EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO E. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

 

Protocolado n. 12093/11

Assunto:  Inconstitucionalidade da Lei Complementar nº 19, de 17 de junho de 2005; do art. 37 da Lei Complementar nº 14,  de 23 de junho de 2003;  por arrastamento, do Decreto nº 4.022, de 06 de julho de 2008 e dos incisos II, VI e VII do art. 2º da Lei nº 2.472, 23 de janeiro de 2009, todos do Município de Irapuru.

 

 

 

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Contratação temporária regulamentada pela Lei nº 2.472, de 23 de janeiro de 2009, do Município de Irapuru.

2)      Contratação temporária fora da hipótese de excepcionalidade, interesse público e temporariedade. Afronta aos princípios da razoabilidade e da moralidade administrativa. Violação de dispositivos da Constituição Estadual (arts. 111, 115, incisos II e X, e 144).

3)      Inconstitucionalidade do cargo de provimento em comissão de Coordenador Municipal de Assistência Social, previsto no art. 1º da Lei Complementar nº 19, de 17 de junho de 2005, e constante do Anexo II, da Lei Complementar nº 14, de 23 de junho de 2003, do Município de Irapuru, ao qual não corresponde função de direção, chefia e assessoramento, mas função própria do cargo de provimento efetivo. Violação do art. 115, inc. II e V, da Constituição do Estado de São Paulo.

4)      Lei Complementar nº 14, de 23 de junho de 2003, e Decreto nº 4.022, de 06 de julho de 2008: invasão da reserva legal, geradora de violação da separação de poderes, em razão de o Chefe do Poder Executivo definir em decreto as atribuições dos cargos públicos de provimento em comissão e, também, dos de provimento efetivo (artigo 5º, §1º da CE).

 

 

O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, inciso VI, da Lei Complementar Estadual nº 734 de 26 de novembro de 1993, e em conformidade com o disposto no art. 125, § 2º, e no art. 129, inciso IV, da Constituição da República, e ainda nos arts. 74, inciso VI, e  90, inciso III, da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado (PGJ nº 12093/2011, que segue como anexo), vem perante esse Egrégio Tribunal de Justiça promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE em face da Lei Complementar nº 19, de 17 de junho de 2005; do art. 37 da Lei Complementar nº 14, de 23 de junho de 2003; por arrastamento, do Decreto nº 4.022, de 06 de julho de 2008, e dos incisos II, VI e VII do art. 2º da Lei nº 2.472, 23 de janeiro de 2009, todos do Município de Irapuru, pelos motivos a seguir expostos.

 

I – Afronta à realização de concurso público para a contratação de funcionário público

 

A Lei nº 2.472, 23 de janeiro de 2009, do Município de Irapuru, regulamenta as contratações para atender às necessidades temporárias de mão de obra, em situações de excepcional interesse público, nos termos do art. 115, X, da Carta Paulista (37,  IX da CF).

No entanto, os incisos II, VI e VII do art. 2º que definem hipóteses de “necessidade temporária de excepcional público” contrariam o disposto no artigo 115, inciso X, da Constituição do Estado de São Paulo e no artigo 37, inciso IX, da Constituição Federal.

Como se sabe, a regra, no serviço público, é o provimento de cargos públicos mediante concurso, sendo ela excepcionada pelas hipóteses consistentes no provimento de cargos em comissão e contratação temporária.

Entretanto, os casos em que fica excepcionada a regra do concurso público devem ser interpretados de forma restritiva, sendo possíveis apenas desde que preenchidos todos os requisitos constitucionais aplicáveis.

Portanto, a questão central tratada neste tópico é a afronta ao texto constitucional que exige a realização de concurso para a contratação de funcionários públicos. Não há, no caso em tela, interesse público a embasar as contratações nelas mencionadas.

Portanto, ficam impugnados expressamente os incisos II (campanha de saúde pública), VI (execução direta de obra), VII (efetivação de convênios firmados entre o Município e órgãos federais, estaduais, municipais e distrito federal) do art. 2º da Lei Municipal nº 2.472, de 23 de janeiro de 2009, de Irapuru.

