EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO E. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Protocolado nº 32.399/12

Assunto: Inconstitucionalidade parcial da Lei nº 2.823, de 21 de outubro de 2011, e integral da Lei nº 2.839, de 13 de dezembro de 2011, do Município de Guararema

 

Ementa: Lei nº 2.823, de 21 de outubro de 2011, que cria empregos de provimento em comissão e Lei nº 2.839, de 13 de dezembro de 2011, do Município de Guararema, que alterou as atribuições desses empregos, aos quais não correspondem funções de direção, chefia e assessoramento, mas funções próprias dos cargos de provimento efetivo.  Violação dos arts. 111, 115, incs. II e V, e 144 da Constituição do Estado de São Paulo. Pedido para que se declare a inconstitucionalidade material das expressões das leis que identificam tais empregos.

 

 

O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, inciso VI, da Lei Complementar Estadual nº 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo), em conformidade com o disposto no art. 125, § 2º, e no art. 129, inciso IV, da Constituição Federal, e ainda nos arts. 74, inciso VI, e 90, inciso III da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado, vem, respeitosamente, perante esse Egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE parcial da Lei nº 2.823, de 21 de outubro de 2011, e integral da Lei nº 2.839, de 13 de dezembro de 2011, do Município de Guararema, pelos fundamentos a seguir expostos.

I – DOS ATOS NORMATIVOS IMPUGNADOS

A Lei nº 2.823, de 21 de outubro de 2011 , que “Dispõe sobre a estrutura de empregos, salários e carreiras da Prefeitura Municipal de Guararema e dá outras providências”, criou, dentre outros, no Anexo II, os seguintes empregos de provimento em comissão, cujas atribuições foram alteradas pela Lei nº 2.839, de 13 de dezembro de 2011:

1. Assessor Técnico – Atribuições: Pesquisar, analisar, planejar e propor a implantação de serviços de interesse da Administração; prestar assessoria técnica, específica e especializada, aos seus superiores e demais autoridades; orientar Diretores Técnicos no desempenho de suas atividades;

2. Diretor Técnico - Atribuições: Planejar e fazer executar a programação dos serviços afetos à sua área dentro dos prazos previstos; orientar os Encarregados Técnicos e Assistentes Técnicos na realização dos trabalhos, bem como na sua conduta funcional; prestar assistência e despachar o expediente de sua área diretamente com as autoridades superiores;

3. Assistente Técnico - Atribuições: Pesquisar, analisar, planejar e propor implantação de serviços dentro da sua área de atuação; prestar assistência técnica, específica e especializada aos seus superiores e demais autoridades; orientar os Agentes de Gestão e outros profissionais do quadro no desempenho de suas atividades.

Ocorre que aos empregos, instituídos pela lei impugnada, não correspondem funções de direção, chefia e assessoramento. São lotações que não se situam na administração superior, nem demandam a estrita confiança, cujas missões devem ser realizadas por servidores de carreira, até mesmo para não haver solução de continuidade por sucessão de administradores.

A previsão normativa desses cargos de provimento em comissão não condiz com o artigo 37, incisos II e V, da Constituição Federal ou com o artigo 115, incisos II e V, da Constituição Estadual.

É o que será demonstrado a seguir.

II – DO DIREITO

A Constituição em vigor consagrou o Município como entidade federativa indispensável ao nosso sistema federativo, integrando-o na organização político-administrativa e garantindo-lhe plena autonomia, como se observa da análise dos arts. 1.º, 18, 29, 30 e 34, VI, “c”, da CF (cf. Alexandre de Moraes, “Direito Constitucional”, São Paulo: Atlas, 7.ª ed., p. 261).

