Excelentíssimo Senhor Doutor Desembargador Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

 

 

 

Protocolado n. 117.255/12

 

 

 

Ementa: Constitucional. Administrativo. Ação Direta Inconstitucionalidade. Art. 158, § 1º, e, da Lei n. 3.750, de 20 de dezembro de 1971, na redação dada pelo art. 18 da Lei Complementar n. 587, de 27 de dezembro de 2006, do Município de Santos. Art. 4º do Decreto n. 4.746, de 29 de janeiro de 2007. Acesso a cargos, funções e empregos públicos. Concurso público. Isenção da taxa de inscrição. Concessão do benefício somente aos desempregados e hipossuficientes do Município de Santos. Discriminação. Ofensa aos princípios de impessoalidade e razoabilidade. Inconstitucionais lei e decreto municipais que conferem isenção da taxa de inscrição em concurso público para acesso a cargos, funções e empregos públicos da Administração Municipal exclusivamente aos desempregados e economicamente hipossuficientes residentes em seu território por violação dos princípios de igualdade, impessoalidade e razoabilidade (arts. 111, 115, I, 144 e 163, II, CE/89; arts. 3º, IV, 5º, 19, III, 37, I, 150, II, CF/88).

 

 

                   O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, VI, da Lei Complementar Estadual n. 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público do Estado de São Paulo), em conformidade com o disposto no art. 125, § 2º, e no art. 129, IV, da Constituição Federal, e, ainda, nos arts. 74, VI, e 90, III, da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado, vem, respeitosamente, perante esse Egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE  em face da alínea e do § 1º do art. 158 da Lei n. 3.750, de 20 de dezembro de 1971, na redação dada pelo art. 18 da Lei Complementar n. 587, de 27 de dezembro de 2006, e do art. 4º do Decreto n. 4.746, de 29 de janeiro de 2007, do Município de Santos, pelos fundamentos a seguir expostos:

I – O Ato Normativo Impugnado

1.                A Lei n. 3.750, de 20 de dezembro de 1971 (Código Tributário do Município de Santos – fls. 78/116), criou a taxa de expediente (art. 155), dispondo na alínea e do § 1º do art. 158 que:

“Artigo 158 – A taxa é lançada antecipadamente e arrecadada por meio de guia, no ato de solicitação do serviço.

§ 1º - Ficam isentos do pagamento:

(...)

e) os desempregados e hipossuficientes, da taxa de concurso para ingresso no Serviço Público, referida no item 16 da Tabela VIII;

(...)” (fls. 107/108).

2.                Em 27 de dezembro de 2006 foi editada a Lei Complementar n. 587 (fls. 61/62, 184/186), cujo art. 18 alterou a redação desse preceito, nos seguintes termos:

“Artigo 18 – A alínea ‘e’ do parágrafo 1º do artigo 158 da Lei nº 3.750, de 20 de dezembro de 1971, passa a vigorar com a seguinte redação:

‘e) Os desempregados e hipossuficientes do Município de Santos, da taxa de concurso para ingresso no serviço público municipal. (NR)” (fls. 62, 186).

3.                Em consequência foi editado o Decreto n. 4.746, de 29 de janeiro de 2007 (fl. 59), com a seguinte redação:

“Art. 1º. Para inscrição em concurso público municipal, com o benefício previsto no artigo 158, parágrafo 1º, alínea ‘e’, da Lei nº 3.750, de 20 de dezembro de 1971 (Código Tributário do Município), o candidato deverá comprovar desemprego ou hipossuficiência econômica.

Art. 2º. A condição de desemprego deverá ser comprovada através da apresentação dos seguintes documentos:

I – Carteira Profissional de Trabalho e Previdência Social, com o último registro profissional;

II – Guia de recebimento do seguro-desemprego;

III – Comprovação da inscrição no Programa de Atendimento ao Trabalhador – PAT, com data de cadastro há mais de 30 (trinta) dias.

Art. 3º. Considera-se como economicamente hipossuficiente a pessoa cuja renda mensal atinja, no máximo, 1 (um) salário mínimo, devidamente comprovada.

Art. 4º. O candidato deverá comprovar residir no Município de Santos, por meio da apresentação de conta relativa ao fornecimento de energia elétrica, abastecimento de água, carnê de crediário ou outro documento análogo e equivalente.

