Excelentíssimo Senhor Doutor Desembargador Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

 

 

 

 

 

 

Protocolado nº 011.991/13

 

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal nº 6.980, de 19 de dezembro de 2013, de Guarulhos, que “Altera a Lei nº 6.798, de 28/12/2010, que dispõe sobre a Área de Proteção Ambiental Cabuçu – Tanque Grande; altera a Lei nº 6.253, de 24/05/2007, que dispõe sobre o uso, a ocupação e o parcelamento do solo no Município de Guarulhos, e dá outras providências”. 

2)      Violação do Princípio da Proibição de Retrocesso.  Região inserida na Reserva da Biosfera do Cinturão Verde da Cidade de São Paulo (RBCV/SP), reconhecida pela UNESCO e pelo Projeto BIOTA/FAPESP. Ao alterar as áreas para zonas mistas, a lei permitiu que o desenvolvimento urbano não se atenha à necessária preservação e proteção do meio ambiente.

3)      Violação do princípio da participação em matéria ambiental. Não resguardou a necessária participação popular, antes e durante o processo legislativo.

4)      Violação de dispositivos da Constituição do Estado de São Paulo: art. 111; art. 180, caput e inc. II, III, IV e V; art. 181, caput; art. 184, caput e inc. IV; art. 191; art. 192, caput e § 1º; art. 194, caput e parágrafo único; art. 196; art. 197 e art. 198.

5)      Inconstitucionalidade constatada.

           

         O PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO, no exercício da atribuição prevista no art. 116, VI, da Lei Complementar Estadual n. 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo), em conformidade com o disposto no art.125, § 2º, e art. 129, IV, da Constituição Federal, e ainda art. 74, VI, e art. 90, III, da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado (Protocolado nº 011.991/13), vem, respeitosamente, perante esse Egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE da Lei Municipal nº 6.980, de 19 de dezembro de 2013, de Guarulhos, que “Altera a Lei nº 6.798, de 28/12/2010, que dispõe sobre a Área de Proteção Ambiental Cabuçu – Tanque Grande; altera a Lei nº 6.253, de 24/05/2007, que dispõe sobre o uso, a ocupação e o parcelamento do solo no Município de Guarulhos, e dá outras providências”, pelos fundamentos a seguir expostos:

 

1) ATO NORMATIVO IMPUGNADO

A Lei Municipal nº 6.980, de 19 de dezembro de 2013, de Guarulhos, que “Altera a Lei nº 6.798, de 28/12/2010, que dispõe sobre a Área de Proteção Ambiental Cabuçu – Tanque Grande; altera a Lei nº 6.253, de 24/05/2007, que dispõe sobre o uso, a ocupação e o parcelamento do solo no Município de Guarulhos, e dá outras providências”, tem a seguinte redação:

         “Art. 1º  Ficam alterados os trechos das Zona de Uso Controlado - ZUC, Zona de Uso Sustentável 1 - ZUS1 e Zona de Uso Sustentável e Recuperação Ambiental - ZUSRA constantes do Anexo I da Lei Municipal nº 6.798, de 28/12/2010, para Zona Mista - ZM, conforme ilustrado e descrito no Anexo I desta Lei.

Parágrafo único.  Para fins de uso e ocupação do solo, as atividades permitidas e os índices e parâmetros de uso a serem utilizados são aqueles definidos pelo Anexo 03 da Lei Municipal nº 6.253, de 24/05/2007.

Art. 2º Fica excluído parcialmente o perímetro da Zona de Proteção e Desenvolvimento Sustentável 2 - ZPDS2 constante do Anexo 19 da Lei Municipal nº 6.253, de 2007, passando este a integrar a Zona Mista A - ZMA, conforme ilustrado e descrito pelo Anexo II desta Lei.

Art. 3º Fica excluído parcialmente o perímetro da Zona Habitacional - ZH constante do Anexo 19 da Lei Municipal nº 6.253, de 2007, passando este a integrar a Zona Mista A - ZMA, conforme ilustrado e descrito pelo Anexo III desta Lei.

Art. 4º  Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação.”

2) DISPOSITIVOS CONSTITUCIONAIS VIOLADOS PELA LEI IMPUGNADA NESTA AÇÃO

Conforme será amplamente demonstrado na presente inicial, a Lei nº 6.980, de 19 de dezembro de 2011, de Guarulhos, é verticalmente incompatível com a Constituição do Estado de São Paulo, em especial com as seguintes disposições:

“Art. 111 – A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação e interesse público.