A autonomia concedida aos Municípios não tem caráter absoluto e soberano. Pelo contrário, encontra limites nos princípios emanados dos poderes públicos e dos pactos fundamentais, que instituíram a soberania de um povo (cf. De Plácido e Silva, “Vocabulário Jurídico”, Rio de Janeiro: Forense, v. I, 1984, p. 251), sendo definida por José Afonso da Silva como “a capacidade ou poder de gerir os próprios negócios, dentro de um círculo prefixado por entidade superior”, que no caso é a Constituição (Curso de Direito Constitucional Positivo, 8ª. ed., São Paulo: Malheiros, 1992, p. 545).

A autonomia municipal se assenta em quatro capacidades básicas: (a) auto-organização, mediante a elaboração de lei orgânica própria, (b) autogoverno, pela eletividade do Prefeito e dos Vereadores às respectivas Câmaras Municipais, (c) autolegislação, mediante competência de elaboração de leis municipais sobre áreas que são reservadas à sua competência exclusiva e suplementar, (d) autoadministração ou administração própria, para manter e prestar os serviços de interesse local (cf. José Afonso da Silva, ob. cit., p. 546).

Nessas quatro capacidades, encontram-se caracterizadas a autonomia política (capacidades de auto-organização e autogoverno), a autonomia normativa (capacidade de fazer leis próprias sobre matéria de sua competência), a autonomia administrativa (administração própria e organização dos serviços locais) e a autonomia financeira (capacidade de decretação de seus tributos e aplicação de suas rendas, que é uma característica da autoadministração) (ob. e loc. cits).

Assim, por força da autonomia administrativa de que foram dotadas, as entidades municipais são livres para organizar os seus próprios serviços, segundo suas conveniências locais. E, na organização desses serviços públicos, a Administração cria cargos e funções, institui classes e carreiras, faz provimentos e lotações, estabelece vencimentos e vantagens e delimita os deveres e direitos de seus servidores (cf. Hely Lopes Meirelles, Direito Municipal Brasileiro, 8ª. ed., São Paulo: Malheiros, 1996, p. 420).

Contudo, a liberdade conferida aos Municípios para organizar os seus próprios serviços não é ampla e ilimitada; ela se subordina às seguintes regras fundamentais e impostergáveis: (a) a que exige que essa organização se faça por lei; (b) a que prevê a competência exclusiva da entidade ou Poder interessado; e (c) a que impõe a observância das normas constitucionais federais pertinentes ao servidor público (ob. e loc. cits.).

No caso em exame, o Legislador Municipal criou empregos de provimento em comissão para o exercício de funções estritamente técnicas ou profissionais, próprias dos cargos de provimento efetivo. São funções que denotam a natureza profissional do vínculo entre seus agentes e a Administração Pública e que, por essa razão, só poderiam ser preenchidas por concurso público.

Segundo Ruy Cirne Lima (Princípios de Direito Administrativo, RT, 6.ª ed., p. 162), o funcionário público profissional se peculiariza por quatro característicos básicos, a saber: (a) natureza técnica ou prática do serviço prestado; (b) retribuição de cunho profissional; (c) vinculação jurídica à Administração Direta; (d) caráter permanente dessa vinculação.

Desse modo, nitidamente diferenciado dos empregos que reclamam provimento em comissão, as funções profissionais devem ser exercidas em caráter permanente, ou seja, pelo quadro estável de servidores públicos municipais, os quais, em conformidade com o disposto no art. 115, inciso II, da Constituição do Estado de São Paulo, só podem ser arregimentados por concurso público de provas ou de provas e títulos.

Na verdade, o emprego em comissão destina-se apenas às atribuições de “direção, chefia e assessoramento” (CF., art. 37, inciso V, com a redação dada pela EC n.º 19/98) e tem por finalidade propiciar ao governante o controle das diretrizes políticas traçadas. Exige, portanto, das pessoas indicadas a titularizá-los, absoluta fidelidade à orientação fixada pela autoridade nomeante. Em outras palavras, o cargo de provimento em comissão está diretamente ligado ao dever de lealdade à linha fixada pelo agente político superior.

