EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO E. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

 

 

 

Protocolado nº 177.399/13

 

 

 

Ementa:

1)     Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 5525, de 03 de setembro de 2013, do Município de Sumaré, de iniciativa parlamentar, que “Autoriza o Poder Executivo Municipal a criar o Abrigo Municipal de Cães e Gatos, no âmbito do município de Sumaré".

2)     A instituição de programas e serviços administrativos e a celebração de convênios, bem como a organização e regulamentação dos serviços públicos, por órgãos do Poder Executivo, é matéria da reserva da Administração e da iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo, sendo inconstitucional lei de iniciativa parlamentar, maculada ainda pela ausência de fonte para cobertura de novos gastos públicos (art. 25 da Constituição Estadual).

3)     Violação do princípio da separação de poderes (arts. 5º, 24, § 2, 2, 47, II, XIV, XIX e 144, da Constituição do Estado).

 

O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, inciso VI, da Lei Complementar Estadual nº 734, de 26 de novembro de 1993, e em conformidade com o disposto no art. 125, § 2º, e no art. 129, inciso IV, da Constituição da República, e ainda no art. 74, inciso VI, e no art. 90, inciso III, da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado (PGJ nº 82.878/2012), que segue como anexo), vem perante esse Egrégio Tribunal de Justiça promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE da Lei nº 5525, de 03 de setembro de 2013, do Município de Sumaré, pelos seguintes fundamentos:

1.     ATO NORMATIVO IMPUGNADO

O protocolado que instrui esta inicial de ação direta de inconstitucionalidade e, a cujas folhas reportar-se-á, foi instaurado a partir de representação do Dr. Eduardo Foffano Neto, DD Procurador Municipal de Sumaré (fls. 2/3).

A Lei nº 5525, de 03 de setembro de 2013, do Município de Sumaré, de iniciativa parlamentar, que “Autoriza o Poder Executivo Municipal a criar o Abrigo Municipal de Cães e Gatos, no âmbito do município de Sumaré" , tem a seguinte redação:

“(...)

Art. 1º - Fica o Poder Executivo autorizado a criar o Abrigo Municipal de Cães e Gatos destinado a resgatar e recuperar animais abandonados, atropelados ou em estado de sofrimento.

Parágrafo Único:- Considera-se em estado de sofrimento o animal submetido à dor ou a estresse físico ou mental.

Art. 2° - Competirá ao Abrigo de que trata o art. 1º desta Lei as seguintes atividades, dentre outras que se fizerem necessárias:

I – resgate;

II – recuperação;

III – castração;

IV – identificação;

V – vacinação;

VI – vermifugação;

VII – encaminhamento à adoção;

VIII – promoção de campanhas sobre a posse consciente e maus tratos de animais.

Art. 3º - O Abrigo Municipal de Cães e Gatos desenvolverá suas atividades em sede própria do Centro de Controle de Zoonoses e será composto pelos seguintes setores, dentre outros:

I – canil;

II – gatil;

III – centro cirúrgico.

Art. 4º - Caberá ao Abrigo Municipal de Cães e Gatos disponibilizar para consulta pública em sítio próprio, na rede municipal de computadores, foto do animal que estiver em sua posse.

Art. 5º - O Abrigo contará com o apoio de equipe multidisciplinar, contendo os seguintes profissionais, dentre outros:

I – médico veterinário;

II – consultor comportamental;

III – auxiliar veterinário e administrativo.

Art. 6 – Sem prejuízo das atividades descritas no art. 2º desta Lei, será instituído canal de comunicação para receber denúncias de maus-tratos de animais, seguido do encaminhamento ao Conselho Municipal de Proteção e Defesa dos Animais e ao setor policial competente.

Art. 7º - O Poder Público, para a consecução dos fins previstos na presente Lei, poderá celebrar convênios com as instituições ou empresas públicas e privadas.

Art. 8º - O Poder Executivo regulamentará a presente Lei, no que couber, no prazo máximo de 90 (noventa) dias, contados da data de sua publicação.

Art. 9º - As despesas com a execução da presente Lei correrão por conta das dotações orçamentárias próprias, suplementadas se necessário.

Art. 10 – Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.”

A lei é verticalmente incompatível com nosso ordenamento constitucional, como será demonstrado a seguir.

2.     FUNDAMENTAÇÃO

O ato normativo ora impugnado viola o princípio da separação de poderes, previsto no art. 5º, e no art. 47, II e XIV, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista.

Cabe exclusivamente ao Poder Executivo a criação ou instituição de programas, bem como a celebração de convênios, nas diversas áreas de gestão, envolvendo os órgãos da Administração Pública Municipal e a própria população.

Assim, quando o Poder Legislativo do Município edita lei criando ou “autorizando o Poder Executivo a criar” novo programa de governo ou convênio – como ocorre, no caso em exame, em função da autorização para a criação do Abrigo Municipal de Cães e Gatos, essa atuação do legislador invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do Administrador Público, violando o princípio da separação de poderes.

