EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO E. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

 

Protocolado nº 059.652/12

 

 

Ementa: Ação Direta de Inconstitucionalidade em face da Lei nº 15.499, de 07 de dezembro de 2011, do Município de São Paulo, que “Institui o Auto de Licença de Funcionamento Condicionado e, dá outras providências”, e por arrastamento do Decreto n. 52.857, de 20 de dezembro de 2011, que a regulamenta. Lei de iniciativa parlamentar. Matéria tipicamente administrativa. Invasão da esfera da gestão administrativa reservada ao Poder Executivo. Caracterizada a usurpação de atribuições do Prefeito pela Câmara, com repercussão direta na independência e harmonia entre os Poderes.   Violação dos arts. 5º, 47, II, XIV e 144, todos da Constituição Paulista.

 

O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, inciso VI, da Lei Complementar Estadual nº 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo), em conformidade com o disposto no art. 125, § 2º, e no art. 129, inciso IV, da Constituição Federal, e ainda nos arts. 74, inciso VI, e 90, inciso III, da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado, vem, respeitosamente, perante esse Egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE  em face da Lei nº 15.499, de 07 de dezembro de 2011, do Município de São Paulo,  e por arrastamento do Decreto n. 52.857, de 20 de dezembro de 2011, que a regulamenta, pelos fundamentos a seguir expostos.

I – DOS ATOS NORMATIVOS IMPUGNADOS

A Lei nº 15.499, de 07 de dezembro de 2011, do Município de São Paulo, que “Institui o Auto de Licença de Funcionamento Condicionado e, dá outras providências”, apresenta a seguinte redação:

“CAPÍTULO I

DAS DISPOSIÇÕES GERAIS

Art. 1º A instalação e o funcionamento de atividades não residenciais em edificações em situação irregular, nos termos da legislação em vigor no âmbito do Município de São Paulo, dar-se-á mediante a obtenção do Auto de Licença de Funcionamento Condicionado, ora instituído.

Art. 2º O Auto de Licença de Funcionamento Condicionado será expedido para atividades comerciais, industriais, institucionais e de prestação de serviços, compatíveis ou toleráveis com a vizinhança residencial, exercidas em edificação em situação irregular, classificadas na subcategoria de uso não residencial - nR1 e nR2, nos termos do art. 154, incisos I e II, respectivamente, da Lei nº 13.885, de 25 de agosto de 2004, nas hipóteses permissivas de Auto de Licença de Funcionamento, nos termos da legislação em vigor, desde que:

I - a atividade exercida seja permitida no local em face da zona de uso e da categoria e largura da via, atenda os parâmetros de incomodidade, as condições de instalação e usos estabelecidos no inciso I e alíneas ‘a’, ‘d’, ‘e’, e ‘g’ do inciso II do art. 174 e do Quadro nº 04 da Lei nº 13.885, de 25 de agosto de 2004 e, quando localizada em área de mananciais, esteja elencada dentre aquelas admitidas nas Áreas de Intervenção estabelecidas pelas leis estaduais específicas de proteção e recuperação dos mananciais da Billings e Guarapiranga;

II - a edificação a ser utilizada para o exercício da atividade tenha área total de até 1.500,00m² (mil e quinhentos metros quadrados);

III - o responsável técnico legalmente habilitado, conjuntamente com o responsável pelo uso, atestem que cumprirão a legislação municipal, estadual e federal vigentes acerca das condições de higiene, segurança de uso, estabilidade e habitabilidade da edificação.

§ 1º Não sendo possível o atendimento do número de vagas exigidas para estacionamento de veículos no local, esta exigência poderá ser atendida com a vinculação de vagas em outro imóvel, nos termos da legislação em vigor.

§ 2º O espaço destinado ao estacionamento de veículos em outro imóvel, referido no § 1º deste artigo, poderá ser disponibilizado por meio de convênio firmado com estacionamento e serviço de manobristas, devendo o instrumento contratual ser mantido à disposição dos órgãos de fiscalização municipal.

