Excelentíssimo Senhor Doutor Desembargador Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

 

 

 

 

 

 

 

Protocolado n. 99.137/13

 

 

 

 

 

 

 

Ementa: Constitucional. Administrativo. Urbanístico. Lei n. 15.802, de 13 de junho de 2013, do Município de São Paulo, de iniciativa parlamentar. Ação Direta Inconstitucionalidade. Gestão patrimonial dos bens públicos. Incorporação de praça a parque público. Violação da separação de poderes. Desvinculação do planejamento integral global. Desvio de finalidade. 1. Não é admitida lei de iniciativa parlamentar em tema da gestão patrimonial de bens públicos, incorporando trecho de praça a parque público, à luz da separação de poderes (arts. 5º e 47, II e XIV, CE/89). 2. A adoção de normas municipais alheadas ao plano diretor configura indevido fracionamento, permitindo soluções tópicas, isoladas e pontuais, desvinculadas do planejamento urbano integral global, vulnerando sua compatibilidade com o plano diretor e sua integralidade, e sua conformidade com as normas urbanísticas (arts. 180, I e V, e 181, § 1º, CE/89). 3. Lei, ademais, cujo escopo é o atendimento de interesses particulares, caracterizando por seu descompromisso aos princípios de impessoalidade e finalidade inconstitucionalidade por desvio de poder de ato legislativo (art. 111, CE/89).

 

 

 

 

 

 

 

 

                   O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, VI, da Lei Complementar Estadual n. 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público do Estado de São Paulo), em conformidade com o disposto no art. 125, § 2º, e no art. 129, IV, da Constituição Federal, e, ainda, nos arts. 74, VI, e 90, III, da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado, vem, respeitosamente, perante esse egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE em face da Lei n. 15.802, de 13 de junho de 2013, do Município de São Paulo, pelos fundamentos a seguir expostos:

I – O Ato Normativo Impugnado

1.                O Município de São Paulo editou a Lei n. 15.802, de 13 de junho de 2013, de iniciativa parlamentar, cujo teor é o seguinte:

“Art. 1º. Fica a área pública de uso comum do povo denominada Praça Maria Helena Monteiro de Barros Saad, localizada no Jardim Luzitânia, Distrito de Moema, incorporada ao Parque Ibirapuera, passando a dele fazer parte em caráter definitivo e para todos os fins legais e administrativos.

Art. 2º. Fica vedada a construção de obra viária de qualquer natureza que prejudique a continuidade da área incorporada ao Parque Ibirapuera nos termos do art. 1º desta Lei, assim como qualquer obra nessa mesma área que resulte em impermeabilização do terreno ou em prejuízo para a vegetação nela existente.

Art. 3º. As despesas decorrentes da execução desta lei correrão por conta das dotações orçamentárias próprias, suplementadas, se necessário.

Art. 4º. O Poder Executivo regulamentará a presente lei, no que couber, no prazo máximo de 60 (sessenta) dias, contados de sua publicação.

Art. 5º. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário” (fl. 06).

2.                A justificativa do projeto de lei respectivo demonstra seu desiderato para “resolver definitivamente a polêmica que envolve a abertura de uma ‘alça’ de acesso entre as Avenidas ‘Pedro Álvares Cabral’ e ‘IV Centenário’ (...)”, aludindo que a pretensão converge a “anulação do acordo firmado entre o Ministério Público, a Prefeitura Municipal de São Paulo e a Companhia de Engenharia de Tráfego, firmado em 28 de dezembro de 2007”, bem como a “oficialização, por parte dos órgãos competentes, quais sejam Subprefeitura de Vila Mariana, Secretaria do Verde e Meio Ambiente e Prefeitura Municipal, da incorporação definitiva da área da referida praça ao Parque Ibirapuera” (fls. 127/128).