Art. 5º. Este decreto entra em vigor na data da publicação, revogadas as disposições em contrário, em especial o Decreto nº 3.440, de 22 de outubro de 1999”.

II – O parâmetro da fiscalização abstrata de constitucionalidade

4.                A lei impugnada contraria frontalmente a Constituição do Estado de São Paulo, à qual está subordinada a produção normativa municipal ante a previsão dos arts. 1º, 18, 29 e 31 da Constituição Federal.

5.                Os preceitos da Constituição Federal e da Constituição do Estado são aplicáveis aos Municípios por força de seu art. 144, que assim estabelece:

“Artigo 144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição”.

6.                A lei contestada é incompatível com os seguintes preceitos da Constituição Estadual:

“Artigo 111 – A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência.

(...)

Artigo 115 – Para a organização da administração pública direta ou indireta, inclusive as fundações instituídas ou mantidas por qualquer dos Poderes do Estado, é obrigatório o cumprimento das seguintes normas:

I – os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma da lei;

(...)

Artigo 144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.

(...)

Art. 163. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado ao Estado:

(...)

II – instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação funcional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos e direitos”.

7.                Não bastasse, é cabível o contraste da lei local com a Constituição Federal a partir da norma remissiva contida no art. 144 da Constituição Estadual - que reproduz o art. 29, caput, da Constituição Federal.

8.                O art. 144 da Constituição Estadual determinando a observância na esfera municipal, além das regras da Constituição Estadual, também dos princípios da Constituição Federal, é denominado “norma estadual de caráter remissivo, na medida em que, para a disciplina dos limites da autonomia municipal, remete para as disposições constantes da Constituição Federal”, como averbou o Supremo Tribunal Federal ao credenciar o controle concentrado de constitucionalidade de lei municipal por esse ângulo (STF, Rcl 10.406-GO, Rel. Min. Gilmar Mendes, 31-08-2010, DJe 06-09-2010; STF, Rcl 10.500-SP, Rel. Min. Celso de Mello, 18-10-2010, DJe 26-10-2010).

9.                Daí decorre a possibilidade de contraste da lei local com o art. 144 da Constituição Estadual, por sua remissão à Constituição Federal e, em especial, aos seus arts. 3º, IV, 5º, 19, III, 37, I, e 150, II, in verbis:

“Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

(...)

IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação;

(...)

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

(...)

III – criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si.

(...)

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

I – os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma da lei;

(...)

Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

(...)

II – instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação funcional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos e direitos”.

10.              As normas locais impugnadas estabelecem privilégio em favor de desempregados e hipossuficientes econômicos residentes em Santos para acesso a cargos, funções e empregos públicos da Administração Pública Municipal, molestando os princípios de impessoalidade, igualdade e razoabilidade.

11.              Com efeito, a outorga de isenção da taxa de inscrição em concurso público aos desempregados e economicamente hipossuficientes é medida de inclusão orientada pelo princípio da igualdade na medida em que colima proporcionar o acesso a cargos, funções e empregos públicos àqueles que não dispõem de recursos financeiros para o processo de disputa.

12.              Esse fator de discriminação é aceito pelo ordenamento jurídico, calcado na solidariedade.

13.              Todavia, a sua limitação aos desempregados e hipossuficientes econômicos residentes em Santos desvia da igualdade e da impessoalidade por conter discriminação desarrazoada, criando preferência a brasileiros em razão de sua origem, domicílio ou residência em detrimento de outros que, não obstante, se encontrem em idêntica situação econômica desfavorável e que não possuam domicílio ou residência nesse Município.

14.              A negativa de isenção da taxa aos desempregados e economicamente hipossuficientes não residentes em Santos compromete a igualdade e a impessoalidade que deve presidir o acesso a cargos, funções e empregos públicos no Município, orientadas pela isonomia na lei (material).

18.              E ainda é inconstitucional por estabelecer tratamento tributário desigualitário, despido de razoabilidade, entre contribuintes da taxa que se encontram em idêntica situação econômica.

19.              Portanto, é inconstitucional a alínea e do § 1º do art. 158 da Lei n. 3.750, de 20 de dezembro de 1971, na redação dada pelo art. 18 da Lei Complementar n. 587, de 27 de dezembro de 2006, impondo-se a respectiva declaração nesse sentido para extirpá-lo do ordenamento jurídico sem receio da repristinação da primitiva redação da norma.