§ 3º Na hipótese dos §§ 1º e 2º deste artigo deverá ser afixado no acesso principal da edificação ocupada pela atividade, em local visível para o público, a indicação do local do estacionamento e o número de vagas disponível.

Art. 3º O Auto de Licença de Funcionamento Condicionado deverá ser requerido pelos responsáveis por atividades comerciais, industriais, institucionais e de prestação de serviços e terá o prazo de validade de 2 (dois) anos, renovável por igual período.

§ 1º A expedição da renovação do Auto de Licença Condicionado dependerá da comprovação, por parte do interessado, de que já deu início ao procedimento de regularização da edificação junto ao órgão competente.

§ 2º A expedição do Auto de Licença de Funcionamento correspondente ao Auto de Licença de Funcionamento Condicionado expedido fica condicionada à regularização da edificação por parte do proprietário ou possuidor mediante a apresentação de todos os demais documentos exigidos para sua concessão.

§ 3º Quando for necessária a manifestação das autoridades do Corpo de Bombeiros, Sanitária e Ambiental deverá tal previsão constar expressamente do Auto de Licença de Funcionamento Condicionado.

§ 4º A licença de que trata esta lei e, quando for o caso, os documentos oriundos das autoridades Sanitária e Ambiental deverão ser afixados no acesso principal da edificação ocupada pela atividade, em local visível para o público.

§ 5º Também deverá ficar afixado no acesso principal da edificação ocupada pela atividade, quando for o caso, em local visível ao público, o Auto de Vistoria do Corpo de Bombeiros - AVCB.

Art. 4º O Auto de Licença de Funcionamento Condicionado não será expedido em relação à edificação:

I - cuja atividade pleiteada não seja permitida para a zona de uso em que se situa;

II - situada em área contaminada, ‘non aedificandi’ ou de preservação ambiental permanente;

III - que tenha invadido logradouro ou terreno público;

IV - que seja objeto de ação judicial promovida pelo Município de São Paulo, objetivando a sua demolição;

V - em área de risco geológico-geotécnico.

Parágrafo único. A vedação contida no ‘caput’ c/c inciso III deste artigo não se aplica às áreas públicas objeto de concessão, permissão, autorização de uso e locação social.

Art. 5º O Auto de Licença de Funcionamento Condicionado ora instituído fica dispensado para:

I - o exercício da profissão dos moradores em suas residências com o emprego de, no máximo, 1 (um) auxiliar ou funcionário, atendidos os parâmetros de incomodidade definidos para a zona de uso ou via, nos termos do art. 249 da Lei nº 13.885, de 25 de agosto de 2004;

II - o exercício, em Zona Exclusivamente Residencial - ZER, de atividades intelectuais dos moradores em suas residências, sem recepção de clientes ou utilização de auxiliares ou funcionários, atendidos os parâmetros de incomodidade definidos para a ZER, nos termos do art. 250 da Lei nº 13.885, de 2004;

III - o exercício das atividades não residenciais desempenhadas por Microempreendedor Individual - MEI devidamente registrado nas hipóteses previstas na legislação pertinente e definidas por ato do Executivo, atendidos os parâmetros de incomodidade definidos para a zona de uso ou via, assim como as exigências relativas à segurança, higiene e salubridade.

§ 1º O disposto no inciso I deste artigo se aplica a qualquer zona de uso, com exceção da Zona Exclusivamente Residencial - ZER onde tal atividade não é permitida.

§ 2º O disposto no inciso III deste artigo se aplica a qualquer zona de uso, com exceção da Zona Exclusivamente Residencial - ZER e da Zona Exclusivamente Residencial de Proteção Ambiental - ZERp, onde tal atividade não é permitida.