3.                No trâmite do Projeto de Lei n. 435/08, atendendo diligência da Comissão de Política Urbana Metropolitana e de Meio Ambiente da Câmara Municipal de São Paulo (fls. 141/142), o Secretário do Governo Municipal assim se manifestou:

“Esclareço a essa Presidência que, relativamente ao mesmo assunto, tramitam perante a 3ª Vara da Fazenda Pública duas ações civis públicas, a saber:

·       uma promovida pelo Ministério Público do Estado de São Paulo contra a Municipalidade de São Paulo e outros, em que as partes firmaram acordo no sentido de restaurar o acesso à Av. IV Centenário pela Av. Pedro Álvares Cabral e restabelecer a Praça Maria Helena M. de Barros Saad ao estado anterior ao de sua anexação com a primeira avenida e o Parque do Ibirapuera, transferindo a esse parque a vegetação a ser suprimida com a reabertura da via (autos nº 583.53.2007.119565-5);

·       outra promovida pela Sociedade dos Moradores e Amigos do Jardim Luzitânia contra a Municipalidade de São Paulo, com o objetivo de declarar a nulidade de cláusulas do acordo supra citado (autos nº 642/053.08.108601-3).

Assim sendo, estando ‘sub judice’ a questão objeto da propositura, resta prejudicada a possibilidade de prosseguimento do projeto de lei em causa e, consequentemente, o oferecimento de resposta ao pedido de subsídios formulado pela aludida Comissão” (fls. 146/148).

4.                Não obstante chamada a atenção na segunda audiência pública realizada para a necessidade do tratamento do assunto no “processo revisional do Plano Diretor” (fl. 156), o projeto de lei foi aprovado, e sancionada a lei dele resultante (fls. 168/174).

5.                Os fatos que objetivamente gravitam em torno da lei em foco se resumem na impugnação, por ação civil pública movida pelo Ministério Público (fls. 224/234), do programa de comunidade protegida (traffic calming), que se operacionalizou, dentre vários mecanismos, pelo fechamento de acessos à Avenida IV Centenário mediante anexação da Praça Maria Helena Monteiro de Barros Saad, limitando o acesso e a circulação aos moradores das adjacências em procedimento de “desafetação dissimulada”, e cuja solução se obteve pela celebração de composição judicial em 28 de dezembro de 2007 (fls. 235/239), e que foi desafiada por outra ação civil pública ajuizada pela Associação dos Moradores do Jardim Luzitânia (fls. 240/263) julgada extinta sem resolução do mérito justamente pelo advento da Lei n. 15.802/13 (fls. 203/204).

6.                Segundo consta da manifestação da Procuradoria-Geral do Município, “a CET alegou que a medida foi tomada em razão da determinação do então Secretário do Verde e Meio Ambiente, Adriano Diogo” (fl. 264), que, por essa razão foi processado pela prática de ato de improbidade administrativa (fls. 80/94) e condenado à suspensão dos direitos políticos, ao pagamento de multa civil e à proibição de contratação com o poder público ou de recebimento de benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios (fls. 95/105) porque, como consta da sentença, “de modo reprovável determinou o fechamento da ligação entre as avenidas Pedro Álvares Cabral e IV Centenário, sem qualquer procedimento administrativo e/ou autorização dos órgãos competentes, visando o privilégio dos moradores da região, em flagrante afronta aos princípios da moralidade administrativa, da legalidade e da finalidade” (fl. 104).

II – O parâmetro da fiscalização abstrata de constitucionalidade

7.                A lei municipal impugnada contraria frontalmente a Constituição do Estado de São Paulo, à qual está subordinada a produção normativa municipal ante a previsão dos arts. 1º, 18, 29 e 31 da Constituição Federal.

8.                Os preceitos da Constituição Federal e da Constituição do Estado são aplicáveis aos Municípios por força do art. 29 daquela e do art. 144 desta.

9.                A Lei n. 15.802/13 é incompatível com os seguintes preceitos da Constituição Estadual:

“Artigo  - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

(...)

§ 2º - O cidadão, investido na função de um dos Poderes, não poderá exercer a de outro, salvo as exceções previstas nesta Constituição.

(...)

Artigo 47 - Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

(...)

II - exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

(...)

XIV - praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

(...)

Artigo 111 – A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência.

(...)

Artigo 144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.

(...)

Artigo 180 - No estabelecimento de diretrizes e normas relativas ao desenvolvimento urbano, o Estado e os Municípios assegurarão:

I - o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e a garantia do bem-estar de seus habitantes;

(...)