(...)

Artigo 180 - No estabelecimento de diretrizes e normas relativas ao desenvolvimento urbano, o Estado e os Municípios assegurarão:

(...)

II - a participação das respectivas entidades comunitárias no estudo, encaminhamento e solução dos problemas, plano, programas e projetos que lhes sejam concernentes;

III - a preservação, proteção e recuperação do meio ambiente urbano e cultural;

IV - a criação e manutenção de áreas de especial interesse histórico, urbanístico, ambiental, turístico e de utilização pública;

V - a observância das normas urbanísticas, de segurança, higiene e qualidade de vida;

(...)

Artigo 181 - Lei municipal estabelecerá em conformidade com as diretrizes do plano diretor, normas sobre zoneamento, loteamento, parcelamento, uso e ocupação do solo, índices urbanísticos, proteção ambiental e demais limitações administrativas pertinentes.

(...)

Artigo 184 - Caberá ao Estado, com a cooperação dos Municípios:

(...)

IV - orientar a utilização racional de recursos naturais de forma sustentada, compatível com a preservação do meio ambiente, especialmente quanto à proteção e conservação do solo e da água;

(...)

Artigo 191 - O Estado e os Municípios providenciarão, com a participação da coletividade, a preservação, conservação, defesa, recuperação e melhoria do meio ambiente natural, artificial e do trabalho, atendidas as peculiaridades regionais e locais e em harmonia com o desenvolvimento social e econômico.

Artigo 192 - A execução de obras, atividades, processos produtivos e empreendimentos e a exploração de recursos naturais de qualquer espécie, quer pelo setor público, quer pelo privado, serão admitidas se houver resguardo do meio ambiente ecologicamente equilibrado.

§ 1º - A outorga de licença ambiental, por órgão, ou entidade governamental competente, integrante de sistema unificado para esse efeito, será feita com observância dos critérios gerais fixados em lei, além de normas e padrões estabelecidos pelo Poder Público e em conformidade com o planejamento e zoneamento ambientais.

(...)

Artigo 194 - Aquele que explorar recursos naturais fica obrigado a recuperar o meio ambiente degradado, de acordo com a solução técnica exigida pelo órgão público competente, na forma da lei.

Parágrafo único - É obrigatória, na forma da lei, a recuperação, pelo responsável, da vegetação adequada nas áreas protegidas, sem prejuízo das demais sanções cabíveis.

(...)

Artigo 197 - São áreas de proteção permanente:

I - os manguezais;

II - as nascentes, os mananciais e matas ciliares;

III - as áreas que abriguem exemplares raros da fauna e da flora, bem como aquelas que sirvam como local de pouso ou reprodução de migratórios;

IV - as áreas estuarinas;

V - as paisagens notáveis;

VI - as cavidades naturais subterrâneas.

Artigo 198 - O Estado estabelecerá, mediante lei, os espaços definidos no inciso V do artigo anterior, a serem implantados como especialmente protegidos, bem como as restrições ao uso e ocupação desses espaços, considerando os seguintes princípios:

I - preservação e proteção da integridade de amostras de toda a diversidade de ecossistemas;

II - proteção do processo evolutivo das espécies;

III - preservação e proteção dos recursos naturais.”

 

3) DO ESTADO DE DIREITO AMBIENTAL E DA OFENSA AO MEIO AMBIENTE ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO

A Constituição Federal de 1988 foi pioneira ao determinar, no plano constitucional, a tutela do bem ambiental, elevando-o à condição de direito/garantia fundamental. No mesmo sentido a Constituição Paulista.

Esse caráter já foi proclamado pelo próprio Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento da Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.540/DF, em acórdão do qual foi relator o eminente Ministro Celso de Mello (Julgamento proferido pelo Tribunal Pleno, em 1/9/2005. DJ de 3-2-2006, p. 14). Do mencionado acórdão, destacamos alguns trechos:

“MEIO AMBIENTE - DIREITO À PRESERVAÇÃO DE SUA INTEGRIDADE (CF, ART. 225) - PRERROGATIVA QUALIFICADA POR SEU CARÁTER DE METAINDIVIDUALIDADE - DIREITO DE TERCEIRA GERAÇÃO (OU DE NOVÍSSIMA DIMENSÃO) QUE CONSAGRA O POSTULADO DA SOLIDARIEDADE (...)

Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Trata-se de um típico direito de terceira geração (ou de novíssima dimensão), que assiste a todo o gênero humano (RTJ 158/205-206). Incumbe, ao Estado e à própria coletividade, a especial obrigação de defender e preservar, em benefício das presentes e futuras gerações, esse direito de titularidade coletiva e de caráter transindividual (RTJ 164/158-161)”.

Portanto, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é direito constitucional fundamental.

E como adverte Luís Roberto Barroso, “a supremacia constitucional, em nível dogmático e positivo, traduz-se em uma superlegalidade formal e material. A superlegalidade formal identifica a Constituição como a fonte primária da produção normativa, ditando competências e procedimentos para a elaboração dos atos normativos inferiores. E a superlagalidade material subordina o conteúdo de toda a atividade normativa estatal à conformidade com os princípios e regras da Constituição. A inobservância dessas prescrições formais e materiais deflagra um mecanismo de proteção da Constituição, conhecido na sua matriz norte-americana como judicial review, e batizado entre nós de ‘controle de constitucionalidade’.” Interpretação e aplicação da Constituição, São Paulo: Saraiva, 1996, p. 153

Portanto, é possível extirpar-se do ordenamento jurídico qualquer espécie normativa que atentar contra a garantia fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, como ocorre com a impugnada Lei pela presente ação.

De se observar que a censurada norma tem o pretexto de dispor sobre alteração de Leis previamente editadas, para tornar áreas de proteção ambientalmente protegidas em zona mista.

Com tal mecanismo, aquelas Áreas de Proteção Ambiental tornaram-se passíveis de ocupação, para as mais diversas formas de uso, como moradia, comércio e até mesmo industrial, permitindo-se a supressão de vegetação nativa dentro delas.

Registre-se, por oportuno, que a região em análise encontra-se inserida na Reserva da Biosfera do Cinturão Verde da Cidade de São Paulo (RBCV/SP), que foi reconhecida em 1994 pela UNESCO, sendo que a RBCV tem o objetivo de “abrigar uma rede de áreas, no globo, de relevante valor ambiental para a humanidade. Representa um forte compromisso do governo local, perante seus cidadãos e a comunidade internacional que realizará os esforços e atos de gestão necessários para preservar esta área e estimular o desenvolvimento sustentável dentro do espírito da solidariedade universal” (www.iflorestal.sp.gov.br/rbcv/index.asp).

Considere-se, ainda, que toda a riqueza ambiental da área foi reconhecida pelo Projeto BIOTA/FAPESP. Este projeto desenvolveu as “Diretrizes para Conservação e Restauração da Biodiversidade no Estado de São Paulo” por intermédio da contribuição de vários cientistas, especialistas em flora, fauna e ecologia da paisagem, ligados às melhores instituições de pesquisa e Universidades do estado, gerando mapas temáticos que permitem visualizar as áreas que concentram maior diversidade biológica e, portanto, aquelas que exigem forte proteção ambiental.

Na figura nº 04 do procedimento que instrui esta inicial (fls. 72/73) observa-se um trecho extraído do Mapa-Síntese de incremento de conectividade em áreas de propriedade privada do projeto BIOTA/FAPESP, que indica áreas prioritárias à implementação de projetos de restauração de áreas de preservação permanente – APP, averbação de reserva legal – RL e criação de reserva particular do patrimônio natural – RPPN. Nesta figura pode-se perceber a importância da conservação da área em tela, pois esta se insere em região de grau de prioridade = 6 (numa escala de 1 a 8).

Portanto, é evidente que a impugnada Lei atenta contra o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e, por isso, ofende os incisos III, IV e V do artigo 180, da Constituição Estadual, pois permite que o desenvolvimento urbano não se atenha à necessária preservação e proteção do meio ambiente.

Também afronta o art. 184, IV, da Constituição Paulista, pois o Município viola o seu dever de cooperar com o Estado na utilização racional de recursos naturais de forma sustentada, compatível com a preservação do meio ambiente.

Outrossim, viola os arts. 191, 197 e 198 da Constituição Bandeirante, que impõe ao Município a preservação, a conservação e a defesa do meio ambiente natural, na medida em que a lei impugnada restringiu a proteção legal conferida às áreas.

Pode-se observar, ainda, afronta ao art. 192, “caput”, por permitir a execução de obras, atividades e empreendimentos, com exploração de recursos naturais sem o necessário resguardo do meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Infelizmente a Lei em comento também afronta outros princípios constitucionais.