CAPÍTULO II

DA EXPEDIÇÃO DO AUTO DE LICENÇA DE FUNCIONAMENTO CONDICIONADO POR VIA ELETRÔNICA

Art. 6º Presentes todos os requisitos técnicos fixados no art. 2º desta lei, declarados pelo interessado e responsável técnico por ele contratado, no limite de suas atribuições profissionais, será emitido o Auto de Licença de Funcionamento Condicionado por via eletrônica, através da aceitação do Termo de Responsabilidade emitido pelo sistema eletrônico, no qual tomarão ciência das respectivas regras, bem como das multas aplicáveis em decorrência de seu uso indevido ou da prestação de informações inverídicas.

§ 1º O Executivo manterá sistema de consulta e emissão do Auto de Licença de Funcionamento Condicionado por via eletrônica, acessíveis pela rede mundial de computadores, para:

I - consulta prévia quanto à viabilidade do exercício da atividade pretendida no local escolhido, em face da legislação de parcelamento, uso e ocupação do solo e indicação dos requisitos a serem atendidos para a obtenção do Auto de Licença de Funcionamento Condicionado;

II - expedição do Auto de Licença de Funcionamento Condicionado por via eletrônica.

§ 2º O sistema de consulta prévia, aplicado à emissão do Auto de Licença de Funcionamento Condicionado, buscará alcançar futura integração com outros órgãos estaduais e federais encarregados do licenciamento de atividades, com o objetivo de monitorar o atendimento a suas exigências específicas e facilitar o registro das atividades.

§ 3º O Executivo elencará, à época da regulamentação da presente lei, os dados, informações, declarações e atestados que deverão estar na posse do interessado por ocasião do pedido do Auto de Licença de Funcionamento Condicionado, por via eletrônica.

§ 4º O Executivo manterá publicado no site do órgão competente, em documento atualizado mensalmente, e disponível à consulta dos interessados, a relação de estabelecimentos detentores do Auto de Licença de Funcionamento Condicionado, sua localização e prazo de validade.

Art. 7º Estando indisponível o sistema eletrônico para a atividade pretendida ou para o imóvel, em face de sua localização, insuficiência ou incorreção das informações, o Auto de Licença de Funcionamento Condicionado deverá ser requerido por meio de processo administrativo físico, juntando-se, ao pedido, a relação de indisponibilidades e impossibilidades emitida pelo sistema eletrônico.

Parágrafo único. O órgão público competente para análise da solicitação de Auto de Licença de Funcionamento Condicionado efetuada nos termos do disposto no "caput" deste artigo, deverá concluir sua análise e expedir a licença no prazo máximo de 60 (sessenta) dias, contados a partir da data de protocolo do pedido.

CAPÍTULO III

DOS EFEITOS DO AUTO DE LICENÇA DE

FUNCIONAMENTO CONDICIONADO

Art. 8º O Auto de Licença de Funcionamento Condicionado somente produz efeitos após sua efetiva expedição.

§ 1º A licença instituída por esta lei não confere, aos responsáveis pela atividade, direito a indenizações de quaisquer espécies, principalmente nos casos de invalidação, cassação ou caducidade do auto.

§ 2º O Auto de Licença de Funcionamento Condicionado, expedido nos termos desta lei, não constitui documento comprobatório da regularidade da edificação.

Art. 9º Os estabelecimentos de que trata esta lei só poderão solicitar o Auto de Licença de Funcionamento Condicionado no prazo de 180 (cento e oitenta) dias a partir de sua regulamentação.

Parágrafo único. A ausência de licença após o decurso do prazo estipulado no ‘caput’ sujeita a pessoa física ou jurídica responsável pela sua utilização aos procedimentos fiscais e sanções previstas na legislação de uso e ocupação do solo e/ou legislação específica, conforme o caso.