V - a observância das normas urbanísticas, de segurança, higiene e qualidade de vida;

(...)

Artigo 181 - Lei municipal estabelecerá, em conformidade com as diretrizes do plano diretor, normas sobre zoneamento, loteamento, parcelamento, uso e ocupação do solo, índices urbanísticos, proteção ambiental e demais limitações administrativas pertinentes.

§ 1º - Os planos diretores, obrigatórios a todos os Municípios, deverão considerar a totalidade de seu território municipal”.

10.              Não é admitida lei de iniciativa parlamentar em tema de gestão patrimonial de bens públicos, incorporando trecho de praça a parque público, à luz da separação de poderes. No caso, há manifesta incompatibilidade da lei municipal com os arts. 5º e 47, II e XIV, da Constituição Estadual.

11.              Em outras palavras, é ato ordinário e típico de Administração, exclusivamente reservado ao Poder Executivo e à margem de interferência do Parlamento, definir a gestão dos bens públicos sem alterar sua afetação e delimitar seu uso de acordo com essa afetação.

12.              A divisão funcional do poder (separação de poderes) é tradicional pedra fundamental do Estado de Direito assentada na ideia da repartição das funções estatais e sua entrega a órgãos que as exercem com independência e harmonia, vedando interferências indevidas de um sobre o outro.

13.              Como consequência do princípio da separação dos poderes, a Constituição Estadual, perfilhando as diretrizes da Constituição Federal, comete a um Poder competências próprias, insuscetíveis de invasão por outro. Assim, ao Poder Executivo são outorgadas atribuições típicas da função administrativa, como, por exemplo, dispor sobre a sua organização e seu funcionamento. Em essência, a separação ou divisão de poderes:

“consiste um confiar cada uma das funções governamentais (legislativa, executiva e jurisdicional) a órgãos diferentes (...) A divisão de Poderes fundamenta-se, pois, em dois elementos: (a) especialização funcional, significando que cada órgão é especializado no exercício de uma função (...); (b) independência orgânica, significando que, além da especialização funcional, é necessário que cada órgão seja efetivamente independente dos outros, o que postula ausência de meios de subordinação” (José Afonso da Silva. Comentário contextual à Constituição, São Paulo: Malheiros, 2006, 2ª ed., p. 44).

14.              Daí também decorre uma série de mecanismos de controle recíprocos de um sobre o outro para evitar abusos e disfunções ao lado da fixação estática de competências próprias, como observa a doutrina:

“É a esse arranjo, mediante o qual, pela distribuição de competências, pela participação parcial de certos órgãos estatais controlam-se e limitam-se reciprocamente, que os ingleses denominavam, já anteriormente a Montesquieu, sistema de ‘freios recíprocos’, ‘controles recíprocos’, ‘reservas’, ‘freios e contrapesos’ (checks and controls, checks and balances), tudo isso visando um verdadeiro ‘equilíbrio dos poderes’ (equilibrium of powers).

(...)

A distribuição das funções entre os órgãos do Estado (poderes), isto é, a determinação das competências, constitui tarefa do Poder Constituinte, através da Constituição. Donde se conclui que as exceções ao princípio da separação, isto é, todas aquelas participações de cada poder, a título secundário, em funções que teórica e normalmente competiriam a outro poder, só serão admissíveis quando a Constituição as estabeleça, e nos termos em que fizer. Não é lícito à lei ordinária, nem ao juiz, nem ao intérprete, criarem novas exceções, novas participações secundárias, violadoras do princípio geral de que a cada categoria de órgãos compete aquelas funções correspondentes à sua natureza específica” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, pp. 581, 592-593).