20.              Também é inconstitucional o art. 4º do Decreto n. 4.746, de 29 de janeiro de 2007, merecendo ser declarado esse vício por dependência ou arrastamento.

21.              Sendo inconstitucional o art. 18 da Lei Complementar n. 587/06 o art. 4º de seu decreto regulamentador (Decreto n. 4.746/07), que o disciplina portando o mesmo vício, é alcançado por essa mácula

 

em relação de sua dependência, como já decidido (RTJ 219/143), à luz da inconstitucionalidade consequencial ou por arrastamento.

III – Pedido liminar

22.              À saciedade demonstrado o fumus boni iuris, pela ponderabilidade do direito alegado, soma-se a ele o periculum in mora. A atual tessitura dos preceitos normativos municipais apontados como violadores de princípios e regras da Constituição do Estado de São Paulo é sinal, de per si, para suspensão de sua eficácia até final julgamento desta ação, evitando-se atuação desconforme o ordenamento jurídico, criadora de lesão irreparável ou de difícil reparação.

23.              Com efeito, mercê do arquivamento de inquérito civil onde se diagnosticou a inconstitucionalidade (fls. 38/42), essas peças que instruem a presente demonstram o dano irreparável gerado que não será inibido nem com a sugestão de expedição de recomendação para cessação da atividade nociva (fls. 41/42).

24.              Corrobora esse contexto a posterior manifestação da Secretária Chefe de Gabinete da Prefeitura Municipal de Santos anunciando que “a Municipalidade promoverá a abertura de estudos junto à Procuradoria Geral do Município sobre a constitucionalidade dos indigitados dispositivos normativos contidos na Lei 3750/71 (letra ‘e’ do § 1º do art. 158) e Decreto 4746/2007 (art. 4º)” (fl. 54).

25.              Nota-se que as normas impugnadas têm a capacidade de produção de situações ilegítimas de acesso a cargos, funções e empregos públicos na medida em que orientam o respectivo processo administrativo de concurso público, com sério agravo aos valores albergados pelas normas constitucionais imoladas, o que recomenda a suspensão imediata de sua eficácia.

26.              À luz deste perfil, requer a concessão de liminar para suspensão da eficácia, até final e definitivo julgamento desta ação, da alínea e do § 1º do art. 158 da Lei n. 3.750, de 20 de dezembro de 1971, na redação dada pelo art. 18 da Lei Complementar n. 587, de 27 de dezembro de 2006, e do art. 4º do Decreto n. 4.746, de 29 de janeiro de 2007, do Município de Santos.

IV – Pedido

27.              Face ao exposto, requerendo o recebimento e o processamento da presente ação para que, ao final, seja julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade da alínea e do § 1º do art. 158 da Lei n. 3.750, de 20 de dezembro de 1971, na redação dada pelo art. 18 da Lei Complementar n. 587, de 27 de dezembro de 2006, e do art. 4º do Decreto n. 4.746, de 29 de janeiro de 2007, do Município de Santos.

28.              Requer-se ainda sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Prefeito Municipal de Santos, bem como citado o Procurador-Geral do Estado para se manifestar sobre o ato normativo impugnado, protestando por nova vista, posteriormente, para manifestação final.

                   Termos em que, pede deferimento.

                   São Paulo, 10 de dezembro de 2012.

 

 

 

Márcio Fernando Elias Rosa

Procurador-Geral de Justiça

 

 

 

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Protocolado nº 117.255/12 - MP

Interessado: Conselho  Superior do Ministério Público

Assunto: inconstitucionalidade da alínea e do § 1º do art. 158 da Lei n. 3.750, de 20 de dezembro de 1971, na redação dada pelo art. 18 da Lei Complementar n. 587, de 27 de dezembro de 2006, e do art. 4º do Decreto n. 4.746, de 29 de janeiro de 2007, do Município de Santos

 

 

 

 

1.     Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade em face da alínea e do § 1º do art. 158 da Lei n. 3.750, de 20 de dezembro de 1971, na redação dada pelo art. 18 da Lei Complementar n. 587, de 27 de dezembro de 2006, e do art. 4º do Decreto n. 4.746, de 29 de janeiro de 2007, do Município de Santos, junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

2.     Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.

 

                   São Paulo, 10 de dezembro de 2012.

 

 

 

Márcio Fernando Elias Rosa

Procurador-Geral de Justiça

wpmj