CAPÍTULO IV

DA INVALIDAÇÃO, CASSAÇÃO E CADUCIDADE DO AUTO DE LICENÇA DE FUNCIONAMENTO CONDICIONADO

Art. 10. O Auto de Licença de Funcionamento Condicionado perderá sua eficácia, nas seguintes hipóteses:

I - invalidação, nos casos de falsidade ou erro das informações, bem como da ausência dos requisitos que fundamentaram a concessão da licença;

II - cassação, nos casos de:

a) descumprimento das obrigações impostas por lei ou quando da expedição da licença;

b) se as informações, documentos ou atos que tenham servido de fundamento à licença vierem a perder sua eficácia, em razão de alterações físicas, de utilização, de incomodidade ou de instalação, ocorridas no imóvel em relação às condições anteriores, aceitas pela Prefeitura;

c) desvirtuamento do uso licenciado;

d) ausência de comunicação à Administração Municipal das alterações previstas no art. 3º da Lei nº 10.205, de 4 de dezembro de 1986, e alterações posteriores;

e) desrespeito às normas de proteção às crianças, adolescentes, idosos e pessoas com deficiência;

f) prática de racismo ou qualquer discriminação atentatória aos direitos e garantias fundamentais;

g) permissão da prática, facilitação, incentivo ou prática de apologia, mediação da exploração sexual, do trabalho forçado ou análogo à escravidão, do comércio de substâncias tóxicas, da exploração de jogo de azar; ou

h) outras hipóteses definidas em lei;

III - caducidade, por decurso do prazo de validade indicado no Auto de Licença de Funcionamento Condicionado.

Art. 11. A declaração de invalidade ou cassação do Auto de Licença de Funcionamento Condicionado, nas hipóteses previstas nos incisos I e II do art. 10 desta lei, será feita mediante a instauração de processo administrativo documental.

§ 1º O objeto do processo será a verificação da hipótese de invalidação ou cassação, por meio da produção da prova necessária e respectiva análise.

§ 2º O interessado deverá ser intimado para o exercício do contraditório, na forma da lei.

§ 3º A decisão sobre a invalidação ou cassação do Auto de Licença de Funcionamento Condicionado compete à mesma autoridade competente para sua expedição.

§ 4º Contra a decisão será admitido um único recurso, sem efeito suspensivo, dirigido à autoridade imediatamente superior, no prazo de 30 (trinta) dias, contados da publicação da decisão recorrida no Diário Oficial da Cidade.

§ 5º A decisão proferida em grau de recurso encerra definitivamente a instância administrativa.

CAPÍTULO V

DA AÇÃO FISCALIZATÓRIA E APLICAÇÃO DAS

SANÇÕES ADMINISTRATIVAS

Art. 12. A ausência de licença, após o decurso do prazo estipulado no art. 9º, sujeita a pessoa física ou jurídica responsável pela utilização da edificação aos procedimentos fiscais e sanções previstas na legislação de uso e ocupação do solo e/ou legislação específica, conforme o caso.

Art. 13. Sempre que julgar conveniente ou houver notícia de irregularidade ou denúncia, o órgão competente da Prefeitura realizará vistorias com a finalidade de fiscalizar o cumprimento às disposições desta lei.

Parágrafo único. Durante o período de validade do Auto de Licença de Funcionamento Condicionado, a atividade e a edificação poderão ser objeto de ação fiscalizatória com o objetivo de verificar o cumprimento da legislação vigente quanto às condições de higiene, segurança de uso, estabilidade e habitabilidade da edificação.

Art. 14. A perda da eficácia do Auto de Licença de Funcionamento Condicionado sujeitará a pessoa física ou jurídica responsável por sua utilização aos procedimentos fiscais e sanções previstas na legislação de uso e ocupação do solo e/ou legislação específica, conforme o caso.

Art. 15. A constatação do uso indevido do sistema eletrônico de licenciamento de atividades ou da prestação de informações inverídicas no pedido do Auto de Licença de Funcionamento Condicionado acarretará ao interessado a imposição de multa no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais), dobrada em caso de reincidência, com a consequente invalidação do Auto, sem prejuízo de sua responsabilização criminal, civil e administrativa.

Parágrafo único. O valor da multa estabelecido nesta lei deverá ser atualizado, anualmente, pela variação do Índice de Preços ao Consumidor Amplo - IPCA, apurado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE ou por outro índice que vier a substituí-lo.