15.              No caso, a lei local invadiu a reserva da Administração disciplinando assunto que não se insere no feixe de suas competências, mas, no conjunto de atribuições do Poder Executivo relativo à prática de atos de administração e de gestão. Ela penetrou no âmbito próprio do Poder Executivo praticando revisão de ato por este exercido (composição em ação civil pública). Portanto, violou a denominada reserva da Administração, espaço conferido ao Poder Executivo para a prática de atos de sua exclusiva competência, sem possibilidade de interferência do Poder Legislativo. Como assentado em decisão do Supremo Tribunal Federal:

“RESERVA DE ADMINISTRAÇÃO E SEPARAÇÃO DE PODERES. - O princípio constitucional da reserva de administração impede a ingerência normativa do Poder Legislativo em matérias sujeitas à exclusiva competência administrativa do Poder Executivo. É que, em tais matérias, o Legislativo não se qualifica como instância de revisão dos atos administrativos emanados do Poder Executivo. Precedentes. Não cabe, desse modo, ao Poder Legislativo, sob pena de grave desrespeito ao postulado da separação de poderes, desconstituir, por lei, atos de caráter administrativo que tenham sido editados pelo Poder Executivo, no estrito desempenho de suas privativas atribuições institucionais. Essa prática legislativa, quando efetivada, subverte a função primária da lei, transgride o princípio da divisão funcional do poder, representa comportamento heterodoxo da instituição parlamentar e importa em atuação ultra vires do Poder Legislativo, que não pode, em sua atuação político-jurídica, exorbitar dos limites que definem o exercício de suas prerrogativas institucionais” (STF, ADI-MC 2.364-AL, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 01-08-2001, DJ 14-12-2001, p. 23).

16.              E se afigura irrelevante para o debate a sanção ao projeto de lei portador de vício de iniciativa ou de competência. Com efeito, esse entendimento que era amparado pela Súmula 05 do Supremo Tribunal Federal foi há muito revogado, como decidido pela própria Suprema Corte (STF, ADI 1.438-DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ilmar Galvão, 05-09-2002, v.u., DJ 08-11-2002, p. 21).

17.              Sob outro ângulo, a lei local é incompatível com os arts. 180, I e V, e 181 e § 1º, da Constituição do Estado de São Paulo.

18.             A disciplina urbanística das cidades é gizada por preceitos diretivos e gerais, dentre eles a necessidade de buscar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade (art. 180, I, Constituição Estadual) e a observância das normas urbanísticas (art. 180, V, Constituição Estadual). Esses preceitos se interagem porque a legitimidade constitucional das normas urbanísticas repousa sobre a garantia do pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade, sendo uma delas propriamente a liberdade de circulação que, in casu, é afetada negativamente pela lei local que restringe a fruição do bem público aos munícipes residentes no entorno ao incorporá-la ao parque público.

19.              Ademais, prega a Constituição Estadual a necessidade de as leis urbanísticas manterem relação de conformidade com o plano diretor, que é instrumento normativo de caráter integral e global de ordenação urbanística das comunas (art. 181 e § 1º).

20.              A adoção de normas municipais alheadas ao plano diretor configura indevido fracionamento, permitindo soluções tópicas, isoladas e pontuais, desvinculadas do planejamento urbano integral, vulnerando sua compatibilidade com o plano diretor e sua integralidade. O Supremo Tribunal Federal entende possível o contencioso de constitucionalidade sem que se configure contraste entre a lei impugnada e o plano diretor, estimando desafio direto e frontal à Constituição:

“(...) Plausibilidade da alegação de que a Lei Complementar distrital 710/05, ao permitir a criação de projetos urbanísticos ‘de forma isolada e desvinculada’ do plano diretor, violou diretamente a Constituição Republicana. (...)” (STF, QO-MC-AC 2.383-DF, 2ª Turma, Rel. Min. Ayres Britto, 27-03-2012, v.u., 28-06-2012).

21.              O aparteamento ao plano diretor configura, outrossim, inexorável violação do princípio de planejamento que inspira a exigência constitucional do plano diretor. Vale dizer, as soluções urbanísticas para não perderem coesão, uniformidade e sistematicidade devem ser formalmente concebidas no plano diretor que materialmente condiciona toda a produção normativa e administrativa superveniente, revelando a necessidade de planejamento técnico-urbanístico para autorizar intervenções urbanísticas de qualquer jaez.

22.              Last, but not the least, a contextura circundante à edição da lei impugnada revela sensível agravo aos princípios de impessoalidade e finalidade, adotados no art. 111 da Constituição do Estado de São Paulo em harmonia com o art. 37 da Constituição da República. Houve inequívoco desvio de poder de legislar.