Daí porque a exceção contida na parte final do inciso II, do artigo 115, da Constituição do Estado de São Paulo - “ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração” -, que, no ponto, reproduz a dicção do artigo 37, inciso II, da Constituição da República, tem alcance limitado a situações excepcionais, relativas aos cargos cuja natureza especial justifique a dispensa de concurso público.

Torna-se evidente, portanto, que a limitação apontada não tem caráter puramente formal, de simples e incriteriosa indicação legal de cargos de provimento em comissão, que pudesse afastar o princípio constitucional da igual acessibilidade aos cargos públicos.

Bem a propósito, ao estudar com profundidade esse assunto, Márcio Cammarosano deixou anotado que o princípio democrático implica no princípio da igualdade “e este no princípio da igual acessibilidade dos cargos públicos, com o que se resguarda também o princípio da probidade administrativa” (Provimento de Cargos Públicos no Direito Brasileiro, São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 45).

Assim, para que a lei criadora de um emprego em comissão não venha a se constituir em burla ao princípio constitucional arrolado, enunciado expressamente pelo artigo 37, incisos I e II, da Constituição da República, deverá observar criteriosamente a natureza das funções a serem desempenhadas, pois, no dizer de Celso Antonio Bandeira de Mello (O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, Editora Revista dos Tribunais, 1.ª edição, pág. 49), “impende que exista uma adequação racional entre o tratamento diferençado construído e a razão diferencial que lhe serviu de supedâneo”.

Afinado a esse mesmo entendimento, Hely Lopes Meirelles (Direito Administrativo Brasileiro, 18ª. ed, São Paulo: Malheiros, p. 378) adverte sobre pronunciamento do Supremo Tribunal Federal no sentido de que “a criação de cargo em comissão em moldes artificiais e não condizentes com as praxes de nosso ordenamento jurídico e administrativo, só pode ser encarada como inaceitável esvaziamento da exigência constitucional de concurso”.

E, da mesma forma, já decidiu o Pretório Excelso que “a exigência constitucional do concurso público não pode ser contornada pela criação arbitrária de cargos em comissão para o exercício de funções que não pressuponham o vínculo de confiança que explica o regime de livre nomeação e exoneração que os caracteriza.” (STF, RTJ 156/793)

Na esteira desse raciocínio, é inescusável que a parte final do inciso II do art. 115 da Constituição do Estado de São Paulo, tem alcance circunscrito a situações em que o requisito da confiança seja predicado indispensável ao exercício do cargo. De fato, como se trata de uma exceção à regra do concurso público, a criação de empregos em comissão pressupõe o atendimento do interesse público e só se justifica para o exercício de funções de “direção, chefia e assessoramento”, em que seja necessário o estabelecimento de vínculo de confiança entre a autoridade nomeante e o servidor nomeado. Fora desses parâmetros, é inconstitucional qualquer tentativa de criação de empregos dessa natureza.

É incontestável que os empregos abaixo relacionados, cuja validade jurídico-constitucional ora se examina, não se apresentam como cargos ou funções da administração superior, ou mesmo de “direção, chefia e assessoramento”, que exijam relação de confiança ou especial fidelidade às diretrizes traçadas pela autoridade nomeante, mas sim de cargos comuns, de natureza profissional, que devem ser assumidos em caráter permanente por servidores aprovados em concurso.