4) DA VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA PARTICIPAÇÃO

O bem ambiental não é de propriedade do Poder Público.

Por isso as questões referentes à exploração dos recursos naturais não podem ser decididas de forma unilateral pelo Poder Executivo.

Além do envolvimento do Poder Legislativo, sujeitando-se a questão da exploração dos recursos naturais ao princípio da legalidade, a Constituição Paulista impõe que o Município observe o princípio da participação em matéria ambiental. Participação dos cidadãos e da sociedade.

Com efeito, o art. 191 da Constituição Paulista determina que o Estado e os Municípios providenciem, com a participação da coletividade, a preservação, conservação, defesa, recuperação e melhoria do meio ambiente natural, artificial e do trabalho, atendidas as peculiaridades regionais e locais e em harmonia com o desenvolvimento social e econômico.

Mais uma razão para se evidenciar a inconstitucionalidade da Lei impugnada, pois não resguardou a necessária participação popular, antes e durante o processo legislativo.

Sobre o princípio da participação, ensinam Cláudia M. C. Santos, José E. de O. Figueiredo Dias e Maria A. de S. Aragão, em obra coordenada pelo Professor José Joaquim Gomes Canotilho: “Uma exigência que vem crescentemente sendo posta ao funcionamento da Administração Pública, é a de transparência e de intervenção no funcionamento dos órgãos públicos. Também ao nível do Direito do Ambiente se defende a necessidade de os órgãos públicos e agentes administrativos, e os diversos grupos sociais existentes na comunidade, intervirem, não só de forma consultiva, mas também com um papel ativo nas tomadas de decisão relevantes para o ambiente”.

Se é necessário prevenir os atentados ambientais e garantir que os seus causadores sejam responsabilizados, é igualmente imperioso permitir que os cidadãos (individualmente considerados ou organizados em grupos ou associações) possam ser ouvidos na formulação e execução da política de ambiente.

O princípio (e o correlativo direito) de participação está fortemente ligado a um outro direito que em geral vem sendo reconhecido em termos cada vez mais amplos aos cidadãos: o direito à informação, pois só quando os cidadãos estão devidamente informados é que podem ter oportunidade de exercer convenientemente o seu direito de participação”. Introdução ao direito ao ambiente, Lisboa: Universidade Aberta, 1998, p. 55

A doutrina brasileira também reclama o respeito ao princípio da participação. José Adércio Leite Sampaio, eminente Professor Doutor da PUC Minas, Procurador da República, leciona que “a democracia hodiernamente não se satisfaz apenas com as instâncias deliberativas dos representantes eleitos e de corpos burocráticos fiéis aos comandos legais. Exige-se, em complemento, meios de participação direta do povo ou da comunidade tanto em sede de macrodecisões (plebiscito, referendo e iniciativa legislativa popular), quanto em processos decisórios de menor extensão (decisões administrativas, judiciais coletivas e sociais, condominiais e empresariais, por exemplo) que digam respeito a todos ou os afetem direta ou indiretamente.

As questões ambientais, pela sua natureza, extensão e gravidade, colocam-se como tema da macrodemocracia (consulta popular ambiental como se deu na Itália e Suécia em relação à política nuclear) e da microdemocracia (participação popular e social, sobretudo das chamadas organizações não-governamentais, em audiências públicas e em ações coletivas ambientais).

O direito de participação nos processos decisórios ambientais, pelas suas feições coletivistas, é par de um dever correlato. A própria Constituição brasileira imputa à coletividade o dever de defender e preservar o meio ambiente para as presentes e futuras gerações (art. 225). Uma leitura positivista desse dispositivo enxerga nele apenas um dever jurídico em sentido fraco, mais próximo do ônus, pois o seu descumprimento não importa tecnicamente sanção, mas perda da oportunidade de participar. Ambientalmente, no entanto, a pena pode ser demasiadamente severa: o desaparecimento de um patrimônio ou de um recurso natural”. Princípios de direito ambiental na dimensão internacional e comparada, Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 79-80.

Portanto, a Lei local, neste tema, contraria frontalmente a Constituição do Estado de São Paulo, à qual está subordinada a produção normativa municipal por força dos seguintes preceitos ante a previsão dos arts. 1º, 18, 29 e 31 da Constituição Federal e dos arts. 144 e 297 da Constituição Estadual:

Art. 1º - O Estado de São Paulo, integrante da República Federativa do Brasil, exerce as competências que não lhe são vedadas pela Constituição Federal.

(...)

