EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO E. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

 

 

 

Protocolado nº 125.147/2013

 

 

Ementa:

1)     Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 5.510, de 12 de agosto de 2013, do Município de Sumaré, de iniciativa parlamentar, que “Autoriza o Poder Executivo Municipal a conceder transporte gratuito para enterros realizados pelo Município de Sumaré aos Munícipes de baixa renda”.

2)     A instituição de programas e serviços administrativos, por órgãos do Poder Executivo, é matéria da reserva da Administração e da iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo, sendo inconstitucional lei de iniciativa parlamentar, maculada ainda pela ausência de fonte para cobertura de novos gastos públicos (art. 25 da Constituição Estadual).

3)     Violação do princípio da separação de poderes (arts. 5º, 24, § 2, 2, 47, II, XIV, XIX e 144 da Constituição do Estado).

 

 

O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, inciso VI, da Lei Complementar Estadual nº 734 de 26 de novembro de 1993, e em conformidade com o disposto no art. 125, § 2º, e no art. 129, inciso IV, da Constituição da República, e ainda no art. 74, inciso VI, e no art. 90, inciso III, da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado (PGJ nº 82.878/2012), que segue como anexo), vem perante esse Egrégio Tribunal de Justiça promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE da Lei nº 5.510, de 12 de agosto de 2013, do Município de Sumaré, pelos seguintes fundamentos:

1.     ATO NORMATIVO IMPUGNADO

O protocolado que instrui esta inicial de ação direta de inconstitucionalidade foi instaurado a partir de representação do Dr. Alexandre Augusto de Moraes Sampaio Silva,  DD Procurador do Município de Sumaré (fls. 02/03).

A Lei nº 5.510, de 12 de agosto de 2013, do Município de Sumaré, de iniciativa parlamentar, que “Autoriza o Poder Executivo Municipal a conceder transporte gratuito para enterros realizados pelo Município de Sumaré aos Municípes de baixa renda”, foi promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal de Sumaré, após superado o veto do executivo,  com a seguinte redação:

“(...)

Art. 1º - Fica o Poder Executivo Municipal autorizado a conceder transporte gratuito para os enterros realizados pelo serviço funerário do Município de Sumaré, aos Munícipes que não tenham condições financeiras de arcar com as despesas respectivas.

Art. 2º - O Poder Executivo Municipal adotará todas as medidas necessárias no sentido de regulamentar a presente Lei, no prazo de 90 (noventa) dias de sua publicação.

Art. 3º - As despesas decorrentes da presente lei correrão por conta de dotações orçamentárias próprias, suplementadas se necessário.

Art. 4º - Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação.”

A lei é verticalmente incompatível com nosso ordenamento constitucional, como será demonstrado a seguir.

2.     FUNDAMENTAÇÃO

O ato normativo ora impugnado viola o princípio da separação de poderes, previsto no art. 5º, e art. 47, II e XIV, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista.

A autorização para a concessão de transporte gratuito para os enterros realizados pelo serviço funerário do município de Sumaré consiste em matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do Chefe do Executivo.

Com efeito, cabe exclusivamente ao Poder Executivo a criação ou instituição de programas, campanhas e serviços administrativos, nas diversas áreas de gestão, envolvendo os órgãos da Administração Pública Municipal e a própria população.

Assim, quando o Poder Legislativo do Município edita lei criando ou “autorizando o Poder Executivo a criar” novo programa de governo – como ocorre, no caso em exame, em função da criação do denominado “Concessão de transporte gratuito para os enterros”, essa atuação do legislador invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do Administrador Público, viola o princípio da separação de poderes.

A criação de programas municipais, campanhas e serviços administrativos, são atividades nitidamente administrativa, representativa de atos de gestão, de escolha política para a satisfação das necessidades essenciais coletivas, vinculadas aos Direitos Fundamentais. Assim, privativa do Poder Executivo e inserida na esfera do poder discricionário da administração.