23.              A incorporação da praça ao parque público tem o exclusivo escopo de privilegiar os moradores das adjacências através da limitação do direito de circulação, vedado aos demais. A lei tem “endereço certo”: ela suprime a praça pública da integração às vias públicas, para restringir a circulação.

24.              Não é novidade alguma o controle concentrado de constitucionalidade de lei ou ato normativo por desvio de poder. A esse respeito, reporta-se a elucidativo escólio da lavra de Caio Tácito:

“No exercício de suas atribuições e nas matérias a eles afetas, os órgãos legislativos, em princípio, gozam de discricionariedade peculiar à função política que desempenham.

Temos, contudo, sustentando a necessidade de temperamento da latitude discricionária de ato do Poder Legislativo, ainda que fundado em competência constitucional e formalmente válido.

O princípio geral de Direito de que toda e qualquer competência discricionária tem como limite a observância da finalidade que lhe é própria, embora historicamente vinculado à atividade administrativa, também se compadece, a nosso ver, com a legitimidade da ação do legislador.

Tivemos, oportunidade de sustentar, perante o STF, em duas oportunidades, a nulidade de leis estaduais em que, no término de governos vencidos nas urnas, eram criados cargos públicos em número excessivo, não reclamados pela necessidade pública, e comprometendo gravemente as finanças do Estado, tão-somente para o aproveitamento de correligionários ou de seus familiares.

Para o desfazimento dessas leis, que caracterizavam os chamados ‘testamentos políticos’, o STF consagrou a tese da validade de novas leis que, anulando leis inconstitucionais, reconheciam o abuso pelos Poderes Legislativos estaduais da competência, em princípio discricionária, da criação de cargos públicos.

O primeiro acórdão, proferido no MS 7.243, em sessão de 20.1.69, manteve a anulação de leis do Estado do Ceará com as quais, no apagar das luzes de uma situação política derrotada, em apenas 56 dias, mediante 25 atos legislativos foram instituídos, sob a forma de criação ou transformação, 3.784 novos cargos públicos, o que equivalia a um-terço do total do funcionalismo estadual então existente, estimado em 12.000 servidores, elevando o custo mensal do pessoal a 94,24% das rendas do Estado.

Por essa forma, violava-se norma expressa da Constituição estadual, que fixava o teto de 50% para a vinculação da receita ao custeio do funcionalismo público, e se objetivava impedir o funcionamento regular do Poder Executivo, no período do novo mandato que se ia inaugurar.

Em comentário a essa decisão, que firmou precedente memorável, destacávamos a importância da tese por ela abonada:

‘A competência legislativa para criar cargos públicos visa ao interesse coletivo de eficiência e continuidade da administração. Sendo, em sua essência, uma faculdade discricionária, está, no entanto, vinculada à finalidade, que lhe é própria, não podendo ser exercida contra a conveniência geral da coletividade, com o propósito manifesto de favorecer determinado grupo político, ou tornar ingovernável o Estado, cuja administração passa, pelo voto popular, às mãos adversárias.

‘Tal abandono ostensivo do fim a que se destina a atribuição constitucional configura autêntico desvio de poder (détournement de pouvoir), colocando-se a competência legislativa a serviço de interesses partidários, em detrimento do legítimo interesse público’ (RDA 59/347 e 348).

A mesma situação se renovou, no Estado do Rio Grande do Norte, perante outro testamento político de um governo vencido no pleito eleitoral sucessório, em que se comprometia desmedidamente o erário, elevando a mais de 80% a despesa com o funcionalismo público.

Em decisão proferida na Repr. 512, julgada, por unanimidade, pelo Tribunal Pleno, em sessão de 7.12.62, o STF reputou legítima a anulação, pela Assembléia Legislativa, de leis inconstitucionais que compunham o testamento político em causa.

Em memorial oferecido como advogado do novo governo estadual, ponderávamos que ‘o desvio de poder legislativo, caracterizado no inventário político, ofende o princípio da independência e harmonia dos Poderes, além de violar a Constituição estadual’.

Em acórdãos posteriores os RE 48.655 e 50.219 (RDA 78/269 e 281), aplicando a orientação firmada, a Corte Suprema reafirmou a tese da anulação, pelo Poder Legislativo, de seus próprios atos inconstitucionais.