Importante reproduzir os arts. 1º e 2º da Lei Municipal n. 2.472/09, que “regulamenta a contratação temporária de mão de obra”, cujo texto integral está juntado ao anexo que acompanha a presente:

“Artigo 1º - Esta lei disciplina as contratações para atender as necessidades temporárias de mão de obra, em situações de excepcional interesse público, nos termos do artigo 37, inciso IX, da Constituição Federal.

Artigo 2º - As contratações nos termos desta Lei somente poderão ocorrer em caso de:

I – calamidade pública ou comoção interna;

II – campanha de saúde pública;

III – implantação de serviços urgente e inadiável;

IV – saída voluntária, de dispensa ou de afastamentos transitórios de servidores, cuja ausência possa prejudicar sensivelmente os serviços;

V – execução de serviços absolutamente transitórios e de necessidade esporádica;

VI – execução direta de obra determinada;

VII – efetivação de Convênios firmados entre o Município e órgãos Federais, Estaduais, Municipais e Distrito Federal;

Parágrafo Único: A justificativa e a fundamentação da contratação se farão em procedimento administrativo, publicando-se o ato autorizador e o contrato com os atos oficiais.” (grifo nosso)

As disposições normativas acima destacadas em negrito são verticalmente incompatíveis com a Constituição do Estado de São Paulo, especialmente com os seus arts. 111, 115, incisos II e X, e 144, “verbis”:

“Art. 111 – A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência.

Art. 115 – Para a organização da administração pública direta e indireta, inclusive as fundações instituídas ou mantidas por qualquer dos Poderes do Estado, é obrigatório o cumprimento das seguintes normas:

                            (...)

II – a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia, em concurso público de provas ou de provas e títulos, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão, declarado em lei, de livre nomeação e exoneração;

                            (...)

X – a lei estabelecerá os casos de contratação por tempo determinado, para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público;

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

De fato, as situações previstas nos incisos II, VI e VII, do art. 2º, da Lei Municipal nº 2.472/2009, são incompatíveis com a contratação por tempo determinado para o atendimento de necessidade temporária de excepcional interesse público.

A bem da verdade, as situações acima descritas são comuns e absolutamente previsíveis à Administração Pública. Aliás, a contratação de profissionais da saúde é necessidade permanente, não dando margem, por conseguinte, a esse tipo de contratação, conforme, aliás, o Supremo Tribunal Federal já teve a oportunidade de proclamar, “verbis”: “Servidor público: contratação temporária excepcional (CF, art. 37, IX): inconstitucionalidade de sua aplicação para a admissão de servidores para funções burocráticas ordinárias e permanentes.” (ADI n.º 2.987, Rel. Min. SEPULVEDA PERTENCE, julgamento em 19-2-04, DJU de 2/04/2004).

Deve-se sempre ter presente que “a regra é a admissão de servidor público mediante concurso público: C.F., art. 37, II. As duas exceções à regra são para os cargos em comissão referidos no inciso II do art. 37 e a contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público: C.F., art. 37, IX. Nessa hipótese, deverão ser atendidas as seguintes condições: a) previsão em lei dos casos; b) tempo determinado; c) necessidade temporária de interesse público excepcional” (ADI 3210/PR, Julgamento: 11/11/2004, relator Ministro CARLOS VELLOSO).

Ademais, atividades permanentes ou previsíveis não autorizam a contratação temporária. Assim decidiu o Pleno do STF ao apreciar a ADI n. 890/DF, em que foi relator o Ministro MAURÍCIO CORRÊA (Julgamento: 11/09/2003):

“A Administração Pública direta e indireta. Admissão de pessoal. Obediência cogente à regra geral de concurso público para admissão de pessoal, excetuadas as hipóteses de investidura em cargos em comissão e contratação destinada a atender necessidade temporária e excepcional. Interpretação restritiva do artigo 37, IX, da Carta Federal. Precedentes. Atividades permanentes. Concurso Público”.

Verifica-se, portanto, a contrariedade aos limites constitucionais à contratação temporária de pessoal no serviço público, mesmo porque, como se sabe, a regra, no serviço público, é o provimento de cargos públicos mediante concurso, sendo ela excepcionada pelas hipóteses consistentes no provimento de cargos em comissão e contratação temporária.