Não se trata, evidentemente, de atividade sujeita a disciplina legislativa. Assim, o Poder Legislativo não pode através de lei ocupar-se da administração, sob pena de se permitir que o legislador administre invadindo área privativa do Poder Executivo.

Quando o Poder Legislativo do Município edita lei disciplinando atuação administrativa, como ocorre, no caso em exame, em função da criação do programa “Concessão de transporte gratuito para enterros”, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do Administrador Público, violando o princípio da separação de poderes.

Cabe essencialmente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito da conveniência e da oportunidade da criação de programas, campanhas e serviços administrativos, em benefício dos munícipes. Trata-se de atuação administrativa que decorre de escolha política de gestão, na qual é vedada intromissão de qualquer outro poder.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (arts. 5º, 47, II e XIV e 144).

É pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.

A matéria tratada na lei encontra-se na órbita da chamada reserva da Administração, que reúne as competências próprias de administração e gestão, imunes a interferência de outro poder (art. 47, II e IX da Constituição Estadual - aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144), pois privativas do Chefe do Poder Executivo.

Ainda que se imagine que houvesse necessidade de disciplinar por lei referido programa, a iniciativa seria privativa do Chefe do Poder Executivo, mesmo quando ele não pudesse discipliná-lo por decreto nos termos do art. 47, XIX, da Constituição Estadual.

Assim, a Lei, ao criar programa municipal, de um lado, viola o art. 47, II e XIV, no estabelecimento de regras que respeitam à direção da administração e à organização e ao funcionamento do Poder Executivo, matéria essa que é da alçada da reserva da Administração, e de outro, ela ofende o art. 24, § 2º, 2, na medida em que impõe atribuição ao Poder Executivo.

A inconstitucionalidade transparece exatamente pelo divórcio da iniciativa parlamentar da lei local com esses preceitos da Constituição Estadual.

Ainda que o ato normativo tivesse sido da iniciativa do Chefe do Executivo seria inconstitucional.

A razão é simples: o Chefe do Executivo não necessita de autorização legislativa para fazer aquilo que está na esfera de sua competência constitucional. Se ele encaminha projeto de lei para tal escopo, isso configura hipótese de delegação inversa de poderes, vedada pelo art. 5º, § 1º, da Constituição Paulista.

         Nem se chegaria à conclusão diversa a partir da afirmação de que a lei ora questionada é simples lei autorizativa, da qual não resta nenhuma imposição para o administrador público.

Não é necessário que a lei autorize ou determine ao Poder Executivo fazer aquilo que, naturalmente, encontra-se dentro de sua esfera de decisão e ação.

Em outras palavras, se a lei, fora das hipóteses constitucionalmente previstas, dispõe sobre atividade tipicamente inserida na esfera da Administração Pública, isso significa invasão da esfera de competências do Poder Executivo por ato do Legislativo, configurando-se claramente a violação do princípio da separação de poderes.

A utilização recorrente das chamadas leis autorizativas e tem objetivos de cunho nitidamente políticos, transmitindo aos cidadãos uma falsa ideia de direito subjetivo e de negligência do Poder Executivo.

A propósito do tema já o Supremo Tribunal Federal ao julgou representação (nº 993-9) por inconstitucionalidade de uma lei estadual (Lei nº 174, de 8/12/77, do Estado do Rio de Janeiro) que autorizava o Chefe do Poder Executivo a praticar ato que já era de sua competência constitucional privativa, decidiu que:

“O só fato de ser autorizativa a lei não modifica o juízo de sua invalidade por falta de legítima iniciativa. Não obstante a clareza do acórdão” (Diário da Justiça de 8/10/82, p. 10187, Ementário nº 1.270-1, RTJ 104/46)

A jurisprudência deste E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo tem corroborado o entendimento aqui sustentado. Confiram-se, a título de exemplificação, as seguintes ementas de recentes julgamentos deste C. Órgão Especial:

“EMENTA: Ação Direta de lnconstitucionalidade. Lei Municipal n° 4.934, de 28 de dezembro de 2009', do Município de Americana. Norma que "autoriza o Poder Executivo a celebrar convênio com o Governo do Estado de São Paulo para aceitar créditos do Tesouro do Estado oriundos do Programa de Estimulo ã Cidadania Fiscal do Estado de São Paulo, para pagamento de créditos municipais tributários e não tributários, e dá outras providências'". Projeto de lei de autoria de Vereador. Ocorrência de vício de iniciativa. Competência privativa do chefe do Executivo para a iniciativa de lei sobre organização e funcionamento da Administração, inclusive as que importem indevido aumento de despesa pública sem a indicação dos recursos disponíveis. Inconstitucionalidade por violação ao princípio da separação, independência e harmonia entre os Poderes. Procedência da ação. É inconstitucional lei, de iniciativa parlamentar, que "autoriza o Poder Executivo a celebrar convênio com o Governo do Estado de São Paulo para aceitar créditos do Tesouro do Estado oriundos do Programa de Estimulo à Cidadania Piscai do Estado de São Paulo, para pagamento de créditos municipais tributários e não tributários", por tratar de matéria tipicamente administrativa, cuja competência exclusiva é do chefe do Poder Executivo, responsável para a iniciativa de lei sobre organização e funcionamento da Administração, configurando violação ao princípio da separação de poderes por invasão da esfera da gestão administrativa.” (Adin nº 0179988-64.2012.8.26.0000, Rel. Des. Kioitsi Chicuta, j. 12.12.2012)

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Lei do Município de Americana nº 4.972/2010, a qual cria o Programa de Internet Banda Larga Gratuita no Município Inadmissibilidade Tema relativo a atos de gestão Ingerência do Legislativo em matéria de competência privativa do Executivo Vedação Arts. 37, X, e 169, § 1º, I e II, da CF/88 e arts. 5º, § 2º, 47, II, XIV, 25 e 144, todos da Constituição Paulista. Ação julgada procedente. Deve ser julgada procedente ação direta de inconstitucionalidade de lei municipal que abriga matéria de competência privativa do Executivo, pelo vício de iniciativa e por afrontar o princípio da separação e harmonia entre os Poderes.”     (Adin nº 0180003-33.2012.8.26.0000, Rel. Des. Luis Ganzerla, j. 05.12.2012)

De outro lado, e não menos importante, vale ressaltar que a lei local contestada colide frontalmente com o art. 25 e 176, I, da Constituição do Estado de São Paulo.

A norma combatida ao estabelecer providência administrativa de incumbência do Poder Executivo não indicou especificamente os recursos orçamentários necessários para a cobertura dos gastos advindos que, no caso, são evidentes porquanto ordenam atividades novas na Administração Pública, cuja instalação e desenvolvimento demandam meios financeiros que não foram previstos, não servindo a tanto a genérica menção a rubricas orçamentárias próprias.

3.     PEDIDO

Diante de todo o exposto, aguarda-se o recebimento e processamento da presente ação declaratória, para que ao final seja ela julgada procedente, reconhecendo-se a inconstitucionalidade da Lei nº 5.510, de 12 de agosto de 2013, do Município de Sumaré.

Requer-se ainda que sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Senhor Prefeito Municipal de Sumaré, bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para manifestar-se sobre o ato normativo impugnado.

Posteriormente, aguarda-se vista para fins de manifestação final.

Termos em que,

Aguarda-se deferimento.

 

São Paulo, 09 de maio de 2014.

 

         Márcio Fernando Elias Rosa

         Procurador-Geral de Justiça

 

aca


 

Protocolado nº 125.147/2013

Assunto: Inconstitucionalidade da Lei nº 5.510, de 12 de agosto de 2013, do Município de Sumaré que “Autoriza o Poder Executivo Municipal a conceder transporte gratuito para enterros realizados pelo Município de Sumaré.”

 

 

1.     Distribua-se a inicial da ação direta de inconstitucionalidade.

2.     Comunique-se a propositura da ação ao interessado.

3.     Cumpra-se.

São Paulo, 09 de maio de 2014.

 

 

         Márcio Fernando Elias Rosa

         Procurador-Geral de Justiça

 

aca