EXCELENTÍSSIMO
SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO E. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO
PAULO
Protocolado nº 008.684/13
Ementa:
1) Ação Direta de Inconstitucionalidade, proposta pelo Procurador-Geral de Justiça, em face do art. 1º, da Lei Complementar nº 2.093, de 29 de dezembro de 2003, do Município de Itapeva, que “dispõe sobre reenquadramento financeiro dos cargos que especifica e cria cargos junto à estrutura da Administração Municipal e dá outras providências”.
2) Hipóteses de “transformação de cargos”.
3) Violação do princípio constitucional do concurso, da acessibilidade de cargos, empregos e funções públicas, da isonomia e da impessoalidade (art. 111, e 115, inc. I e II, da Constituição Paulista).
4) Inconstitucionalidade constatada.
O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, inciso VI, da Lei Complementar Estadual nº 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo), em conformidade com o disposto no art. 125, § 2º e art. 129, inciso IV, da Constituição Federal, e ainda nos arts. 74, inciso VI e 90, inciso III, da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado, vem, respeitosamente, perante esse Egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE em face do art. 1º, da Lei Complementar nº 2.093, de 29 de dezembro de 2003, do Município de Itapeva, que ”dispõe sobre reenquadramento financeiro dos cargos que especifica e cria cargos junto à estrutura da Administração Municipal e dá outras providências”, pelos fundamentos a seguir expostos.
1.
DO
ATO NORMATIVO IMPUGNADO.
A Lei Complementar nº 2.093, de 29 de dezembro de 2003, do Município de Itapeva, ”dispõe sobre reenquadramento financeiro dos cargos que especifica e cria cargos junto à estrutura da Administração Municipal e dá outras providências”.
O art. 1º da referida legislação possibilita a “transformação” de vários cargos de provimento efetivo, a saber:
Cargo anterior |
Cargo atual |
Agente Com. de Saúde |
Aux. Desenvolvimento Infantil |
Agente Com. de Saúde |
Auxiliar de Enfermagem |
Agente Com. de Saúde |
Oficial Administrativo |
Agente de Saneamento |
Fiscal Sanitário |
Almoxarife |
Encarregado de Serviço |
Assistente Administrativo |
Enc. de Serviço Administrativo |
Auxiliar de Administração |
Oficial Administrativo |
Auxiliar de Manutenção |
Oficial de Manutenção |
Auxiliar de Odontologia |
Assistente Administrativo |
Auxiliar de Odontologia |
Oficial Administrativo |
Auxiliar Serviço Escolar |
Auxiliar de Administração |
Auxiliar Serviço Escolar |
Encarregado de Serviço |
Auxiliar Serviço Escolar |
Oficial Administrativo |
Auxiliar Serviço Escolar |
Telefonista |
Auxiliar Serviços Gerais |
Auxiliar de Manutenção |
Auxiliar Serviços Gerais |
Vigia |
Lavador |
Encarregado de Serviço |
Oficial Administrativo |
Assistente Administrativo |
Oficial Administrativo |
Auxiliar de Enfermagem |
Oficial Administrativo |
Técnico em Enfermagem |
Orientador de Alunos |
Enc. Serviço Administrativo |
Orientador de Alunos |
Oficial Administrativo |
Secretário de Escola |
Enc. Serviço Administrativo |
Servente |
Aux. Desenvolvimento Infantil |
Servente |
Oficial Administrativo |
Vigia |
Oficial Administrativo |
Esses dispositivos legais que permitiram essa “transformação de cargos”, no entanto, ofendem frontalmente os seguintes dispositivos da Constituição do Estado de São Paulo: arts. 111, 115, incisos I e II, e 144.
É o que será demonstrado a seguir.
2. FUNDAMENTAÇÃO
Com
efeito, “a transformação de cargos” em questão, viola princípios
constitucionais que exigem a realização de concurso público para acesso aos
cargos e empregos na Administração Pública, e, por consequência, viola também a
regra da acessibilidade geral e da isonomia com relação ao provimento de cargos
na Administração Pública, que decorrem dos seguintes dispositivos da
Constituição Estadual:
“Art.