A acolhida do cabimento do desvio de finalidade como vício de inconstitucionalidade fora anteriormente abonada em outro julgado do STF em voto do Min. Orozimbo Nonato, relator do RE 18.331, que, nos termos da respectiva ementa, após recordar o conhecido axioma de que o poder de taxar não se pode extremar como poder destruir, destaca: ‘É um poder cujo exercício não deve ir até o abuso, o excesso, o desvio, sendo aplicável, ainda que, a doutrina fecunda do détournement de pouvoir’ (RF 145/146).

O excesso do poder de taxar foi igualmente repelido com respeito à lei do Estado do Rio de Janeiro que exigia taxa judiciária em termos excessivos, sem correspondência com o serviço prestado (Repr. 1.077, RTJ 11/55).

Comentando o sentido inovador da jurisprudência do Pretório Excelso, registra Seabra Fagundes, entre as fecundas criações pretorianas, ‘a extensão da teoria do desvio de poder originária e essencialmente dirigida aos procedimentos dos órgãos executivos, aos atos do poder legiferante, de maior importância num sistema de Constituição rígida, em que se comete ao Congresso a complementação do pensamento constitucional nos mais variados setores da vida social, econômica e financeira’ (RF 151/549).

Em decisão de 31.8.67, no RMS 16.912, o tema do desvio de poder como vício especial do ato legislativo foi expressamente invocado.

Apreciando lei de organização judiciária na qual se inseria emenda em benefício de determinado serventuário, advertiu o Min. Prado Kelly: ‘tratava-se de reforma judiciária e a emenda representou um desvio de poder na própria legislatura’. Sendo o mesmo Ministro as seguintes expressões: ‘Tenho por demonstrado que a emenda não obedeceu ao presumido escopo de interesse público e sim a uma inspiração que nem por ser equânime ou reparadora (como pareceu ao interveniente) deixa de ser particularista ou de favorecimento pessoal’.

Nessa decisão plenária, o Min. Victor Nunes Leal, após aderir à posição ‘de que podemos exercer controle sobre os desvios de poder da própria legislatura’, convocado por interpelação do Min. Aliomar Baleeiro a declarar ‘se admitia um desvio de poder do Poder Legislativo fora do caso de inconstitucionalidade’, não vacilou em afirmar categoricamente: ‘Admito’ (acórdão no RMS 16.912, RTJ 45/530-545, especialmente pp. 536 e 537).

Em questão relativa à permissão para explorar linhas de ônibus, o STF apreciou a incidência do desvio de poder legislativo, admitindo, em tese, a aplicação do princípio (RTJ 47/650 e 48/165).

Em três situações o STF repeliu, por inconstitucionalidade, a aplicação de sanções administrativas com a finalidade real de constranger o contribuinte à regularidade fiscal.

Decidiu a Corte Suprema que ‘é inadmissível a interdição de estabelecimento ou apreensão de mercadorias como meio coercitivo para a cobrança de tributo’ (Súmulas 70 e 323).

E, dilatando o princípio à inconstitucionalidade dos Decs.- leis 5 e 42, de 1937 – que restringiam indiretamente a atividade comercial de empresas em débito, impedindo-as de comprar selos ou despachar mercadoria – implicitamente configurou o abuso de poder legislativo (Súmula 547 e acórdão no RE 63.026, RDA 10/209).

O excesso legislativo foi invocado em acórdão do STF no RE 62.731, do qual foi Relator o Min. Aliomar Baleeiro. Afirmou-se a inconstitucionalidade de decreto-lei que vedava a purgação de mora em locações. Destacou a ementa da decisão a impertinência do fundamento por se tratar de ‘assunto miúdo de Direito Privado’ que não se incluía no conceito de segurança nacional, necessário àquela forma de processo legislativo (RDA 94/169).

O poder de polícia nas profissões somente pode ser exercido com observância do princípio da razoabilidade, afirmou o acórdão na Repr. 930 (apud Gilmar Ferreira Mendes, ob. cit., p. 451).

