EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO E. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

 

 

 

 

Protocolado nº 100.729/13

 

 

 

Ementa:

1.      Ação direta de inconstitucionalidade. Inconstitucionalidade da expressão “ou em processo seletivo específico para esse fim”, prevista no art. 2º, I, bem como do art. 42, todos da Lei Complementar n. 267, de 12 de abril de 2012, que dispõe sobre a organização do Quadro da Guarda Civil Municipal, da Prefeitura da Cidade de Ferraz de Vasconcelos e institui o plano de carreira e dá outras providências correlatas, com a redação dada pela Lei Complementar n. 282, de 27 de junho de 2013.

2.      Violação dos princípios constitucionais do concurso, da isonomia, da acessibilidade geral ao serviço público e da impessoalidade (art. 111 e 115, I e II da CE; art. 37 caput e incisos I e II da CR/88).

 

O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, inciso VI, da Lei Complementar Estadual nº 734 de 26 de novembro de 1993, e em conformidade com o disposto no art. 125, § 2º, e art. 129, inciso IV, da Constituição da República, e ainda art. 74, inciso VI, e art. 90, inciso III da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado (PGJ nº 100.729/13, que segue como anexo), vem perante esse Egrégio Tribunal de Justiça promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE da expressão ou em processo seletivo específico para esse fim” do art. 2º, I, bem como do art. 42 , todos da Lei Complementar n. 267, de 12 de abril de 2012, que “dispõe sobre a organização do Quadro da Guarda Civil Municipal, da Prefeitura da Cidade de Ferraz de Vasconcelos e institui o plano de carreira e dá outras providências correlatas”, com a redação dada pela Lei Complementar n. 282, de 27 de junho de 2013, pelos fundamentos expostos a seguir.

1)    Dispositivos impugnados.

O art. 2º, I, da Lei Complementar n. 267, de 12 de abril de 2012, que “dispõe sobre a organização do Quadro da Guarda Civil Municipal, da Prefeitura da Cidade de Ferraz de Vasconcelos e institui o plano de carreira e dá outras providências correlatas”, com a redação dada pela Lei Complementar n. 282, de 27 de junho de 2013, tem a seguinte redação:

“O Guarda Municipal é o servidor público municipal, investido no cargo, mediante aprovação em concurso público de provas ou de provas e títulos ou em processo seletivo específico para esse fim”.

Por sua vez, o art. 42 da mesma lei reza:

“Os atuais titulares de cargos que compõem a carreira da Guarda Municipal de Ferraz de Vasconcelos, serão integrados, na seguinte conformidade”.

Ocorre que a expressão “ou em processo seletivo específico para esse fim” viola o princípio do concurso público, da acessibilidade geral, da isonomia e da impessoalidade.

Por outro lado, a nova redação dada ao art. 42 assevera que os titulares de cargos que compõem a carreira de Ferraz de Vasconcelos serão integrados, quando somente os titulares de cargos de provimento efetivo deveriam integrar os quadros da Guarda Civil Municipal da localidade.

2)Fundamentação: Violação do princípio do concurso público, da acessibilidade geral, da isonomia e da impessoalidade.

O dispositivo transcrito, com a expressão acrescentada ou em processo seletivo específico para esse fim”, bem como a redação dada ao art. 42 violam princípios constitucionais que exigem a realização de concurso público para acesso aos cargos e empregos na administração pública, e, por conseqüência, viola também a regra da acessibilidade geral e da isonomia com relação ao provimento de cargos na administração pública, que decorrem dos seguintes dispositivos da Constituição Estadual:

“(...)

Art.111. A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência.

Art.115. Para a organização da administração pública direta e indireta, inclusive as fundações instituídas ou mantidas por qualquer dos Poderes do Estado, é obrigatório o cumprimento das seguintes normas:

I – os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como os estrangeiros, na forma da lei;

II – a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia, em concurso público de provas ou de provas e títulos, ressalvadas as nomeações para cargo de provimento em comissão, declarado em lei, de livre nomeação e exoneração; (...)

É oportuno recordar que tais dispositivos são reproduções do disposto no art. 37, I e II da CR/88, sendo todos (os da Constituição Federal e os da Estadual), aplicáveis aos Municípios por força do art.144 da Constituição Paulista.