Art.115. Para a organização da administração pública direta e indireta, inclusive as fundações instituídas ou mantidas por qualquer dos Poderes do Estado, é obrigatório o cumprimento das seguintes normas:
I – os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como os estrangeiros, na forma da lei;
II – a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia, em concurso público de provas ou de provas e títulos, ressalvadas as nomeações para cargo de provimento em comissão, declarado em lei, de livre nomeação e exoneração; “
É
oportuno recordar que tais dispositivos são reproduções do disposto no art. 37,
incisos I e II, da Constituição Federal, sendo todos (os da Constituição
Federal e os da Estadual), aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da
Constituição Paulista.
Dispensa
maiores digressões a afirmação de que a realização de concurso público, para
acesso aos cargos, empregos, e funções públicas, é a regra. Ela só admite
exceções nas estritas hipóteses previstas na Constituição Federal e Estadual,
quais sejam: (a) a nomeação para cargos de provimento em comissão previstos em
lei específica de cada ente federativo (nos casos de cargos ou funções de
direção, chefia ou assessoramento superior da administração, em que deva
prevalecer o vínculo de especial confiança entre o servidor e o agente superior
ao qual se vincule), e (b) a contratação temporária, nas hipóteses previstas em
lei de cada ente federativo, para atendimento a necessidade temporária de
excepcional interesse público (cf. art. 115, incs. II, V e X, da Constituição
Paulista; art. 37, incs. I, II e IX, da CR/88).
Diante
disso, qualquer dispensa indevida da realização de concurso para fins de
ingresso no serviço público, ou mesmo a realização de provimentos a partir de
concursos internos, para que servidores ocupem cargos ou empregos situados em
carreira distinta, ou finalmente a
simples transformação de nomenclatura de cargos ou empregos de integrantes de
carreira distinta, são atos que significam, na prática, burla à regra do
concurso. Traduzem-se, do mesmo modo, em criação de óbice à acessibilidade de
todos os cidadãos aos cargos públicos previstos em lei, e, por conseguinte,
violação ao princípio da isonomia. Criam, finalmente, possibilidade de
favorecimento, com quebra do princípio da impessoalidade.
Não
se pode confundir o caso tratado nestes autos, com situações em que, por lei
nova, é conferida nova denominação a cargos públicos, sem que haja mudança de
atribuições. Em tais casos, o enquadramento dos antigos titulares, admitidos
por concurso público, é feito sem maiores dificuldades ou questionamentos, pois
que é admissível a “transposição” do servidor para cargo idêntico, da mesma natureza, em novo sistema de classificação
(STF, RTJ 150/26).
Note-se
que, para que tal solução seja legítima, é imprescindível que o aproveitamento
de ocupantes de cargos extintos nos recém-criados se opere em vista de “completa identidade substancial entre os
cargos em exame, além de compatibilidade funcional e remuneratória e
equivalência dos requisitos exigidos em concurso” (ADIs 1.591, Rel. Min.
Octavio Gallotti, e 2.713, Rel. Min. Ellen Gracie).
Esta
situação não se confunde com a hipótese de “transformação”, em que se verifica
a alteração do título e das atribuições do cargo, e por isso configura novo
provimento, a depender da exigência de concurso público (ADI 266, Rel. Min.
Octavio Gallotti, julgamento em 18-6-93, DJ de 6-8-93).
Vale recordar que o conceito de carreira diz
respeito ao “agrupamento de classes da
mesma profissão ou atividade, escalonadas segundo a hierarquia do serviço, para
acesso privativo dos titulares dos cargos que a integram, mediante provimento
originário” (cf. Hely Lopes Meirelles, Direito
Administrativo Brasileiro, 34ª. ed., São Paulo, Malheiros, 2008, p. 424).
No mesmo sentido: Edmir Netto de Araújo, Curso
de Direito Administrativo, São Paulo, 2005.
Natural
assim a evolução funcional, que deve ocorrer, dentro de uma mesma carreira, de
um cargo ou emprego situado em plano inferior, para outro localizado em patamar
superior.
Diversa,
entretanto, é a hipótese em exame, pois aqui, o que se verifica, é a burla, de
forma indireta, do princípio do concurso público e de seus corolários lógicos.
Nosso
sistema constitucional consagrou o livre acesso aos cargos, empregos e funções
públicas, na forma prevista em lei, e a submissão prévia a concurso público,
ressalvadas, evidentemente, as nomeações para cargos
É por meio do concurso que se resguarda “a aplicação do princípio da igualdade de
todos (CF., art. 37, I) e, ao mesmo tempo, o interesse da Administração em
admitir somente os melhores” (Celso Ribeiro Bastos, op. cit., p. 66), afastando-se “os
ineptos e apaniguados, que costumam abarrotar as repartições públicas, num
espetáculo degradante de protecionismo e falta de escrúpulos de políticos que
se alçam e se mantêm no poder, leiloando empregos públicos” (Hely Lopes
Meirelles, Direito Administrativo
Brasileiro, 34ª ed., São Paulo,
RT, 2008, p. 440/441).