E porque o impedimento do exercício profissional da advocacia há juizes aposentados até dois anos após a inatividade ofendia o princípio da razoabilidade, foi declarada a inconstitucionalidade da lei que estabelecia tal interdição temporária, por violação àquele princípio (Repr. 1.054, RTJ 112/7).

Em parecer no qual analisamos a inconstitucionalidade de deliberação do Banco Central do Brasil determinante da indisponibilidade de contas bancárias do Estado – membro a suas empresas, enfatizávamos que ‘importa desvio do Poder Legislativo decreto lei que se utilize do bloqueio de contas bancárias como meio de cobrança regressiva de aval a empréstimos externos’ (RDA 172/239).

Em outro parecer relativo à validade da lei municipal que subordinava a permissão de funcionamento de estabelecimentos comerciais aos sábados e domingos à prévia aprovação pelos órgãos sindicais, entendíamos ocorrer violação da competência legal, a ser exercida pelo Município, como emanação do poder de polícia.

Ressaltamos que, obrigando à intervenção dos sindicatos para a obtenção de licença especial de funcionamento, o legislador teve em mira o fortalecimento do sistema sindical, invadindo órbita de competência privativa da União.

Concluímos, assim, que, ‘a toda evidencia, a lei municipal, visando, a beneficiar o movimento sindical está maculada pelo vício de abuso do poder normativo, caracterizado como desvio de finalidade’ (RDA 164/460).

O tema do desvio de poder legislativo foi amplamente estudado, no Direito italiano, por Lívio Paladin, em ensaio sob o título ‘Osservazioni sulla discrezionalità e sull’eccesso di potere del legislatore ordinario’ (Rivista Trimestrale di Diritto Pubblico, ano VI, 4/993-1.046, outubro – dezembro/56).

Pondera o autor que: ‘L’illegitimità di ogni fine, diverso da quello costituzionalmente previsto, consente logicametne di configurare, sul piano legisltaivo, qual vizio della causa degli atti amministrativi, ch è l’ecesso di potere’ (‘A ilegitimidade de todo fim, diverso daquele constitucionalmente previsto, conduz logicamente afigurar-se, no plano legislativo, aquele vício de causa dos atos administrativos, que é o excesso de poder’) (Rivista cit. p. 1.031).

A figura do desvio de poder legislativo foi, pioneiramente, sustentada por Santi Romano, que, reconhecendo o poder discricionário do legislador, destaca, porém, o limite que se impõe em face da finalidade da competência legislativa: ‘ma la figura dele potere discrezionale richiede per l’appunto che di esse si faccia uso conforme alle finalità da cui il potere medismo deriva; si há altrimenti uno sviamento di potere, che costituisse uma violazione di direitto, nel senso più próprio della parola. Son concetti questi di commune applicazione riguado alle compentenza degli oragnia amministrativi e non si saprebbe indicarei l pechè non possono riferirsi, nella loro generalità, al Parlamento. In certi campoi della sua funzione legislativa, questo non há poteri sconfinati, ma poteri discricionali, il che vuol dire litate, e non altro, dall’obbligo di fare uso per dati motivi’ (‘mas a figura do poder discricionário reclama precisamente que dele se faça uso conforme à finalidade, da qual o próprio poder deriva: há de outra forma um desvio de poder que constitui uma violação de direito no sentido próprio da palavra. São conceitos estes de aplicação comum no que se refere à competência dos órgãos administrativos, e não se saberá indicar por que não parecem se referir em sua generalidade, ao Parlamento. Em certos campos de sua competência legislativa, este não possui poderes sem fronteiras, mas poderes discricionários, importa dizer, limitados pelo menos da obrigação de fazer uso por motivos determinados’) (‘Osservazioni preliminari per uma teoria sui limite della funzione legislativa nel Diritto Pubblico’, 1902, e incluído na coletânea Scriti Minori – Diritto Costituzionale, v. I/199, 1950).