Entretanto, os casos em que fica excepcionada a regra do concurso público devem ser interpretados de forma restritiva, sendo possíveis apenas desde que preenchidos todos os requisitos constitucionais aplicáveis.

Quanto aos casos de contratação temporária, a Constituição é clara, não deixando dúvida de que, cumulativamente, são indispensáveis os seguintes requisitos para seu cabimento: (a) existência de previsão legal; (b) necessidade temporária de excepcional interesse público e (c) temporariedade da contratação.

Ausente um ou mais desses pressupostos, não será legítima a contratação, assim como inconstitucional a lei que a autorizou.

A propósito desse tema, anota Hely Lopes Meirelles que na contratação por tempo determinado, as leis autorizadoras “deverão atender aos princípios da razoabilidade e moralidade. Não podem prever hipóteses abrangentes e genéricas, nem deixar sem definição, ou em aberto, casos de contratação. Dessa forma, só podem prever casos que efetivamente justifiquem a contratação” (Direito Administrativo Brasileiro, 34ª Ed., São Paulo, Malheiros, 2008, p. 445).

De forma idêntica, Celso Antônio Bandeira de Mello anota que “trata-se, aí, de ensejar suprimento de pessoal perante contingências que desgarrem da normalidade das situações e presumam admissões apenas provisórias, demandadas em circunstâncias incomuns, cujo atendimento reclama satisfação imediata e temporária (incompatível, portanto, com o regime normal dos concursos” (Curso de Direito Administrativo, 25ª Ed., São Paulo, Malheiros, 2008, p. 280).

De similar teor são as observações formuladas por Maria Sylvia Zanella Di Pietro (Direito Administrativo, 19ª, São Paulo, Atlas, 2006, p. 512).

Todos esses motivos são mais que suficientes para o reconhecimento da inconstitucionalidade dos dispositivos do ato normativo impugnado nesta ação direta.

II –  Delegação para fixação de atribuições de cargos públicos

 

         Concorre neste tópico que a delegação de fixação de atribuições dos cargos públicos a ato normativo do Chefe do Poder Executivo, constante do art. 37 da Lei Complementar nº 14, de 23 de junho de 2003, do município de Irapuru, caracteriza violação da reserva legal e da separação de poderes, dispostas nos arts. 5º, § 1º, 24, § 2º, 1, 111 e 115, II, da Constituição Estadual.

 

         Com efeito, o procedimento mantém incompatibilidade vertical com o princípio da legalidade – porque a reserva legal exige lei em sentido formal para disciplina das atribuições de qualquer função pública lato sensu (cargo ou emprego públicos) – e o seu tratamento por decreto implica de per si invasão e delegação do espaço reservado à lei e, em ultima ratio, violação contundente à cláusula da separação de poderes.

 

                   Embora distintos seus regimes jurídicos, cargo e emprego significam o lugar e o conjunto de atribuições e responsabilidades determinadas na estrutura organizacional, com denominação própria, criado por lei, sujeito à remuneração e à subordinação hierárquica, provido por uma pessoa, na forma da lei, para o exercício de uma específica função permanente conferida a um servidor. Ponto elementar relacionado à criação de cargos ou empregos públicos é a necessidade de a lei específica – no sentido de reserva legal ou de lei em sentido formal, ou, ainda, de princípio da legalidade absoluta ou restrita, como ato normativo produzido no Poder Legislativo mediante o competente e respectivo processo - descrever as correlatas atribuições. A criação do cargo público impõe a fixação de suas atribuições porque todo cargo pressupõe função previamente definida em lei (Maria Sylvia Zanella Di Pietro. Direito Administrativo, São Paulo: Atlas, 2006, p. 507; Odete Medauar. Direito Administrativo Moderno, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 287;Marçal Justen Filho. Curso de Direito Administrativo, São Paulo: Saraiva, 2005, p. 581).