Acrescente-se,
ademais, que a existência de formas de provimento derivadas “de modo algum significa abertura para
costear se o sentido próprio do concurso público. Como este é sempre específico
para dado cargo, encartado em carreira certa, quem nele se investiu não pode
depois, sem novo concurso público, ser trasladado para cargo de natureza
diversa ou de outra carreira melhor retribuída ou de encargos mais nobres e
elevados. O nefando expediente a que se alude foi algumas vezes adotado, no
passado, sob a escusa de corrigir desvio de funções ou com arrimo na
nomenclatura esdrúxula de ‘transposição de cargos’. Corresponde a uma burla
manifesta do concurso público. É que permite a candidatos que ultrapassaram
apenas concursos singelos, destinados a cargos de modesta expressão – e que se
qualificaram tão somente para eles – venham a aceder, depois de aí investidos,
a cargos outros, para cujo ingresso se demandaria sucesso em concursos de
dificuldades muito maiores, disputados por concorrentes de qualificação bem
mais elevada” (Celso Antônio Bandeira de Mello, Regime Constitucional dos Servidores da Administração Direta e Indireta,
São Paulo, RT, 1995, p. 55).
Não
se nega, observe-se, a possibilidade de aprimoramento na organização
administrativa de determinado ente federativo, e tampouco a reestruturação do
respectivo quadro de cargos, empregos e funções. Tal possibilidade é ínsita à
própria autonomia de cada ente federativo, e em especial dos municípios (art. 29,
30, inc. I, da CR/88).
Também
não se refuta a possibilidade de enquadramento de servidores, já integrantes da
Administração, nos casos de extinção ou transformação de cargos, empregos e
funções, desde que idênticas as
atribuições do novo cargo, e idênticos os requisitos ou condições exigidos dos
candidatos ao seu provimento. Contudo, como anota Hely Lopes Meirelles, “se a transformação implicar alteração do
título e das atribuições do cargo, configura novo provimento, que exige
concurso público” (Direito
Administrativo Brasileiro, cit., p.
427).
É
oportuno averbar que no Supremo Tribunal Federal a matéria é pacífica.
Encontra-se sedimentada no verbete nº 685 da súmula da jurisprudência dominante
da Corte, com a seguinte dicção:
“É inconstitucional toda modalidade de provimento que propicie ao servidor investir-se, sem prévia aprovação em concurso público destinado ao seu provimento, em cargo que não integra a carreira na qual anteriormente investido.”
Há
diversos precedentes do Supremo Tribunal Federal que, sob vários aspectos e em
situações diferentes, confirmam que nosso sistema constitucional não transige
com a regra do concurso público. Assim, como quando a Corte veda a ascensão e a
transferência, que são formas de ingresso em carreira diversa daquela para a
qual o servidor público ingressou por concurso (ADI 231, Rel. Min. Moreira
Alves, julgamento em 5-8-92, DJ de 13-11-92; ADI 3.582, Rel. Min. Sepúlveda
Pertence, julgamento em 1º-8-07, DJ de 17-8-07); ou ao proibir o mero
enquadramento de prestadores de serviço (ADI 3.434-MC, voto do Min. Joaquim
Barbosa, julgamento em 23-8-06, DJ de 28-9-07); ou mesmo ao vedar o
enquadramento de servidores que exerçam determinadas funções, em cargos que
integram carreira distinta, ainda que com período prévio de reciclagem (ADI
388, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 20-9-07, DJ de 19-10-07; ADI 3.442,
Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 7-11-07, DJ de 7-12-07).
