EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO E. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

 

 

Protocolado nº 150.029/2013

 

                                              

Ementa:

 

 

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 2.900, de 15 de julho de 2013, do Município de Cordeirópolis, de iniciativa parlamentar, que Dispõe sobre a prioridade de passagem de pedestres nas vias e logradouros públicos do município de Cordeirópolis.

2)      Usurpação da competência legislativa privativa da União com violação do princípio federativo (art. 1º da Constituição Estadual). Não é o Município competente para legislar a respeito de trânsito (art. 22, XI, da Constituição Federal).

3)      A instalação de sinalização de trânsito nas vias e logradouros do município é matéria de competência privativa do Executivo, que, por seu órgão executivo de trânsito, tem o poder de regulamentar e operar o trânsito de veículos, implantar, manter e operar o sistema de sinalização, os dispositivos e os equipamentos de controle viário (violação do princípio da separação de poderes: art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144 da Constituição do Estado), sendo ainda inconstitucional a lei de iniciativa parlamentar pela ausência de fonte para custear as despesas criadas. (art. 25 da Constituição Estadual).

 

O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, inciso VI, da Lei Complementar Estadual nº 734 de 26 de novembro de 1993, e em conformidade com o disposto no art. 125, § 2º, e no art. 129, inciso IV, da Constituição da República, e ainda no art. 74, inciso VI, e no art. 90, inciso III, da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado (PGJ nº 150.029/2013, que segue como anexo), vem perante esse Egrégio Tribunal de Justiça promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE em face da Lei nº 2.900, de 15 de julho de 2013, do Município de Cordeirópolis, pelos fundamentos expostos a seguir:

1.     DO ATO NORMATIVO IMPUGNADO

O protocolado que instrui esta inicial de ação direta de inconstitucionalidade foi instaurado a partir de representação do Prefeito Municipal de Cordeirópolis (fls. 03).

A Lei nº 2.900, de 15 de julho de 2013, do Município de Cordeirópolis, de iniciativa parlamentar, que Dispõe sobre a prioridade de passagem de pedestres nas vias e logradouros públicos do município de Cordeirópolis, promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal, após superado o veto do executivo, tem a seguinte redação:

“Art. 1º - Fica estabelecida a prioridade de passagem de pedestres nas vias e logradouros do município de Cordeirópolis, exceto nos locais onde exista a sinalização semafórica.

 Art. 2º - O Poder Executivo providenciará sinalização em trechos antecipadamente definidos pela Secretaria de Segurança Pública de Cordeirópolis, instalando placas em locais que permitam ao motorista reduzir a velocidade, antes de atingir à faixa de pedestres.

Art. 3º - O Executivo Municipal terá a responsabilidade de fiscalizar e aplicar penalidades em casos de desobediência do transcrito no caput desta Lei, infringindo ao infrator multas de conformidade com o Código Brasileiro de Trânsito.

Art. 4º - As despesas decorrentes da execução desta lei correrão por conta das dotações orçamentárias próprias, suplementadas se necessárias.

Art. 5º - Esta lei será regulamentada pelo Poder Executivo, no que couber, no prazo máximo de 90 (noventa) dias, a contar da data da sua publicação.

 Art. 6º - Esta lei entrará em vigor na data da sua publicação”.

O ato normativo acima transcrito viola o princípio federativo que se manifesta na repartição constitucional de competências (arts. 1º e 144 da Constituição Estadual).

Dispor sobre prioridade de passagem em vias e logradouros públicos é matéria de competência da União, estando sujeita a normatização federal.

O esquema de repartição de competências entre os entes federados – expressão do princípio federativo – conferiu à União, sem espaço para os Estados e aos Municípios, a competência para legislar acerca de trânsito e transporte (art. 22, XI da Constituição Federal).