CAPÍTULO VI

DAS DISPOSIÇÕES GERAIS

Art. 16. A expedição do Auto de Licença de Funcionamento Condicionado não desobriga os responsáveis pela edificação e por sua utilização ao cumprimento da legislação específica municipal, estadual ou federal, aplicável a suas atividades.

Art. 17. A existência de registro no Cadastro Informativo Municipal - CADIN, ainda que não tenha havido composição ou regularização de obrigações, não impede a emissão do Auto de Licença de Funcionamento Condicionado.

Art. 18. Para os imóveis que possuírem o Auto de Licença de Funcionamento Condicionado é permitida a obtenção do CADAN - Cadastro de Anúncios.

Art. 19. O Executivo deverá considerar a necessária integração do processo de registro e legalização das pessoas físicas e jurídicas, bem como articular, gradualmente, as competências próprias com aquelas dos demais entes federativos para, em conjunto, compatibilizar e integrar procedimentos, de modo a evitar a duplicidade de exigências e garantir a linearidade do processo, sob a perspectiva dos usuários.

Art. 20. Esta lei será regulamentada pelo Executivo, que estabelecerá os dados e informações que deverão constar obrigatoriamente do Auto de Licença de Funcionamento Condicionado.

Art. 21. As despesas com a execução desta lei correrão por conta das dotações orçamentárias próprias, suplementadas se necessário.

Art. 22. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário”.

          O Decreto n. 52.857, de 20 de dezembro de 2011, do Município de São Paulo, por seu turno regulamenta a Lei n. 15.499, de 7 de dezembro de 2011, que institui o Auto de Licença e Funcionamento Condicionado.

II – DO DIREITO

A lei impugnada institui o Auto de Licença de Funcionamento Condicionado no Município de São Paulo, que poderá ser expedido para atividades comerciais, industriais, institucionais e de prestação de serviços compatíveis ou toleráveis com a vizinhança residencial, exercidas em edificações em situação irregular, classificadas na subcategoria de uso não residencial, desde que preenchidos os requisitos nela previstos.

Em que pesem os elevados propósitos que inspiraram os Vereadores, autores do projeto, a lei promulgada é verticalmente incompatível com a Constituição do Estado de São Paulo, especialmente com os seus arts. 5.º, 47, II, XIV e 144, os quais dispõem o seguinte:

“Art. 5.º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

XIV- praticar os demais atos da administração, nos limites da competência do Executivo;

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.

A lei, de iniciativa parlamentar, cria obrigações e estabelece condutas a serem cumpridas pela Administração Pública, prevendo a obrigação de expedição de alvará condicionado para os casos que se enquadrem nas previsões estatuídas.

Desse modo, a lei de iniciativa parlamentar configura verdadeiro ato administrativo, sendo apenas “formalmente” ato legislativo. Não é necessário que a lei determine que o Poder Executivo faça aquilo que, naturalmente, encontra-se dentro de sua esfera de decisão e ação.

Em outras palavras se a lei, fora das hipóteses constitucionalmente previstas, dispõe sobre atividade tipicamente inserida na esfera da administração (ou seja, ato administrativo), isso significa invasão da esfera de competências do Executivo por ato do Legislativo, configurando clara violação do princípio da separação de poderes.

Resolver se deverá ou não o Município proceder à expedição de “Auto de Licença de Funcionamento Condicionado” nos moldes da legislação em tela é matéria exclusivamente relacionada à administração pública, a cargo do Chefe do Executivo.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144).

É ponto pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

O legislador municipal, na hipótese analisada, criou obrigações de cunho administrativo para a Administração Pública local.

Abstraindo quanto aos motivos que podem ter levado a tal solução legislativa, ela se apresenta como manifestamente inconstitucional, por interferir na realização, em certa medida, da gestão administrativa do Município.

Referido diploma, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles,                                                                                     anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art. 2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15ªed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.