Art. 144. Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição”.

E manifesta incompatibilidade vertical com o seguinte preceito da Constituição do Estado de São Paulo:

“Art. 180. No estabelecimento de diretrizes e normas relativas ao desenvolvimento urbano, o Estado e os Municípios assegurarão:

(...)

II – a participação das respectivas entidades comunitárias no estudo, encaminhamento e solução dos problemas, plano, programas e projetos que lhes sejam concernentes”.

O dispositivo constitucional destacado consagra o princípio da gestão democrática do planejamento urbano, sendo desdobramento peculiar do inciso XII do art. 29 da Constituição Federal.

Tais dispositivos resultaram violados. A Constituição Paulista exige que a disciplina urbanística da propriedade – inclusive o uso e ocupação do solo do Município – tenha compatibilidade com o plano diretor, assim como sua elaboração e modificação seja precedida de estudos técnicos e da oitiva da comunidade, de maneira a impedir revisões pontuais que molestam o desenvolvimento sustentável, a função social da cidade, o interesse público, o planejamento urbano, o bem-estar dos habitantes e a qualidade de vida nas comunas.

A ausência de participação comunitária não configura apenas um desprezo aos ditames da Constituição do Estado de São Paulo e do Plano Diretor do Município, mas, antes de tudo, fere princípio fundamental do Estado Democrático de Direito:

“Art. 1º. (...)

Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”

 

Não é ocioso obtemperar que a própria Constituição Federal, entre as normas de observância obrigatória dos municípios, destaca a “cooperação das associações representativas no planejamento municipal”, em seu art. 29, XII.

Por isso, o Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001) ao regulamentar a execução da política urbana prevista nos arts. 182 e 183 da Constituição Federal, mais uma vez reforça a exigência de mecanismo de participação popular em matérias urbanísticas, inclusive a legislação de uso e ocupação do solo urbano (arts. 2º, II e III, 40 a 45).

Nesse diapasão, este Egrégio Tribunal de Justiça já decidiu anteriormente pela imprescindibilidade do planejamento precedido de oitiva da comunidade na produção da legislação urbanística:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - Lei n. 2.786/2005 de São José do Rio Pardo - Alteração sem plano diretor prévio de área rural em urbana - Hipótese em que não foi cumprida disposição do art. 180, II, da Constituição do Estado de São Paulo que determina a participação das entidades comunitárias no estudo da alteração aprovada pela lei - Ausência ademais de plano diretor - A participação de Vereadores na votação do projeto não supre a necessidade de que as entidades comunitárias se manifestem sobre o projeto - Clara ofensa ao art. 180, II, da Constituição Estadual - Ação julgada procedente. (TJSP, ADIN 169.508.0/5, Comarca de São Paulo, Rel. Des. Aloísio de Toledo César, j. 18.02.2009)”

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - Lei n° 9327/2001, do Município de Ribeirão Preto, que dá nova redação ao artigo 1º da Lei n° 9.054/2000, regulamentando a implantação de atividades urbanas em áreas de concessão de extração mineral - Espécie normativa que contém norma de zoneamento - Diploma legal, de origem parlamentar, que permite a permanência de empresas de exploração de jazidas minerais já existentes mesmo em áreas situadas no perímetro urbano ou de expansão urbana (fls. 26) - Ausência de prévio planejamento para justificar a modificação da regra que exige distância mínima de quinhentos metros entre as empresas de exploração e as atividades urbanas (fls. 27) - Iniciativa reservada do Chefe do Executivo - Necessidade de oitiva da comunidade em matéria urbanística - Violação dos arts. 5º, 180, II e 181 da Constituição Estadual - Procedência da ação. (TJSP, ADIN 118.709.0/1, Comarca de Ribeirão Preto, Rel. Des. Canguçu de Almeida, j. 30.11.2005)”

Ora, suprimida da comunidade a participação constitucionalmente garantida no processo legislativo da norma em questão, até mesmo desprezando manifestação formal daquela quanto ao seu interesse em interceder democraticamente, verifica-se, extreme de dúvida, a inconstitucionalidade da Lei nº 6.980, de 19 de dezembro de 2011, do Município de Guarulhos.

5) VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DO RETROCESSO

Pode-se afirmar, ainda, que a permissão para a ocupação do solo em área de necessária preservação e de proteção ambiental representa evidente violação ao princípio constitucional da PROIBIÇÃO DE RETROCESSO que, no dizer de Carlos Alberto Molinaro (Direito ambiental: proibição de retrocesso, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 100.), “é o sintagma proposicional de todos os demais princípios do direito ambiental”.