Sobre a matéria, a União, no uso de sua competência privativa de legislar (CF, art. 22, XI), editou a Lei nº 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro), dispondo acerca do trânsito de qualquer natureza nas vias terrestres do território nacional. Trânsito, nos termos do § 1 º do art. 1º da Lei nº 9.503/97, consiste na utilização das vias por pessoas, veículos e animais, isolados ou em grupos, conduzidos ou não, para fins de circulação, parada, estacionamento e operação de carga ou descarga.

Especificamente acerca da preferência de passagem de pedestres nas vias e logradouros públicos, dispõe o art. 70 da Lei nº 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro) o seguinte:

Art. 70. Os pedestres que estiverem atravessando a via sobre as faixas delimitadas para esse fim terão prioridade de passagem, exceto nos locais com sinalização semafórica, onde deverão ser respeitadas as disposições deste Código.

        Parágrafo único. Nos locais em que houver sinalização semafórica de controle de passagem será dada preferência aos pedestres que não tenham concluído a travessia, mesmo em caso de mudança do semáforo liberando a passagem dos veículos.

(...)

Art. 214. Deixar de dar preferência de passagem a pedestre e a veículo não motorizado:

I - que se encontre na faixa a ele destinada;

II - que não haja concluído a travessia mesmo que ocorra sinal verde para o veículo;

III - portadores de deficiência física, crianças, idosos e gestantes:

Infração - gravíssima;

Penalidade - multa.

IV - quando houver iniciado a travessia mesmo que não haja sinalização a ele destinada;

V - que esteja atravessando a via transversal para onde se dirige o veículo:

Infração - grave;

Penalidade - multa.”

Nem se alegue a existência de competência complementar municipal, fundada na autonomia para legislar sobre assunto de interesse local. A questão, como exposta, demonstra a inocorrência dos motivos que justificariam a competência legislativa municipal, haja vista que regras de trânsito tem abrangência nacional e não se subordinam a uma prevalência local. Deste modo, normas municipais que invadem o campo da disciplina normativa do trânsito, violam a competência normativa federal.

Ainda que assim não fosse, o assunto, em termos acadêmicos, foi bem examinado por Fernanda Menezes Dias de Almeida assentando que a colisão de competências resolve-se pela prevalência das “determinações emanadas do titular da competência legislativa privativa” (Competências na Constituição de 1988, São Paulo: Atlas, 2ª ed., p. 159).

A autonomia das entidades federativas pressupõe repartição de competências legislativas, administrativas e tributárias. Trata-se de um dos pontos caracterizadores e asseguradores da existência e de harmonia do Estado Federal.

A base do conceito do Estado Federal reside exatamente na repartição de poderes autônomos, que, na concepção tridimensional do Estado Federal Brasileiro, se dá entre a União, os Estado e os Municípios. É através desta distribuição de competências que a Constituição Federal garante o princípio federativo. O respeito à autonomia dos entes federativos é imprescindível para a manutenção do Estado Federal.

Dessa forma, no conflito normativo aqui analisado, conclui-se que o art. 1º da Lei nº 2.900/2013, do Município de Cordeirópolis, viola o princípio da repartição constitucional de competências, que é a manifestação mais contundente do princípio federativo, operando, por consequência, desrespeito a princípios constitucionais estabelecidos.

Essa é a razão pela qual restou configurada, no caso, a ofensa ao disposto nos arts. 1º, 5º e 144, da Constituição do Estado de São Paulo.

O art. 2º da Lei nº 2.900/2013, do Município de Cordeirópolis, ao determinar ao Poder Executivo que providencie sinalização das vias públicas, viola o princípio da separação de poderes, previsto no art. 5º, e no art. 47, II e XIV, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista, os quais dispõem o seguinte:

“Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

A matéria disciplinada pela Lei encontra-se no âmbito da atividade administrativa do Município, cuja direção superior cabe ao Prefeito Municipal, com auxílio dos Secretários Municipais.

A providência determinada pela lei é atividade nitidamente administrativa, representativa de atos de gestão, de escolha política para a satisfação das necessidades essenciais coletivas, vinculadas aos Direitos Fundamentais. Assim, privativa do Poder Executivo e inserida na esfera do poder discricionário da administração.