 

                   Neste sentido, é ponto luminoso na criação de cargos ou empregos públicos a necessidade de a lei específica descrever as correlatas atribuições, consoante expõe lúcida doutrina:

 

“(...) somente a lei pode criar esse conjunto inter-relacionado de competências, direitos e deveres que é o cargo público. Essa é a regra geral consagrada no art. 48, X, da Constituição, que comporta uma ressalva à hipótese do art. 84, VI, b. Esse dispositivo permite ao Chefe do Executivo promover a extinção de cargo público, por meio de ato administrativo. A criação e a disciplina do cargo público faz-se necessariamente por lei no sentido de que a lei deverá contemplar a disciplina essencial e indispensável. Isso significa estabelecer o núcleo das competências, dos poderes, dos deveres, dos direitos, do modo da investidura e das condições do exercício das atividades. Portanto, não basta uma lei estabelecer, de modo simplista, que ‘fica criado o cargo de servidor público’. Exige-se que a lei promova a discriminação das competências e a inserção dessa posição jurídica no âmbito da organização administrativa, determinando as regras que dão identidade e diferenciam a referida posição jurídica” (Marçal Justen Filho. Curso de Direito Administrativo, São Paulo: Saraiva, 2005, p. 581).

 

                   Pois somente a partir da descrição precisa das atribuições do cargo público será possível, a bem do funcionamento administrativo e dos direitos dos administrados, averiguar-se a completa licitude do exercício de suas funções pelo agente público. Trata-se de exigência relativa à competência do agente público para a prática de atos em nome da Administração Pública e, em especial, aqueles que tangenciam os direitos dos administrados, e que se espraia à aferição da legitimidade da forma de investidura no cargo público que deve ser guiada pela legalidade, moralidade, impessoalidade e razoabilidade.

                   Nem se alegue, por oportuno, que ao Chefe do Poder Executivo remanesceria competência para descrição das atribuições dos empregos públicos, sob pena de convalidar a invasão de matéria sujeita exclusivamente à reserva legal. A possibilidade de regulamento autônomo para disciplina da organização administrativa não significa a outorga de competência para o Chefe do Poder Executivo fixar atribuições de cargo público e dispor sobre seus requisitos de habilitação e forma de provimento. A alegação cede à vista do art. 61, § 1°, II, a, da Constituição Federal, e do art. 24, § 2º, 1, que, em coro, exigem lei em sentido formal. Regulamento administrativo (ou de organização) contém normas sobre a organização administrativa, isto é, a disciplina do modo de prestação do serviço e das relações intercorrentes entre órgãos, entidades e agentes, e de seu funcionamento, sendo-lhe vedado criar cargos públicos, somente extingui-los desde que vagos (arts. 48, X, 61, § 1°, II, a, 84, VI, b, Constituição Federal; art. 47, XIX, a, Constituição Estadual) ou para os fins de contenção de despesas (art. 169, § 4°, Constituição). Bem explica Celso Antonio Bandeira de Mello que o regulamento previsto no art. 84, VI, a, da Constituição, é:

 

“(...) mera competência para um arranjo intestino dos órgãos e competências já criadas por lei’, como a transferência de departamentos e divisões, por exemplo (Celso Antonio Bandeira de Mello. Curso de Direito Administrativo, São Paulo: Malheiros, 2006, 21ª ed., pp. 324-325).

 

                   Neste sentido, pronuncia o Supremo Tribunal Federal:

“RECURSO EXTRAORDINÁRIO. PODER EXECUTIVO. COMPETÊNCIA LEGISLATIVA. ORGANIZAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. DECRETOS 26.118/05 E 25.975/05. REESTRUTURAÇÃO DE AUTARQUIA E CRIAÇÃO DE CARGOS. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. INOCORRENTE OFENSA À CONSTITUIÇÃO FEDERAL. RECURSO DESPROVIDO. I - A Constituição da República não oferece guarida à possibilidade de o Governador do Distrito Federal criar cargos e reestruturar órgãos públicos por meio de simples decreto. II - Mantida a decisão do Tribunal a quo, que, fundado em dispositivos da Lei Orgânica do DF, entendeu violado, na espécie, o princípio da reserva legal. III - Recurso Extraordinário desprovido” (STF, RE 577.025-DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, 11-12-2008, v.u., DJe 0-03-2009).