Esse E. Tribunal de Justiça tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais de iniciativa parlamentar que interferem na gestão administrativa, com amparo na violação da regra da separação de poderes, conforme ementas de julgados recentes, transcritas a seguir:

“Ação direta de inconstitucionalidade. Lei 9882, de 20 de abril de 2007, do Município de São José do Rio Preto. Obrigatoriedade de ascensoristas nos elevadores dos edifícios comerciais. Violação ao princípio constitucional da independência entre os poderes. Inconstitucionalidade declarada. Pedido julgado procedente.” (TJSP, ADI 149.044-0/8-00, rel. des. Armando Toledo, j.20.02.2008, v.u.).

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Lei Municipal de Itapetininga n° 4.979, de 28 de setembro de 2.005, do Município de Itapetininga, que dispõe sobre a obrigatoriedade de confecção distribuição de material explicativo dos efeitos das radiações emitidas pelos aparelhos celulares e sobre sua correta utilização, e dá outras providências. Decorrente de projeto de iniciativa parlamentar, promulgada pela Câmara Municipal depois de rejeitado o veto do Prefeito - Realmente, há que se reconhecer que a Câmara Municipal exorbitou no exercício da função legislativa, interferindo em atividade concreta do Poder Executivo - Afronta aos artigos 5°, 25, e 144 e da Constituição Estadual. JULGARAM PROCEDENTE A AÇÃO.” (TJSP, ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j. 05.03.2008).

         E, mais recentemente, assim se fez constar no despacho que deferiu a liminar na ADIn 990.10.073579-9:

         "Impõe-se, à partida, a apreciação do pedido liminar, que fica deferido.

         Evidente o fumus boni júris, pois já proclamada na ADIN nº 154.526-0/0 (Rel. EROS PICELI - J. 08.10.2008 - V.U.), ser inconstitucional lei de vereadora iniciativa que cria obrigação para o Poder Executivo de utilização de papel reciclado.

         Digo o mesmo quanto ao periculum in mora, porquanto a obrigação imposta ao promovente de regulamentar a norma impugnada deveras implica, na prática, em sujeição, se não imediata, quase, a interferência, in casu descabida, o planejamento da administração no que tange a execução dos procedimentos licitatórios visando às aquisições de materiais de expedientes para o ano em exercício.

         Ademais, não faz o menor sentido manter a eficácia e a vigência, ainda que potenciais, eis que minguante sua regulamentação, certamente, porém, capazes de gerar ao menos atritos entre Legislativo e Executivo locais, de norma que ostenta palpável vício de inconstitucionalidade formal."   (ADIn 990.10.073579-9, rel. des. Palma Bisson, j. 1º.03.2010)

Não bastasse o acima exposto, verifica-se que a Lei em questão também se refere ao uso e ocupação do solo urbano, cuja tarefa, no plano físico, é privativa do Prefeito, que, no exercício dessa atividade, de natureza tipicamente administrativa, não pode sofrer                                                                                                 nenhum tipo de interferência indevida do Legislativo local.

Bem a propósito, ao examinar essa questão, o Plenário desse Egrégio Tribunal de Justiça, em antigo aresto relatado pelo eminente jurista Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, concluiu que:

“... constituem matéria legislativa as regras imperativas, gerais e abstratas que diferenciam as construções de habitações das de comércio e indústria, e, ainda, distinguem as habitações, as casas comerciais e industriais, em diversos tipos, e, a final, prescrevem restrições ao direito de construir, conforme a zona residencial, comercial ou industrial e de forma mais ou  menos rígida, segundo critérios exclusivos ou de predominância. E mais, constituem matéria legislativa as regras imperativas gerais e abstratas que determinam recuos, estabelecem alturas de prédios, normas sobre fachadas e gradis. Enfim, as que estabelecem as regras imperativas gerais e abstratas de zoneamento. Já a especificação de uma via pública, no seu todo ou em parte, se estrita ou prevalentemente residencial é obra administrativa, atividade concreta e específica de caráter casuístico, em função do desenvolvimento local, das exigências dos bairros, das manifestações dos próprios logradouros públicos, em consonância com a fisionomia que assume no seu evolver, suscetível de se modificar por exigências urbanísticas do Município, interesse dos munícipes, só possível de ser bem sentidos pelo Executivo, no seu quotidiano contacto com a vida da cidade, atuando em matéria da sua alçada administrativa, particularizando a lei” (TJSP, Pleno, RT 289/456).   original sem grifos e saliências