Dispensa maiores digressões a afirmação de que a realização de concurso público, para acesso aos cargos, empregos, e funções públicas, é a regra. Ela só admite exceções nas estritas hipóteses previstas na Constituição Federal e Estadual, quais sejam, (a) a nomeação para cargos de provimento em comissão previstos em lei específica de cada ente federativo (nos casos de cargos ou funções de direção, chefia ou assessoramento superior da administração, em que deva prevalecer o vínculo de especial confiança entre o servidor e o agente superior ao qual se vincule), e (b) a contratação temporária, nas hipóteses previstas em lei de cada ente federativo, para atendimento a necessidade temporária de excepcional interesse público (cf. art. 115 II, V  e X da Constituição Paulista; art. 37 I, II e IX da CR/88).

Diante disso, qualquer dispensa indevida da realização de concurso para fins de ingresso no serviço público, ou mesmo a realização de provimentos a partir de concursos internos, para que servidores ocupem cargos ou empregos situados em carreira distinta, ou finalmente o simples aproveitamento de servidores em cargos ou empregos integrantes de carreira distinta, são atos que significam, na prática, burla à regra do concurso. Traduzem-se, do mesmo modo, em criação de óbice à acessibilidade de todos os cidadãos aos cargos públicos previstos em lei, e, por conseguinte, violação ao princípio da isonomia. Criam, finalmente, possibilidade de favorecimento, com quebra do princípio da impessoalidade.

Esse permissivo legal da lei de Ferraz de Vasconcelos, destinado à acomodação de situações de fato pré-existentes, representa evidente burla aos princípios da isonomia, da acessibilidade geral, do concurso e da impessoalidade, que devem nortear o provimento de cargos no âmbito da Administração Pública.

Vale recordar que o conceito de carreira diz respeito ao “agrupamento de classes da mesma profissão ou atividade, escalonadas segundo a hierarquia do serviço, para acesso privativo dos titulares dos cargos que a integram, mediante provimento originário” (cf. Hely Lopes Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro, 34 ed., São Paulo, Malheiros, 2008, p. 424). No mesmo sentido Edmir Netto de Araújo, Curso de Direito Administrativo, São Paulo, 2005.

Natural, assim, a evolução funcional que deve ocorrer dentro de uma mesma carreira, de um cargo ou emprego situado em plano inferior, para outro localizado em patamar superior.

Diversa, entretanto, é a hipótese em exame, pois aqui, o que se verifica, é a burla, de forma indireta, do princípio do concurso público e de seus corolários lógicos.

Nosso sistema constitucional consagrou o livre acesso aos cargos, empregos e funções públicas, na forma prevista em lei, e a submissão prévia a concurso público, ressalvadas, evidentemente, as nomeações para cargos em comissão.

Na definição de Adilson Abreu Dallari, concurso público é “um procedimento administrativo aberto a todo e qualquer interessado que preencha os requisitos estabelecidos em lei, destinado à seleção de pessoal, mediante a aferição do conhecimento, da aptidão e da experiência dos candidatos, por critérios objetivos, previamente estabelecidos no edital de abertura, de maneira a possibilitar uma classificação de todos os aprovados” (Regime Constitucional dos Servidores Públicos, 2. ed., São Paulo, RT, 1992, p. 36, apud Celso Ribeiro Bastos, Comentários à Constituição do Brasil, 3º vol., T. III, São Paulo, Saraiva, 1992, p. 67).

É por meio do concurso que se resguarda “a aplicação do princípio da igualdade de todos (CF., art. 37, I) e, ao mesmo tempo, o interesse da Administração em admitir somente os melhores” (Celso Ribeiro Bastos, op. cit., p. 66), afastando-se “os ineptos e apaniguados, que costumam abarrotar as repartições públicas, num espetáculo degradante de protecionismo e falta de escrúpulos de políticos que se alçam e se mantêm no poder, leiloando empregos públicos” (Hely Lopes Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro, 34. ed., São Paulo, RT, 2008, p. 440/441).

Acrescente-se, ademais, que a existência de formas de provimento derivado “de modo algum significa abertura para costear-se o sentido próprio do concurso público. Como este é sempre específico para dado cargo, encartado em carreira certa, quem nele se investiu não pode depois, sem novo concurso público, ser trasladado para cargo de natureza diversa ou de outra carreira melhor retribuída ou de encargos mais nobres e elevados. O nefando expediente a que se alude foi algumas vezes adotado, no passado, sob a escusa de corrigir desvio de funções ou com arrimo na nomenclatura esdrúxula de ‘transposição de cargos’. Corresponde a uma burla manifesta do concurso público. É que permite a candidatos que ultrapassaram apenas concursos singelos, destinados a cargos de modesta expressão – e que se qualificaram tão somente para eles – venham a aceder, depois de aí investidos, a cargos outros, para cujo ingresso se demandaria sucesso em concursos de dificuldades muito maiores, disputados por concorrentes de qualificação bem mais elevada” (Celso Antônio Bandeira de Mello, Regime Constitucional dos Servidores da Administração Direta e Indireta, São Paulo, RT, 1995, p. 55).