Não se trata, evidentemente, de atividade sujeita a disciplina legislativa. O poder Legislativo não pode através de lei ocupar-se da administração, sob pena de se permitir que o legislador administre invadindo área privativa do Poder Executivo.

Assim, quando o Poder Legislativo do Município edita lei disciplinando atuação administrativa, como ocorre, no caso em exame, em função da determinação de instalação de placas para redução de velocidade nas proximidades de faixas de pedestres, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do Administrador Público, violando o princípio da separação de poderes.

Cabe essencialmente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito da conveniência e oportunidade da providência determinada pela lei. Trata-se de atuação administrativa que decorre de escolha política de gestão, na qual é vedada intromissão de qualquer outro poder.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144).

É pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.

A matéria tratada na lei encontra-se na órbita da chamada reserva da administração, que reúne as competências próprias de administração e gestão, imunes a interferência de outro poder  (art. 47, II e IX da Constituição Estadual - aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144), por serem privativas do Chefe do Poder Executivo.

Ainda que se imagine que houvesse necessidade de disciplinar por lei alguma matéria de gestão municipal, a iniciativa seria privativa do Chefe do Poder Executivo, quando ele mesmo não pudesse discipliná-la por decreto nos termos do art. 47, XIX da Constituição Estadual.

Assim, a Lei, ao determinar providência administrativa, de um lado, viola o art. 47, II e XIV, no estabelecimento de regras que respeitam à direção da administração e à organização e ao funcionamento do Poder Executivo, matéria essa que é da alçada da reserva da Administração, e de outro, ela ofende o art. 24, § 2º, 2, na medida em que impõe atribuição ao Poder Executivo.

A inconstitucionalidade transparece exatamente pelo divórcio da iniciativa parlamentar da lei local com esses preceitos da Constituição Estadual.

Importante ainda consignar que as regras de trânsito no âmbito municipal, atendidas as regras gerais do Código de Trânsito Brasileiro, encontram-se na gestão administrativa do Município, que é privativa do Poder Executivo.

Nos termos do art. 21, II, do Código de Trânsito Brasileiro, compete aos órgãos e entidades executivos rodoviários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, no âmbito de sua circunscrição, planejar, projetar, regulamentar e operar o trânsito de veículos, de pedestres e de animais, e promover o desenvolvimento da circulação e da segurança de ciclistas.

Regulamentar e operar o trânsito de veículos e de pedestres implica disciplinar preferências de passagem.

De outro lado, a atividade de regulamentação da via – definida no Código de Trânsito Brasileiro (Anexo I - Dos conceitos e definições) como “implantação de sinalização de regulamentação pelo órgão ou entidade competente com circunscrição sobre a via, definindo, entre outros, sentido de direção, tipo de estacionamento, horários e dias” cabe ao órgão executivo de trânsito.

Neste sentido dispõe o Código de Trânsito Brasileiro ao estabelecer que:

 “Art. 24. Compete aos órgãos e entidades executivos de trânsito dos Municípios, no âmbito de sua circunscrição:

(...)

II - planejar, projetar, regulamentar e operar o trânsito de veículos, de pedestres e de animais, e promover o desenvolvimento da circulação e da segurança de ciclistas;

III - implantar, manter e operar o sistema de sinalização, os dispositivos e os equipamentos de controle viário”

Evidente que se trata de atribuição conferida a órgão do Poder Executivo, pela própria dicção do termo utilizado “órgão executivo de trânsito”, portanto, inviável sua regulamentação por iniciativa do Poder Legislativo.

Os problemas decorrentes do trânsito nas cidades exigem estudo e planejamento para a adequada solução dos transtornos que podem provocar aos munícipes, atividades relacionadas à gestão administrativa.