No mesmo sentido é a lição de  Hely:

 “a lei estabelecerá as diretrizes, os critérios, os usos admissíveis, tolerados e vedados nas zonas previstas; o decreto individualizará as zonas e especificará os usos concretamente para cada local. O zoneamento, no seu aspecto programático e normativo, é objeto de lei, mas na sua fase executiva - em cumprimento da lei - é objeto de decreto” (Cf. ob. cit., pág. 553/554).

Resumindo o ponto até aqui analisado: o conteúdo da lei impugnada é próprio de ato administrativo, de responsabilidade do Prefeito e, portanto, de sua exclusiva iniciativa. A atividade do Legislativo invade a seara a este reservada e incide em inconstitucionalidade, por ofensa ao artigo 5º, “caput”, da Constituição do Estado de São Paulo.

III- A INCONSTITUCIONALIDADE POR ARRASTAMENTO DO DECRETO MUNICIPAL nº 52.857, DE 20 DE DEZEMBRO DE 2011.

O reconhecimento da inconstitucionalidade da lei deve provocar a declaração da inconstitucionalidade, por arrastamento, do ato regulamentar editado com amparo em autorização contida naquela.

Em outras palavras, não faz sentido pensar na subsistência do decreto se a lei que fundamentou sua edição é declarada inconstitucional.

A declaração de inconstitucionalidade por arrastamento é possível sempre que: (a) o reconhecimento da inconstitucionalidade de determinado dispositivo legal torna despidos de eficácia e utilidade concreta outros preceitos, do mesmo diploma, que não tenham sido impugnados; (b) haja atos regulamentares editados com fundamento na lei declarada inconstitucional; e (c) nos casos em que o efeito repristinatório restabelece dispositivos já revogados pela lei viciada que ostentem o mesmo vício.

Essa solução tem sido reconhecida pacificamente pelo E. STF (v.g.: ADI 1144/RS, rel. Min. EROS GRAU, j.16/08/2006, T. Pleno; DJ 08-09-2006 PP-00033, EMENT VOL-02246-01 PP-00057, LEXSTF v. 28, n. 334, 2006, p. 20-26; ADI 3255/PA, rel.Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, j.22/06/2006, T. Pleno, DJe-157  DIVULG 06-12-2007, DJ 07-12-2007 PP-00018,  EMENT VOL-02302-01,  PP-00127; ADI 3645/PR, rel.  Min. ELLEN GRACIE, j. 31/05/2006, T. Pleno, DJ 01-09-2006 PP-00016, EMENT VOL-02245-02 PP-00371, LEXSTF v. 28, n. 334, 2006, p. 75-91).

Note-se que o Col. STF tem admitido inclusive a declaração de inconstitucionalidade por arrastamento sem que tenha sido feito pedido expresso por parte do autor. Essa solução decorre da natureza objetiva do processo de controle abstrato de normas, em que não se identificam réus ou partes contrárias, mas exclusivamente o interesse veiculado, pelo requerente, no sentido da preservação da segurança jurídica (cf. ADI-ED 2982/CE, rel. Min. GILMAR MENDES, j.02/08/2006, T. Pleno, DJ 22-09-2006 PP-00029, EMENT VOL-02248-01 PP-00171, LEXSTF v. 28, n. 335, 2006, p. 53-59).

IV – DA LIMINAR

Estão presentes, na hipótese examinada, os pressupostos do fumus bonis iuris e do periculum in mora, a justificar a suspensão liminar da vigência e eficácia dos atos normativos impugnados.

A razoável fundamentação jurídica decorre dos motivos expostos anteriormente, que indicam, de forma clara, que os atos normativos padecem de vício de inconstitucionalidade.