Não se nega, observe-se, a possibilidade de aprimoramento na organização administrativa de determinado ente federativo, e tampouco a reestruturação do respectivo quadro de cargos, empregos e funções. Tal possibilidade é ínsita à própria autonomia de cada ente federativo, e em especial dos Municípios (art. 29, 30, I da CR/88).

Também não se refuta a possibilidade de enquadramento de servidores, já integrantes da administração, nos casos de extinção ou transformação de cargos, empregos e funções, desde que idênticas as atribuições do novo cargo, e idênticos os requisitos ou condições exigidos dos candidatos ao seu provimento.

Contudo, como anota Hely Lopes Meirelles, “se a transformação implicar alteração do título e das atribuições do cargo, configura novo provimento, que exige concurso público” (Direito Administrativo Brasileiro, cit.,p. 427).

É oportuno averbar que no E. STF a matéria é pacífica. Encontra-se sedimentada no verbete nº 685 da súmula da jurisprudência dominante da Corte, com a seguinte dicção:

"É inconstitucional toda modalidade de provimento que propicie ao servidor investir-se, sem prévia aprovação em concurso público destinado ao seu provimento, em cargo que não integra a carreira na qual anteriormente investido." (SÚM. 685).

Há diversos precedentes do E. STF que, sob vários aspectos e em situações diferentes, confirmam a afirmação de que nosso sistema constitucional não transige com a regra do concurso público. Assim, como quando a Corte veda a ascensão e a transferência, que são formas de ingresso em carreira diversa daquela para a qual o servidor público ingressou por concurso (ADI 231, Rel. Min. Moreira Alves, julgamento em 5-8-92, DJ de 13-11-92; ADI 3.582, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 1º-8-07, DJ de 17-8-07); ou proíbe o mero enquadramento de prestadores de serviço (ADI 3.434-MC, voto do Min. Joaquim Barbosa, julgamento em 23-8-06, DJ de 28-9-07); ou mesmo ao vedar o enquadramento de servidores que exerçam determinadas funções, em cargos que integram carreira distinta, ainda que com período prévio de reciclagem (ADI 388, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 20-9-07, DJ de 19-10-07; ADI 3.442, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 7-11-07, DJ de 7-12-07; ADI 3.857/CE, rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 18/12/2008).

Relevante notar, do mesmo modo, que a exigência de concurso público para a investidura em cargo assegura, entre outras coisas, o respeito aos princípios da impessoalidade e da isonomia.

Também por isso que a estabilidade constitucional anômala e transitória prevista no art. 19 do ADCT-CR/88 (aplicável aos servidores não concursados que, quando da promulgação da Carta Federal, contassem com, no mínimo, cinco anos ininterruptos de serviço público) tem sido interpretada restritivamente.

O E. STF tem reiteradamente afirmado a inconstitucionalidade de normas estaduais que ampliam a exceção à regra da exigência de concurso para o ingresso no serviço público: ADI 498, Rel. Min. Carlos Velloso (DJ de 9-8-1996); ADI 208, Rel. Min. Moreira Alves (DJ de 19-12-2002); ADI 100, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 9-9-04, DJ de 1º-10-04; ADI 88, Rel. Min. Moreira Alves, julgamento em 11-5-00, DJ de 8-9-00; ADI 289, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 9-2-07, DJ de 16-3-07; ADI 125, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 9-2-07, DJ de 27-4-07.   

Esse entendimento também vem sendo consagrado no E. Tribunal de Justiça de São Paulo, por meio de seu Colendo Órgão Especial, conforme ementa transcrita a seguir:

“Ementa: Inconstitucionalidade - Ação Direta - Lei Municipal - Disposições relativas ao funcionalismo público - Desrespeito às regras de ingresso no serviço público por meio de concurso, com enquadramento de funcionários sem a realização dele, consagração de desvio de função e permissão de ocupação cargos distintos àquele para o qual o servidor foi habilitado - Inadmissibilidade – Procedência da ação com declaração de inconstitucionalidade das normas infringentes dos princípios constitucionais de igual acessibilidade a cargos públicos por meio de concurso e efeitos "ad nunc". (TJSP, Órgão Especial, ADI 164.694-0/3, rel. des. Maurício Vidigal, j. 13.05.2009, v.u.).