E não pode haver dúvida: é inconstitucional, por violação também ao art. 196 da Lei Maior paulista, lei Municipal que altera unidade de conservação de área dentro de seu perímetro. Ocorre que o citado dispositivo constitucional declara que: as unidades de conservação do Município são espaços territoriais especialmente protegidos e sua utilização far-se-á na forma da lei, dependendo de prévia autorização e dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente.

Por isso, a inconstitucionalidade também se configura pela violação ao Princípio da Proibição de Retrocesso, brilhantemente exposto por Mário De Conto (O princípio da proibição de retrocesso social: uma análise a partir dos pressupostos da hermenêutica filosófica, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 146-147):

“A vinculação exercida pelo Princípio da Proibição de Retrocesso Social é inerente a toda a atividade estatal. O Poder Legislativo, em decorrência da idéia de uma Constituição Dirigente, tem consideravelmente diminuída sua liberdade de conformação, que fica adstrito ao texto constitucional. O Poder Executivo, igualmente, em face da postura intervencionista do Estado, do respeito aos Direitos Fundamentais e da observância do Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana, tem sua conduta vinculada ao texto constitucional. E, finalmente, ao Poder Judiciário cabe, nessa trilha, exercer uma intervencionismo substancialista, no sentido de que os Direitos Fundamentais Sociais sejam realizados, procurando diminuir o déficit existente entre a realidade social e as promessas da modernidade não cumpridas, declarando inconstitucionais medidas estatais de cunho retrocessivo”.

Portanto, a Lei impugnada na presente ação direta é inconstitucional por afrontar diversos princípios e diversos dispositivos da Constituição Estadual, sem prejuízo de afrontar, também, a Constituição Federal.

6) PEDIDO DE LIMINAR

Estão presentes, na hipótese examinada, os pressupostos do fumus bonis iuris e do periculum in mora, a justificar a suspensão liminar da vigência e eficácia da lei impugnada.

A razoável fundamentação jurídica decorre dos motivos expostos, que indicam, de forma clara, a inconstitucionalidade da norma.

O perigo da demora decorre especialmente da ideia de que sem a imediata suspensão da vigência e eficácia do preceito legal questionado, subsistirá a sua aplicação com a possível realização desmatamentos, obras e ocupação do solo, que dificilmente poderão ser revertidas ao status quo, na hipótese provável de procedência da ação direta.

De resto, ainda que não houvesse essa singular situação de risco, restaria, ao menos, a excepcional conveniência da medida.

Com efeito, no contexto das ações diretas e da outorga de provimentos cautelares para defesa da Constituição, o juízo de conveniência é um critério relevante, que vem condicionando os pronunciamentos do Supremo Tribunal Federal, preordenados à suspensão liminar de leis aparentemente inconstitucionais (cf. ADIN-MC 125, j. 15.2.90, DJU de 4.5.90, p. 3.693, rel. Min. Celso de Mello; ADIN-MC 568, RTJ 138/64; ADIN-MC 493, RTJ 142/52; ADIN-MC 540, DJU de 25.9.92, p. 16.182).

Diante do exposto, requer-se a concessão da liminar, para fins de suspensão imediata da eficácia da Lei Municipal nº 6.980, de 19 de dezembro de 2011, de Guarulhos.

7)    CONCLUSÃO E PEDIDO

Diante de todo o exposto, aguarda-se o recebimento e processamento da presente ação declaratória, para que ao final seja ela julgada procedente, reconhecendo-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 6.980, de 19 de dezembro de 2011, de Guarulhos.

Requer-se ainda sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Senhor Prefeito Municipal de Guarulhos, bem como citado o Procurador-Geral do Estado para manifestar-se sobre o ato normativo impugnado.

Posteriormente, aguarda-se vista para fins de manifestação final.

Termos em que,

Aguarda-se deferimento.

São Paulo, 26 de junho de 2014.

 

 

         Márcio Fernando Elias Rosa

         Procurador-Geral de Justiça

wpmj

Protocolado nº 011.991/13

 

 

 

 

 

1.     Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade em face da Lei Municipal nº 6.980, de 19 de dezembro de 2013, de Guarulhos, junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

2.     Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.

 

São Paulo, 26 de junho de 2014.

 

 

         Márcio Fernando Elias Rosa

         Procurador-Geral de Justiça

wpmj