Não é outro o pensamento de Costantino Mortati quando adverte que ‘a lei poderá estar viciada de inconstitucionalidade não somente quando o interesse perseguido contrasta com aquele imposto pela Constituição, mas também nos casos em que o próprio teor da lei está em absoluta incongruência com a norma editada e o fim do interesse público a ser perseguido e o próprio legislador afirma pretender perseguir. Verifica-se, nessa ultima hipótese, uma modalidade de vício de legitimidade assimilável ao excesso de poder administrativo’ (‘la legge può risultare viziata per incostituzionalità non solo quando l’interesse perseguito contrasta com quelllo imposto dalla Costituzione, ma anche nei casi in cui dallo stesso tenore della legge risulti un’assouta incongruenza fra la norma dettata ed il fine di pubblico interesse che si doveva perseguire e che lo stesso legislatore assume di volere perseguire. Si verificherebbe in quest’ultima ipotese un’ipotesi di vizio della legittimità assimilabile a quello dell’eccesso di potere amministrativo’) (verbete ‘Discricionalità’, Novissimo Digesto Italiano, v. V/1.09).

Entendemos, em suma, que a validade da norma de lei, ato emanado do Legislativo, igualmente se vincula à observância da finalidade contida na norma constitucional que fundamenta o poder de legislar.

O abuso de poder legislativo, quando excepcionalmente caracterizado, pelo exame dos motivos, é vício especial de inconstitucionalidade da lei, pelo divórcio entre o endereço real da norma atributiva da competência e o uso ilícito que a coloca a serviço de interesse incompatível com a sua legitima destinação.

Gilmar Ferreira Mendes dedicou capítulo especial de sua monografia sobre controle de constitucionalidade à avaliação do excesso de poder legislativo como vício substancial de inconstitucionalidade. Com apoio na doutrina alemã e na lição de Canotilho, evidencia a prevalência da vinculação do ato legislativo a uma finalidade e à aplicação do princípio da proporcionalidade como elemento da legitimidade constitucional das leis. Oferece, como exemplos, precedentes colhidos na jurisprudência do STF (Controle de Constitucionalidade, Saraiva, 1990, pp. 38-54).

Canotilho adverte que a lei é vinculada ao fim constitucionalmente fixado e ao princípio de razoabilidade a fundamentar ‘a transferência para os domínios da atividade legislativa da figura do desvio de poder dos atos administrativos’ (Direito Constitucional, 4ª ed., 1986, p. 739)”.

25.              E, mais amplamente, o mesmo autor estuda o desvio de poder legislativo diante do princípio de que “as leis estão todas positivamente vinculadas quanto a fim pela Constituição” (Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra, 1982, p. 259)’. (Caio Tácito. “Desvio de Poder no Controle dos Atos Administrativos, Legislativos e Jurisdicionais”, in Revista Trimestral de Direito Público, n. 04, São Paulo: Malheiros, 1993, pp. 33-37).

26.              No caso em exame, a lei local impugnada tanto serve ao interesse dos moradores dos bairros adjacentes quanto ao dos agentes públicos que outrora consentiram na anexação e, por isso, têm sua responsabilidade demandada em juízo.

III – Pedido liminar

27.              À saciedade demonstrado o fumus boni iuris, pela ponderabilidade do direito alegado, soma-se a ele o periculum in mora. A atual tessitura da lei apontada como violadora de princípios e regras da Constituição do Estado de São Paulo é sinal, de per si, para suspensão de sua eficácia até final julgamento desta ação, evitando-se atuação desconforme o ordenamento jurídico, criadora de lesão irreparável ou de difícil reparação, sobretudo pelo prejuízo à adequada ordenação urbana e às prerrogativas exclusivas do Poder Executivo.

28.              À luz desta contextura, requer a concessão de liminar para suspensão da eficácia, até final e definitivo julgamento desta ação, da Lei n. 15.802, de 13 de junho de 2013, do Município de São Paulo.

IV – Pedido

28.              Face ao exposto, requerendo o recebimento e o processamento da presente ação para que, ao final, seja julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei n. 15.802, de 13 de junho de 2013, do Município de São Paulo.

29.              Requer-se ainda sejam requisitadas informações ao Prefeito e à Câmara Municipal de São Paulo, bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para se manifestar sobre os atos normativos impugnados, protestando por nova vista, posteriormente, para manifestação final.

                   Termos em que, pede deferimento.

                   São Paulo, 05 de maio de 2014.

 

 

 

 

 

Márcio Fernando Elias Rosa

Procurador-Geral de Justiça

 

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