3) Pedido Liminar.

Estão presentes os pressupostos para a concessão da liminar, determinando-se a suspensão da expressão “ou em processo seletivo específico para esse fim” do art. 2º, I, bem como do art. 42, todos da Lei Complementar n. 267, de 12 de abril de 2012, que “dispõe sobre a organização do Quadro da Guarda Civil Municipal, da Prefeitura da Cidade de Ferraz de Vasconcelos e institui o plano de carreira e dá outras providências correlatas”, com a redação dada pela Lei Complementar n. 282, de 27 de junho de 2013.

A razoável fundamentação jurídica evidencia-se pelos motivos que lastreiam a propositura desta ação direta.

Quanto ao perigo da demora, evidencia-se pelo fato de que, a prevalecer, por ora, a presunção de constitucionalidade das normas glosadas nesta ação direta, atos materiais serão realizados no sentido de concretização de suas previsões normativas, gerando situações cuja reversão ao status quo ante, futuramente, será de considerável grau de dificuldade.

As situações consolidadas, muitas vezes, criam espaço para argumentação no sentido da improcedência da ação, ou mesmo afastamento de seus efeitos concretos, desprestigiando, em última análise, o próprio sistema de controle concentrado de constitucionalidade, bem como esvaziando a autoridade da Corte Constitucional, seja no plano federal, como no estadual.

De resto, ainda que não houvesse essa singular situação de risco, restaria, ao menos, a excepcional conveniência da medida.

Com efeito, no contexto das ações diretas e da outorga de provimentos cautelares para defesa da Constituição, o juízo de conveniência é um critério relevante, que vem condicionando os pronunciamentos mais recentes do Supremo Tribunal Federal, preordenados à suspensão liminar de leis aparentemente inconstitucionais (cf. ADIN-MC 125, j. 15.2.90, DJU de 4.5.90, p. 3.693, rel. Min. Celso de Mello; ADIN-MC 568, RTJ 138/64; ADIN-MC 493, RTJ 142/52; ADIN-MC 540, DJU de 25.9.92, p. 16.182).

Requer-se, destarte, a concessão da liminar, determinando-se a suspensão das expressões  ou em processo seletivo específico para esse fim” do art. 2º, I, bem como do art. 42 , todos da Lei Complementar n. 267, de 12 de abril de 2012, que “dispõe sobre a organização do Quadro da Guarda Civil Municipal, da Prefeitura da Cidade de Ferraz de Vasconcelos e institui o plano de carreira e dá outras providências correlatas”, com a redação dada pela Lei Complementar n. 282, de 27 de junho de 2013, pelos fundamentos expostos a seguir.

4) Conclusão e pedido.

Diante de todo o exposto, aguarda-se o recebimento e processamento da presente ação, para que ao final seja ela julgada procedente, reconhecendo-se a inconstitucionalidade da expressão “ou em processo seletivo específico para esse fim”, prevista no art. 2º, I, bem como do art. 42, todos da Lei Complementar n. 267, de 12 de abril de 2012, que dispõe sobre a organização do Quadro da Guarda Civil Municipal, da Prefeitura da Cidade de Ferraz de Vasconcelos e institui o plano de carreira e dá outras providências correlatas, com a redação dada pela Lei Complementar n. 282, de 27 de junho de 2013.

Requer-se ainda sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Senhor Prefeito Municipal de Ferraz de Vasconcelos, bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para manifestar-se sobre o ato normativo impugnado.

Posteriormente, aguarda-se vista para fins de manifestação final.

Termos em que,

Aguarda-se deferimento.

São Paulo, 28 de janeiro de 2014.

 

         Márcio Fernando Elias Rosa

         Procurador-Geral de Justiça

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Protocolado nº 100.729/13

 

 

 

1.     Distribua-se a inicial da ação direta de inconstitucionalidade.

2.     Oficie-se ao interessado, com o envio de cópias, comunicando-se a propositura da ação.

3.     Cumpra-se.

 

São Paulo, 28 de janeiro de 2014.

 

 

         Márcio Fernando Elias Rosa

         Procurador-Geral de Justiça

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