Observa-se que o Poder Legislativo não se limitou a autorizar a criação do Abrigo Municipal de Cães e Gatos, ao contrário, disciplinou-o, de forma específica, dispondo sobre a localização da sua sede própria e sobre as atividades que serão realizadas com os animais, determinando a obrigação de disponibilizar fotos dos animais em sítio próprio e de instituir um canal de comunicação para receber denúncias e encaminhá-las ao Conselho Municipal de Proteção e Defesa dos Animais.

A criação de programas municipais, bem como a celebração de convênios para sua organização, é atividade nitidamente administrativa, representativa de atos de gestão, de escolha política para a satisfação das necessidades essenciais coletivas, vinculadas aos Direitos Fundamentais. Assim, privativa do Poder Executivo e inserida na esfera do poder discricionário da administração.

Não se trata, evidentemente, de atividade sujeita a disciplina legislativa. Assim, o Poder Legislativo não pode através de lei ocupar-se da administração, sob pena de se permitir que o legislador administre invadindo área privativa do Poder Executivo.

Quando o Poder Legislativo do município edita lei disciplinando atuação administrativa, como ocorre, no caso em exame, em função da autorização para a celebração de convênios com instituições ou empresas públicas e privadas para a criação do Abrigo Municipal de Cães e Gatos, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do administrador público, violando o princípio da separação de poderes.

Cabe essencialmente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito da conveniência e oportunidade da criação de programas e celebração de convênios. Trata-se de atuação administrativa que decorre de escolha política de gestão, na qual é vedada intromissão de qualquer outro poder.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (arts. 5º, 47, II e XIV e 144).

É pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e a independência que deve existir entre os poderes estatais.

A matéria tratada na lei encontra-se na órbita da chamada reserva da Administração, que reúne as competências próprias de administração e gestão, imunes a interferência de outro poder (art. 47, II e IX da Constituição Estadual - aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144), pois privativas do Chefe do Poder Executivo.

Ainda que houvesse necessidade de disciplinar por lei referido programa, a iniciativa seria privativa do Chefe do Poder Executivo, mesmo quando ele não pudesse discipliná-lo por decreto nos termos do art. 47, XIX, da Constituição Estadual.

Assim, a Lei, ao autorizar a criação do Abrigo Municipal de Cães e Gatos, de um lado, viola o art. 47, II e XIV, no estabelecimento de regras que respeitam à direção da administração e à organização e ao funcionamento do Poder Executivo, matéria essa que é da alçada da reserva da Administração, e de outro, ela ofende o art. 24, § 2º, 2, na medida em que impõe atribuição ao Poder Executivo.

A inconstitucionalidade transparece exatamente pelo divórcio da iniciativa parlamentar da lei local com esses preceitos da Constituição Estadual.

Ainda que o ato normativo tivesse sido da iniciativa do Chefe do Executivo seria inconstitucional.

A razão é simples: o Chefe do Poder Executivo não necessita de autorização legislativa para fazer aquilo que está na esfera de sua competência constitucional. Se ele encaminha projeto de lei para tal escopo, isso configura hipótese de delegação inversa de poderes, vedada pelo art. 5º, § 1º, da Constituição Paulista.

         Nem se chegaria a conclusão diversa a partir da afirmação de que a lei ora questionada é simples lei autorizativa, da qual não resta nenhuma imposição para o administrador público.

Não é necessário que a lei autorize ou determine ao Poder Executivo fazer aquilo que, naturalmente, encontra-se dentro de sua esfera de decisão e ação.

Em outras palavras, se a lei, fora das hipóteses constitucionalmente previstas, dispõe sobre atividade tipicamente inserida na esfera da Administração Pública, isso significa invasão da esfera de competências do Poder Executivo por ato do Legislativo, configurando-se claramente a violação do princípio da separação de poderes.

A utilização recorrente das chamadas leis autorizativas tem objetivos de cunho nitidamente políticos, transmitindo aos cidadãos uma falsa ideia de direito subjetivo e de negligência do Poder Executivo.

A propósito do tema já o Supremo Tribunal Federal ao julgou representação (nº 993-9) por inconstitucionalidade de uma lei estadual (Lei nº 174, de 8/12/77, do Estado do Rio de Janeiro) que autorizava o Chefe do Poder Executivo a praticar ato que já era de sua competência constitucional privativa, decidiu que:

“O só fato de ser autorizativa a lei não modifica o juízo de sua invalidade por falta de legítima iniciativa. Não obstante a clareza do acórdão” (Diário da Justiça de 8/10/82, p. 10187, Ementário nº 1.270-1, RTJ 104/46)

A jurisprudência deste E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo tem corroborado o entendimento aqui sustentado. Confiram-se, a título de exemplificação, as seguintes ementas de recentes julgamentos deste C. Órgão Especial:

“EMENTA: Ação Direta de lnconstitucionalidade. Lei Municipal n° 4.934, de 28 de dezembro de 2009', do Município de Americana. Norma que "autoriza o Poder Executivo a celebrar convênio com o Governo do Estado de São Paulo para aceitar créditos do Tesouro do Estado oriundos do Programa de Estimulo ã Cidadania Fiscal do Estado de São Paulo, para pagamento de créditos municipais tributários e não tributários, e dá outras providências'". Projeto de lei de autoria de Vereador. Ocorrência de vício de iniciativa. Competência privativa do chefe do Executivo para a iniciativa de lei sobre organização e funcionamento da Administração, inclusive as que importem indevido aumento de despesa pública sem a indicação dos recursos disponíveis. ILnconstitucionalidade por violação ao princípio da separação, independência e harmonia entre os Poderes. Procedência da ação. É inconstitucional lei, de iniciativa parlamentar, que "autoriza o Poder Executivo a celebrar convênio com o Governo do Estado de São Paulo para aceitar créditos do Tesouro do Estado oriundos do Programa de Estimulo à Cidadania Piscai do Estado de São Paulo, para pagamento de créditos municipais tributários e não tributários", por tratar de matéria tipicamente administrativa, cuja competência exclusiva é do chefe do Poder Executivo, responsável para a iniciativa de lei sobre organização e funcionamento da Administração, configurando violação ao  princípio da separação de poderes por invasão da esfera da gestão administrativa.” (Adin nº 0179988-64.2012.8.26.0000, Rel. Des.  Kioitsi Chicuta, j. 12.12.2012)

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Lei do Município de Americana nº 4.972/2010, a qual cria o Programa de Internet Banda Larga Gratuita no Município Inadmissibilidade Tema relativo a atos de gestão Ingerência do Legislativo em matéria de competência privativa do Executivo Vedação Arts. 37, X, e 169, § 1º, I e II, da CF/88 e arts. 5º, § 2º, 47, II, XIV, 25 e 144, todos da Constituição Paulista Ação julgada procedente. Deve ser julgada procedente ação direta de inconstitucionalidade de lei municipal que abriga matéria de competência privativa do Executivo, pelo vício de iniciativa e por afrontar o princípio da separação e harmonia entre os Poderes.” (Adin nº 0180003-33.2012.8.26.0000, Rel. Des.  Luis Ganzerla, j. 05.12.2012)

De outro lado, e não menos importante, vale ressaltar que a lei local contestada colide frontalmente com os arts. 25 e 176, I, da Constituição do Estado de São Paulo.

A norma combatida ao estabelecer providência administrativa de incumbência do Poder Executivo não indicou especificamente os recursos orçamentários necessários para a cobertura dos gastos advindos que, no caso, são evidentes porquanto ordenam atividades novas na Administração Pública, cuja instalação e desenvolvimento demandam meios financeiros que não foram previstos, não servindo a tanto a genérica menção a rubricas orçamentárias próprias.

3.     DOS PEDIDOS

a.     Do pedido liminar

À saciedade demonstrado o fumus boni iuris, pela ponderabilidade do direito alegado, soma-se a ele o periculum in mora. A atual tessitura do ato normativo do Município de Sumaré apontado como violador de princípios e regras da Constituição do Estado de São Paulo é sinal, de per si, para suspensão de sua eficácia até final julgamento desta ação, evitando-se dispêndio indevido de recursos públicos e a consequente oneração financeira do erário.

À luz deste perfil, requer a concessão de liminar para suspensão da eficácia, até final e definitivo julgamento desta ação da Lei nº 5525, de 03 de setembro de 2013, do Município de Sumaré.

b.     Do pedido principal

Diante de todo o exposto, aguarda-se o recebimento e processamento da presente ação declaratória, para que ao final seja ela julgada procedente, reconhecendo-se a inconstitucionalidade da Lei nº 5525, de 03 de setembro de 2013, do Município de Sumaré.

Requer-se, ainda, que sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Senhor Prefeito Municipal de Sumaré, bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para manifestar-se sobre o ato normativo impugnado.

Posteriormente, aguarda-se vista para fins de manifestação final.

Termos em que,

Aguarda-se deferimento.

São Paulo, 01 de julho de 2014.

 

         Márcio Fernando Elias Rosa

         Procurador-Geral de Justiça

 

 

aca


Protocolado nº 177.339/13

Assunto: Inconstitucionalidade da Lei nº 5.525, de 03 de setembro de 2013, do Município de Sumaré

 

                          

1.     Distribua-se a inicial da ação direta de inconstitucionalidade em face da Lei nº 5525, de 03 de setembro de 2013, do Município de Sumaré, junto ao E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

2.     Comunique-se a propositura da ação ao interessado.

3.     Cumpra-se.

 

São Paulo, 01 de julho de 2014.

 

         Márcio Fernando Elias Rosa

         Procurador-Geral de Justiça

 

 

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