Relevante
notar, do mesmo modo, que a exigência de concurso público para a investidura em
cargo assegura, entre outras coisas, o respeito aos princípios da impessoalidade
e o da isonomia. A estabilidade constitucional anômala e transitória prevista
no art. 19 do ADCT-CR/88, aplicável aos servidores não concursados que, quando
da promulgação da Carta Federal, contassem com, no mínimo, cinco anos
ininterruptos de serviço público, tem sido interpretada restritivamente. O Supremo
Tribunal Federal tem, reiteradamente, afirmado a inconstitucionalidade de normas
estaduais que ampliam a exceção à regra da exigência de concurso para o
ingresso no serviço: ADI 498, Rel. Min. Carlos Velloso (DJ de 9-8-1996); ADI
208, Rel. Min. Moreira Alves (DJ de 19-12-2002); ADI 100, Rel. Min. Ellen
Gracie, julgamento em 9-9-04, DJ de 1º-10-04; ADI 88, Rel. Min. Moreira Alves,
julgamento em 11-5-00, DJ de 8-9-00; ADI 289, Rel. Min. Sepúlveda Pertence,
julgamento em 9-2-07, DJ de 16-3-07; ADI 125, Rel. Min. Sepúlveda Pertence,
julgamento em 9-2-07, DJ de 27-4-07.
3. LIMINAR.
Estão
presentes, na hipótese examinada, os pressupostos do fumus bonis iuris e do periculum
in mora, a justificar a suspensão liminar da vigência e eficácia do
dispositivo destacado anteriormente.
A
razoável fundamentação jurídica decorre dos motivos expostos, que indicam, de
forma clara, que a lei impugnada nesta ação padece de inconstitucionalidade.
O
perigo da demora decorre especialmente da ideia de que sem a imediata suspensão
da vigência e eficácia do preceito questionado, subsistirá a sua aplicação, com
realização de despesas (e imposição de obrigações à Municipalidade) que
dificilmente poderão ser revertidas aos cofres públicos, na hipótese provável
de procedência da ação direta.
Basta
lembrar que os pagamentos realizados a título de remuneração dificilmente serão
revertidos ao erário, pela argumentação usual, em casos desta espécie, no
sentido do caráter alimentar da prestação e, portanto, irrepetível.
A
ideia do fato consumado, com repercussão concreta, guarda relevância para a
apreciação da necessidade da concessão da liminar na ação direta de
inconstitucionalidade.
Note-se
que, com a procedência da ação, pelas razões declinadas, dificilmente será
possível restabelecer o status quo ante.
Assim,
a imediata suspensão da eficácia da norma impugnada evitará a ocorrência de
maiores prejuízos, além dos que já se verificaram.
De
resto, ainda que não houvesse essa singular situação de risco, restaria, ao
menos, a excepcional conveniência da medida.
No
contexto das ações diretas e da outorga de provimentos cautelares para defesa
da Constituição, o juízo de conveniência é um critério relevante, que vem
condicionando os pronunciamentos do Supremo Tribunal Federal, preordenados à
suspensão liminar de leis aparentemente inconstitucionais (cf. ADIN-MC 125, j.
15.2.90, DJU de 4.5.90, p. 3.693, rel. Min. Celso de Mello; ADIN-MC 568, RTJ
138/64; ADIN-MC 493, RTJ 142/52; ADIN-MC 540, DJU de 25.9.92, p. 16.182).
Diante
do exposto, requer-se a concessão da liminar, para fins de suspensão imediata da eficácia do dispositivo impugnado nesta ação
direta.
4. CONCLUSÃO E
PEDIDO.
Por todo o exposto, evidencia-se a necessidade de reconhecimento da inconstitucionalidade da norma aqui apontada.
Assim, aguarda-se o recebimento e processamento da presente Ação Declaratória, para que ao final seja julgada procedente, reconhecendo-se a inconstitucionalidade do art. 1º, da Lei Complementar nº 2.093, de 29 de dezembro de 2003, do Município de Itapeva, que “dispõe sobre reenquadramento financeiro dos cargos que especifica e cria cargos junto à estrutura da Administração Municipal e dá outras providências”.
Requer-se, ainda, sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Prefeito Municipal, bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para se manifestar sobre o ato normativo impugnado.
Posteriormente, aguarda-se vista para fins de manifestação final.
São Paulo, 27 de maio de 2013.
Márcio Fernando Elias Rosa
Procurador-Geral de Justiça
vlcb
Protocolado nº 008.684/13
1. Distribua-se a petição inicial da
ação direta de inconstitucionalidade, em face do art. 1º Lei Complementar nº 2.093, de 29 de dezembro
de 2003, do Município de Itapeva, que ”dispõe sobre reenquadramento financeiro
dos cargos que especifica e cria cargos junto à estrutura da Administração
Municipal e dá outras providências”, junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo.
2. Oficie-se ao interessado,
informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.
São Paulo, 22 de julho de 2013.
Márcio Fernando Elias Rosa
Procurador-Geral de Justiça