Em recente julgado (ADIN n° 157 951-0/0. Rel. Des. Sousa Lima. j. 25.6.2008), aliás, esse E. Tribunal de Justiça declarou a inconstitucionalidade de dispositivos de lei municipal que instituiu os seguintes cargos de provimento em comissão, alguns dos quais análogos e/ou com denominações equivalentes aos impugnados, a saber: 1) Assistente Administrativo Escolar; 2) Diretor de Escola; 3) Supervisor de Ensino Fundamental; 4) Agente Municipal de Crédito; 5) Assistente Administrativo Escolar; 6) Chefe de Serviços de Acervo Histórico e Difusão Cultural; 7) Chefe de Serviços de Cadastro Único; 8) Chefe de Serviços de Comunicação; 9) Chefe de Serviços de Esportes Comunitários e de Rendimento; 10) Chefe de Serviços de Fiscalização de Tributos e Posturas; 11) Chefe de Serviços de Turismo; 12) Chefe de Serviços de Gerenciamento da Patrulha Agrícola; 13) Administrador do Ginásio de Esportes; 14) Administrador do Centro de Convivência; 15) Coordenador Geral de Creches; 16) Coordenador Médico; 17) Coordenador Odontológico; 18) Agente Administrativo Financeiro; 19) Agente Administrativo de Recursos Humanos; 20) Supervisor de Saneamento; 21) Assessor Administrativo; 22) Diretor Técnico do Centro de Reabilitação; 23) Assessor Administrativo da Guarda Municipal; 24) Assessor Pedagógico; e 25) Assessor de Diretor.

Para finalizar, lembra-se que o Órgão Especial desse Egrégio Tribunal de Justiça entende ser possível declarar a inconstitucionalidade material de expressões de lei criadora de cargos em comissão (ADIN n.º 11.939-0, relator Des. OLIVEIRA COSTA), cuja natureza não correspondia às características próprias dessas funções, daí porque, também aqui se impõe declarar a insubsistência dos seguintes empregos previstos na lei impugnada, por serem incompatíveis com os arts. 111, 115, incisos II e V, e 144 da Constituição do Estado de São Paulo, a saber: Assessor Técnico, Diretor Técnico e Assistente Técnico.

III – CONCLUSÃO

Por todo o exposto, evidencia-se a necessidade de reconhecimento da inconstitucionalidade das normas aqui apontadas.

IV – Pedido liminar

À saciedade demonstrado o fumus boni iuris, pela ponderabilidade do direito alegado, soma-se a ele o periculum in mora. A atual tessitura do preceito legal do Município de Guararema apontados como violadores de princípios e regras da Constituição do Estado de São Paulo é sinal, de per si, para suspensão de sua eficácia até final julgamento desta ação.

À luz deste perfil, requer a concessão de liminar para suspensão da eficácia, até final e definitivo julgamento desta Ação Direta de Inconstitucionalidade parcial do Anexo II da Lei n. 2.823, de 21 de outubro de 2011, e integral da Lei nº 2.839, de 13 de dezembro de 2011, do Município de Guararema, em que constam os empregos impugnados.

V – Pedido

Assim, aguarda-se o recebimento e processamento da presente Ação Declaratória, para que ao final seja julgada procedente, reconhecendo-se a inconstitucionalidade parcial do anexo II da Lei nº 2.823, de 21 de outubro de 2011, nas partes em que foram previstos os cargos de provimento em comissão de Assessor Técnico, Diretor Técnico e Assistente Técnico, e integral da Lei nº 2.839, de 13 de dezembro de 2011, do Município de Guararema, que lhes alterou as atribuições.

Requer-se ainda sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Prefeito Municipal, bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para se manifestar sobre os atos normativos impugnados.

Após, aguarda-se vista para fins de manifestação final.

São Paulo, 23 de maio de 2012.

 

                Márcio Fernando Elias Rosa

                                           Procurador-Geral de Justiça

 

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Protocolado nº 32.399/12

Assunto: Inconstitucionalidade parcial da Lei nº 2.823, de 21 de outubro de 2011, e integral da Lei nº 2.839, de 13 de dezembro de 2011, do Município de Guararema.

 

 

 

 

1.     Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade de parte do Anexo II da Lei n. 2.823, de 21 de outubro de 2011, e da Lei nº 2.839, de 13 de dezembro de 2011, do Município de Guararema, junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

2.     Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.

                   São Paulo, 23 de maio de 2012.

 

 

 

 

Márcio Fernando Elias Rosa

Procurador-Geral de Justiça

 

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