O perigo da demora decorre especialmente da ideia de que, sem a imediata suspensão da vigência e eficácia das normas impugnadas, instalar-se-á, provavelmente, situação consumada, decorrente de concessões irregulares de autos de licença de funcionamento condicionados.

A ideia do fato consumado, com repercussão concreta, guarda relevância para a apreciação da necessidade da concessão da liminar na Ação Direta de Inconstitucionalidade. Válida tal afirmação, na medida em que providências administrativas que ulteriormente serão necessárias para o restabelecimento do statu quo ante, com a esperada procedência da ação, trarão ônus e custos para a Administração Pública e para os particulares alcançados pela Lei nº 15.499/2011 e pelo Decreto n. 52.857/2011, que a regulamenta.

Assim, a imediata suspensão da eficácia da Lei n. 15.499/2011, que “Institui o Auto de Licença de Funcionamento Condicionado e, dá outras providências”, e por arrastamento do Decreto n. 52.857/2011, que a regulamenta, normas de inconstitucionalidade palpável, evita qualquer desdobramento no plano dos fatos que possa significar, na prática, prejuízo concreto para o Poder Público no aspecto administrativo e aos particulares.

De resto, ainda que não houvesse essa singular situação de risco,                                                                                              restaria, ao menos, a excepcional conveniência da medida. Com efeito, no contexto das ações diretas e da outorga de provimentos cautelares para defesa da Constituição, o juízo de conveniência é um critério relevante, que vem condicionando os pronunciamentos mais recentes do Supremo Tribunal Federal, preordenados à suspensão liminar de leis aparentemente inconstitucionais (cf. ADIN-MC 125, j. 15.2.90, DJU de 4.5.90, p. 3.693, rel. Min. Celso de Mello; ADIN-MC 568, RTJ 138/64; ADIN-MC 493, RTJ 142/52; ADIN-MC 540, DJU de 25.9.92, p. 16.182).

Diante do exposto, requer-se a concessão da liminar, para fins de suspensão imediata da eficácia dos atos normativos impugnados, ou seja, da Lei n. 15.499, de 07 de dezembro de 2011, do Município de São Paulo, e do Decreto n. 52.857/2011, que a regulamenta, durante o trâmite da presente Ação Direta de Inconstitucionalidade.

V- DA CONCLUSÃO

Ante o exposto, requer-se o recebimento e processamento da presente ação declaratória, para que ao final seja julgada procedente, reconhecendo-se a inconstitucionalidade da Lei nº 15.499, de 07 de dezembro de 2011, do Município de São Paulo, que “Institui o Auto de Licença de Funcionamento Condicionado e, dá outras providências”, e por arrastamento do Decreto n. 52.857, de 30 de dezembro de 2011, que a regulamenta.

Requer-se ainda sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Prefeito Municipal de São Paulo, bem como citado o Procurador-Geral do Estado para se manifestar sobre a legislação impugnada.

Posteriormente, aguarda-se vista para fins de manifestação final.

São Paulo, 18 de dezembro de 2012.

 

                            Márcio Fernando Elias Rosa

                            Procurador-Geral de Justiça

                 

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Protocolado nº 059.652/12

Assunto: Inconstitucionalidade da Lei nº 15.499, de 07 de dezembro de 2011, do Município de São Paulo, e por arrastamento do Decreto n. 52.857, de 20 dezembro de 2011, que a regulamentou.

 

 

 

 

1.     Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade, em face da Lei nº 15.499, de 07 de dezembro de 2011, do Município de São Paulo, que “Institui o Auto de Licença de Funcionamento Condicionado e, dá outras providências”, e por arrastamento do Decreto n. 52.857, de 20 de dezembro de 2011, que a regulamenta, junto ao egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

2.     Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.

 

                   São Paulo, 18 de dezembro de 2012.

 

 

Márcio Fernando Elias Rosa

Procurador-Geral de Justiça

 

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