“1. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Condição. Objeto. Decreto que cria cargos públicos remunerados e estabelece as respectivas denominações, competências e remunerações. Execução de lei inconstitucional. Caráter residual de decreto autônomo. Possibilidade jurídica do pedido. Precedentes. É admissível controle concentrado de constitucionalidade de decreto que, dando execução a lei inconstitucional, crie cargos públicos remunerados e estabeleça as respectivas denominações, competências, atribuições e remunerações. 2. INCONSTITUCIONALIDADE. Ação direta. Art. 5° da Lei n° 1.124/2000, do Estado do Tocantins. Administração pública. Criação de cargos e funções. Fixação de atribuições e remuneração dos servidores. Efeitos jurídicos delegados a decretos do Chefe do Executivo. Aumento de despesas. Inadmissibilidade. Necessidade de lei em sentido formal, de iniciativa privativa daquele. Ofensa aos arts. 61, § 1°, inc. II, ‘a’, e 84, inc. VI, ‘a’, da CF. Precedentes. Ações julgadas procedentes. São inconstitucionais a lei que autorize o Chefe do Poder Executivo a dispor, mediante decreto, sobre criação de cargos públicos remunerados, bem como os decretos que lhe dêem execução” (STF, ADI 3.232-TO, Tribunal Pleno, Rel. Min. Cezar Peluso, 14-08-2008, v.u., DJe 02-10-2008).

        

         Comunga este entendimento o egrégio Tribunal de Justiça, como se nota da invocação de julgamento de seu colendo Órgão Especial:

 

“Ação direta de inconstitucionalidade – leis municipais de São Vicente – criação de cargos – não pode a lei delegar competência reservada a ela pela Constituição do Estado para decreto estabelecer as atribuições dos cargos (...) – ação procedente” (TJSP, ADI 170.044-0/7-00, Órgão Especial, Rel. Des. Eros Piceli, 24-06-2009, v.u.).

        

         Com maior razão a exigência de reserva legal em se tratando de cargos ou empregos de provimento em comissão, posto que serve para mensuração da perfeita subsunção da hipótese normativa concreta ao comando constitucional excepcional que restringe o comissionamento às funções de assessoramento, chefia e direção. Portanto, somente se a lei possuir atribuições nela descritas desse jaez, será legítima e não abusiva, nem artificial sua criação e sua forma de provimento. Quanto aos cargos de provimento efetivo, a exigência da reserva legal descritiva de suas atribuições também é impositiva, na medida em que contribui para o bom funcionamento administrativo e o respeito aos direitos dos administrados ao delimitar as competências de cada cargo na organização municipal.

                   Assim sendo, o art. 37 da Lei Complementar nº 14, de 23 de junho de 2003, por arrastamento, o Decreto nº 4.022, 06 de julho de 2008, ambos do Município de Irapuru, violam o disposto nos arts. 5º, § 1º, 24, § 2º, 1, 111 e 115, II, da Constituição Estadual.

 

III – Criação Inconstitucional de cargo comissionado

 

         A Lei Complementar nº 19, de 17 de junho de 2005, do Município de Irapuru, que “dispõe sobre a criação de cargo no quadro de servidores da Prefeitura Municipal de Irapuru e dá outras providências”, criou o cargo de provimento em comissão de Coordenador Municipal de Assistência Social.

          Entretanto, o referido cargo de provimento em comissão não corresponde à função de direção, chefia e assessoramento. Trata-se de lotação que não se situa na administração superior, nem demanda a estrita confiança, cujas missões devem ser realizadas por servidores de carreira, até mesmo para não haver solução de continuidade por sucessão de administradores.

A previsão normativa desse cargo de provimento em comissão, como adiante se demonstrará, não condiz com o artigo 37, incisos II e V, da Constituição Federal, nem com o artigo 115, incisos II e V, da Constituição Estadual.

 

 Por força da autonomia administrativa de que foram dotadas, as entidades municipais são livres para organizar os seus próprios serviços segundo suas conveniências locais. E, na organização desses serviços públicos, a Administração cria cargos e funções, institui classes e carreiras, faz provimentos e lotações, estabelece vencimentos e vantagens e delimita os deveres e direitos de seus servidores (cf. Hely Lopes Meirelles, Direito Municipal Brasileiro, 8ª. ed., São Paulo: Malheiros, 1996, p. 420).