Por este motivo, cabe essencialmente ao Poder Executivo, e não ao legislador, deliberar a respeito da implantação da sinalização de trânsito. Atuação administrativa que decorre de escolha política de gestão, na qual é vedada intromissão de qualquer outro poder.

De outro lado, e não menos importante, a lei local contestada colide frontalmente com o art. 25 da Constituição do Estado de São Paulo.

A norma combatida não indicou de forma adequada os recursos orçamentários necessários para a cobertura dos gastos advindos que, no caso, são evidentes porquanto ordena atividade nova na Administração Pública, cuja instalação e desenvolvimento demandam meios financeiros que não foram previstos, não servindo a genérica menção a dotações orçamentárias próprias.

 

2 – DO PEDIDO LIMINAR

Quando se trata do controle normativo abstrato e desde que haja a cumulativa satisfação dos requisitos concernentes ao fumus boni juris e ao periculum in mora, o poder geral de cautela autoriza a suspensão da eficácia de dispositivos legais impugnados, até o advento da decisão final.

Amplamente demonstrado está o fumus boni iuris, pela ponderabilidade do direito alegado, soma-se a ele o periculum in mora.

O art. 3º da lei impugnada autoriza ao executivo municipal a aplicação de multas a todos aqueles que vierem a infringir o que nela está disposto. Assim, a manutenção da eficácia deste ato normativo acarretará grave conseqüência a terceiros, pois poderão vir a ser penalizados, com base em lei que não se coaduna com o arcabouço constitucional, conforme à saciedade demonstrado.

A atual tessitura do preceito normativo municipal apontado como violador de princípios e regras da Constituição do Estado de São Paulo é sinal, de per si, para suspensão de sua eficácia até final julgamento desta ação, evitando-se atuação desconforme o ordenamento jurídico, criadora de lesão irreparável ou de difícil reparação, sobretudo aos terceiros que serão autuados, com base no seu art. 3º.

Neste caso, tais requisitos se fazem presentes, de modo que está translúcida a conveniência de sustar, provisoriamente, a eficácia dos dispositivos questionados.

Com efeito, no contexto das ações diretas e da outorga de provimentos cautelares para defesa da Constituição, o juízo de conveniência é um critério relevante, que vem condicionando os pronunciamentos mais recentes do Supremo Tribunal Federal, preordenados à suspensão liminar de leis aparentemente inconstitucionais (cf. ADIN-MC 125, j. 15.2.90, DJU de 4.5.90, p. 3.693, rel. Min. Celso de Mello; ADIN-MC 568, RTJ 138/64; ADIN-MC 493, RTJ 142/52; ADIN-MC 540, DJU de 25.9.92, p. 16.182).  Necessária, pois,  a    medida que se requer.

3.     DO PEDIDO PRINCIPAL

Diante de todo o exposto, aguarda-se o recebimento e processamento da presente ação declaratória, para que ao final seja ela julgada procedente, reconhecendo-se a inconstitucionalidade da Lei nº 2.900, de 15 de julho de 2013, do Município de Cordeirópolis.

Requer-se ainda que sejam requisitadas informações ao Prefeito Municipal e à Câmara Municipal de Cordeirópolis, bem como posteriormente citado o Procurador Geral do Estado para manifestar-se sobre o ato normativo impugnado.

Posteriormente, aguarda-se vista para fins de manifestação final.

Termos em que,

Aguarda-se deferimento.

 

São Paulo, 11 de fevereiro de 2014

 

         Márcio Fernando Elias Rosa

         Procurador-Geral de Justiça

 

 

aca


 

Protocolado nº 150.029/2013

Interessado – Promotoria de Justiça de Cordeirópolis

 

 

 

 

1.     Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade em face da Lei nº 2.900, de 15 de julho de 2013, do Município de Cordeirópolis.

2.     Oficie-se ao representante informando a propositura da ação, com cópia da petição inicial.

 

São Paulo, 11 de fevereiro de 2014

 

 

 

Márcio Fernando Elias Rosa

Procurador-Geral de Justiça

 

 

 

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