público e à necessidade do serviço que devem presidir a concessão de vantagens pecuniárias aos servidores públicos como retribuição ou compensação pela prestação de serviços comuns em situações especiais ou pela prestação de serviços de natureza extraordinária.

29.              Embora os atos normativos impugnados declarem a não-cumulação, a existência da gratificação representa duplicidade de título jurídico para o pagamento da prestação de serviços comuns em situação normal.

30.              Por estas razões, deve ser declarada a inconstitucionalidade.

 

IV – Pedido liminar

31.              À saciedade demonstrado o fumus boni iuris, pela ponderabilidade do direito alegado, soma-se a ele o periculum in mora. A atual tessitura da norma impugnada, apontada como violadora de princípios e regras da Constituição do Estado de São Paulo é sinal, de per si, para suspensão de sua eficácia até final julgamento desta ação porque permite dispêndio público de maneira ilegítima, periclitando as forças do erário com a potencialidade real e concreta de danos irreversíveis ou de difícil reparação.

32.              À luz deste perfil, requer-se a concessão de liminar para suspensão da eficácia, até final e definitivo julgamento desta ação, do art. 77 da Lei Complementar n. 195, de 20 de julho de 1999, e da Lei n. 217, de 31 de janeiro de 2001, ambos do Município de São João de Iracema.

 

 

V - Pedidos

33.              Face ao exposto, requer o recebimento e processamento da presente ação que deverá ser julgada procedente para declaração da inconstitucionalidade do art. 77 da Lei Complementar n. 195, de 20 de julho de 1999, e da Lei n. 217, de 31 de janeiro de 2001, ambos do Município de São João de Iracema.

34.              Requer-se, ainda, sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Prefeito Municipal de São João de Iracema, bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para se manifestar sobre os atos normativos impugnados, protestando por nova vista, posteriormente, para manifestação final.

                   Termos em que, pede deferimento.

São Paulo, 25 de abril de 2014.

 

Márcio Fernando Elias Rosa

Procurador-Geral de Justiça

md

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Protocolado n. 107.876/2013

Assunto: Inconstitucionalidade do art. 77 da Lei Complementar n. 195, de 20 de julho de 1999, e Lei n. 217, de 31 de janeiro de 2001, ambos do Município de São João de Iracema

 

 

 

 

1.     Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade junto ao egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

2.     Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.

                   São Paulo, 14 de maio de 2014.

 

 

 

 

Márcio Fernando Elias Rosa

Procurador-Geral de Justiça