Contudo, a liberdade conferida aos Municípios para organizar os seus próprios serviços não é ampla e ilimitada; ela se subordina às seguintes regras fundamentais e impostergáveis: (a) a que exige que essa organização se faça por lei; (b) a que prevê a competência exclusiva da entidade ou do Poder interessado; e (c) a que impõe a observância das normas constitucionais federais pertinentes ao servidor público (ob. e loc. cits.).

No caso em exame, o Legislador Municipal criou cargo de provimento em comissão para o exercício de função estritamente técnica ou profissional, própria de cargo de provimento efetivo. Trata-se de função que denota a natureza profissional do vínculo entre seu agente e a Prefeitura Municipal e que, por essa razão, só poderia ser preenchida por concurso público.

Segundo Ruy Cirne Lima (Princípios de Direito Administrativo, RT, 6.ª ed., p. 162), o funcionário público profissional se peculiariza por quatro característicos básicos, a saber: (a) natureza técnica ou prática do serviço prestado; (b) retribuição de cunho profissional; (c) vinculação jurídica à Administração Direta; e (d) caráter permanente dessa vinculação.

Desse modo, nitidamente diferenciado dos cargos que reclamam provimento em comissão, as funções profissionais devem ser exercidas em caráter permanente, ou seja, pelo quadro estável de servidores públicos municipais, os quais, em conformidade com o disposto no art. 115, inciso II, da Constituição do Estado de São Paulo, só podem ser arregimentados por concurso público de provas ou de provas e títulos.

Na verdade, o cargo em comissão destina-se apenas às atribuições de “direção, chefia e assessoramento” (CF, art. 37, inciso V, com a redação dada pela EC n.º 19/98) e tem por finalidade propiciar ao governante o controle das diretrizes políticas traçadas. Exige, portanto, das pessoas indicadas a titularizá-los, absoluta fidelidade à orientação fixada pela autoridade nomeante. Em outras palavras, o cargo de provimento em comissão está diretamente ligado ao dever de lealdade à linha fixada pelo agente político superior.

Daí porque a exceção contida na parte final do inciso II, do artigo 115, da Constituição do Estado de São Paulo - “ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração” -, que, no ponto, reproduz a dicção do artigo 37, inciso II, da Constituição da República, tem alcance limitado a situações excepcionais, relativas aos cargos cuja natureza especial justifique a dispensa de concurso público.

Torna-se evidente, portanto, que a limitação apontada não tem caráter puramente formal, de simples e incriteriosa indicação legal de cargos de provimento em comissão, que pudesse afastar o princípio constitucional da igual acessibilidade aos cargos públicos.

Bem a propósito, ao estudar com profundidade esse assunto, Márcio Cammarosano deixou anotado que o princípio democrático implica no princípio da igualdade “e este no princípio da igual acessibilidade dos cargos públicos, com o que se resguarda também o princípio da probidade administrativa” (Provimento de Cargos Públicos no Direito Brasileiro, São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 45).

Assim, para que a lei criadora de um cargo em comissão não venha a se constituir em burla ao princípio constitucional arrolado, enunciado expressamente pelo artigo 37, incisos I e II, da Constituição da República, deverá observar criteriosamente a natureza das funções a serem desempenhadas, pois, no dizer de Celso Antonio Bandeira de Mello (O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, Editora Revista dos Tribunais, 1.ª edição, pág. 49), “impende que exista uma adequação racional entre o tratamento diferenciado construído e a razão diferencial que lhe serviu de supedâneo”.

Afinado a esse mesmo entendimento, Hely Lopes Meirelles (Direito Administrativo Brasileiro, 18ª. ed, São Paulo: Malheiros, p. 378) adverte sobre pronunciamento do Supremo Tribunal Federal no sentido de que “a criação de cargo em comissão em moldes artificiais e não condizentes com as praxes de nosso ordenamento jurídico e administrativo, só pode ser encarada como inaceitável esvaziamento da exigência constitucional de concurso”.

Na esteira desse raciocínio, é inescusável que a parte final do inciso II do art. 115 da Constituição do Estado de São Paulo, tem alcance circunscrito a situações em que o requisito da confiança seja predicado indispensável ao exercício do cargo. De fato, como se trata de uma exceção à regra do concurso público, a criação de cargos em comissão pressupõe o atendimento do interesse público e só se justifica para o exercício de funções de “direção, chefia e assessoramento”, em que seja necessário o estabelecimento de vínculo de confiança entre a autoridade nomeante e o servidor nomeado. Fora desses parâmetros, é inconstitucional qualquer tentativa de criação de cargos dessa natureza.

É incontestável que o cargo de Coordenador Municipal de Assistência Social, cuja validade jurídico-constitucional ora se examina, não se apresenta como cargo ou função da administração superior, ou mesmo de “direção, chefia e assessoramento”, que exija relação de confiança ou especial fidelidade às diretrizes traçadas pela autoridade nomeante, mas, sim, de cargo comum, de natureza profissional, que deve ser assumido em caráter permanente por servidores aprovados em concurso.

Ademais, basta observar as atribuições do cargo de provimento em comissão de Coordenador Municipal de Assistência Social, fixadas inconstitucionalmente no Decreto nº 4.022/2008 (analisar, avaliar e prestar atendimento no âmbito social, a indivíduos, grupos e comunidades, elaborando diagnóstico para intervenção sócio-familiar, através de processos básicos e métodos próprios, a fim de promover a integração do indivíduo na sociedade), para concluir que são eminentemente técnicas e incompatíveis com os arts. 111; 115, incisos I, II e V, e 144, da Constituição do Estado de São Paulo.

 

IV – pedido de liminar

 

À saciedade demonstrado o fumus boni iuris, pela ponderabilidade do direito alegado, soma-se a ele o periculum in mora. A atual tessitura dos preceitos legais do Município de Irapuru apontados como violadores de princípios e regras da Constituição do Estado de São Paulo é sinal, de per si, para suspensão de sua eficácia até final julgamento desta ação.

À luz deste perfil, requer a concessão de liminar para suspensão da eficácia, até final e definitivo julgamento desta ação, dos incisos II, VI e VII do art. 2º da Lei Municipal n. 2.472, de 23 de janeiro de 2009; da Lei Complementar nº 19, de 17 de junho de 2005; do art. 37da Lei Complementar nº 14, de 23 de junho de 2003 e por arrastamento, do Decreto nº 4.022, de 06 de julho de 2008, tudo do Município de Irapuru.

V – pedido

 

Diante de todo o exposto, aguarda-se o recebimento e o processamento da presente ação declaratória para que, ao final, seja ela julgada procedente, reconhecendo-se a inconstitucionalidade dos  incisos II, VI e VII do art. 2º da Lei Municipal nº 2.472, de 23 de janeiro de 2009;  da Lei Complementar nº 19, de 17 de junho de 2005; do art. 37 da Lei Complementar nº 14, de 23 de junho de 2003 e, por arrastamento, do Decreto nº 4.022, de 06 de julho de 2008, todos do Município de Irapuru.

Requer-se ainda sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Senhor Prefeito Municipal de Irapuru, bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para manifestar-se sobre o ato normativo impugnado.

Posteriormente, aguarda-se vista para fins de manifestação final.

Termos em que,

Aguarda-se deferimento.

São Paulo, 30 de julho de 2012.

               

        Márcio Fernando Elias Rosa

        Procurador Geral de Justiça

 

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Protocolado n. 12093/11

 

Assunto: Inconstitucionalidade da Lei Complementar nº 19, de 17 de junho de 2005; do art. 37 da Lei Complementar nº 14,  de 23 de junho de 2003; por arrastamento, do Decreto nº 4.022, de 06 de julho de 2008 e dos incisos II, VI e VII do art. 2º da Lei nº 2.472, 23 de janeiro de 2009, todos do Município de Irapuru

 

 

1.     Distribua-se a inicial da ação direta de inconstitucionalidade.

2.     Oficie-se ao interessado, com o envio de cópias, comunicando-se a propositura da ação.

3.     Cumpra-se.

São Paulo, 30 de julho de 2012.

 

 

 

 

 

 

        Márcio Fernando Elias Rosa

        Procurador Geral de Justiça

 

 

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