Excelentíssimo Senhor Doutor Desembargador Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

 

 

 

Protocolado n. 87.234/12

 

 

 

 

 

Ementa: Constitucional. Administrativo. Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei n. 3.984, de 16 de fevereiro de 2012, do Município de Dracena. Polícia administrativa. Saúde. Disciplina do comércio de artigos de conveniência em farmácias e drogarias. Invasão da competência normativa da União e do Estado. Agressão ao princípio da razoabilidade. 1. É inconstitucional lei municipal que autoriza o comércio de outros produtos e mercadorias (artigos de conveniência) em farmácias e drogarias por invasão da competência normativa concorrente entre a União e os Estados para disciplina de normas gerais sobre proteção e defesa da saúde (art. 24, XII, CF c.c. art. 144, CE). 2. Aos Municípios, no exercício de sua competência normativa para disciplina de assuntos de interesse local ou suplementação da legislação federal ou estadual, não é dado dispor para além dos limites daquilo que se compreenda como peculiar interesse local, como decerto não é o tema referente ao objeto comercial de farmácias e drogarias, assunto que, por sua dimensão, não é possível conceituar como predominantemente local. 3. Violação do princípio da razoabilidade (art. 111, CE) em razão da ausência de critério de discriminação que justifique a solução adotada pelo legislador municipal.

 

 

 

                   O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, VI, da Lei Complementar Estadual n. 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público do Estado de São Paulo), em conformidade com o disposto no art. 125, § 2º, e no art. 129, IV, da Constituição Federal, e, ainda, nos arts. 74, VI, e 90, III, da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado, vem, respeitosamente, perante esse Egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE em face da Lei n. 3.984, de 16 de fevereiro de 2012, do Município de Dracena, pelos fundamentos a seguir expostos:

I – O Ato Normativo Impugnado

1.                Em 16 de fevereiro de 2012 foi editada a Lei n. 3.984 do Município de Dracena, com a seguinte redação:

“Artigo 1º - O comércio de artigos de conveniência em farmácias e drogarias no Município de Dracena deverá observar rigorosos critérios de segurança, higiene e embalagem, de modo a proporcionar segurança ao consumidor.

Parágrafo único – Consideram-se artigos de conveniência, dentre outros, para os fins desta lei:

I – filmes fotográficos;

II – leite em pó;

III – pilhas;

IV – meias elásticas;

V – colas;

VI – cartões telefônicos;

VII – cosméticos;

VIII – isqueiros;

IX – água mineral;

X – produtos de higiene pessoal;

XI – bebidas lácteas;

XII – produtos dietéticos;

XIII – repelentes elétricos;

XIV – cereais matinais;

XV – balas, doces e barras de cereais;

XVI – mel;

XVII – produtos ortopédicos;

XVIII – artigos para bebê;

XIX – produtos de higienização de ambientes.

Artigo 2º - As farmácias e drogarias obrigam-se às seguintes providências:

I – dispor, adequadamente, os artigos de conveniência em balcões, estantes, gôndolas e ‘displays’, com separações e de forma compatível com seus volumes, natureza, características químicas e cuidados específicos;

II – cumprir todas as normas técnicas e os preceitos legais específicos à comercialização de cada produto, especialmente o Código de Defesa do Consumidor – Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990;

III – expor os artigos de conveniência de modo a guardar distância e separação dos medicamentos.

Artigo 3º - Os artigos de conveniência comercializados em farmácias e drogarias devem ser inócuos em relação aos gêneros farmacêuticos.

Parágrafo único – É proibido manter em estoque, expor e comercializar produtos perigosos ou potencialmente nocivos à saúde do consumidor, tais como veneno, soda cáustica e outros que a estes se assemelhem.

Artigo 4º - Esta lei entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário” (fls. 48/49).

II – O parâmetro da fiscalização abstrata de constitucionalidade

2.                A lei impugnada contraria frontalmente a Constituição do Estado de São Paulo, à qual está subordinada a produção normativa municipal ante a previsão dos arts. 1º, 18, 29 e 31 da Constituição Federal.

3.                Os preceitos da Constituição Federal e da Constituição do Estado são aplicáveis aos Municípios por força de seu art. 144, que assim estabelece:

“Artigo 144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição”.

4.                A lei contestada é incompatível com os seguintes preceitos da Constituição Estadual:

“Artigo 111 – A administração pública, direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência.

(...)

Artigo 144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição”.

5.                O art. 144 da Constituição Estadual, que determina a observância na esfera municipal, além das regras da Constituição Estadual, dos princípios da Constituição Federal, é denominado “norma estadual de caráter remissivo, na medida em que, para a disciplina dos limites da autonomia municipal, remete para as disposições constantes da Constituição Federal”, como averbou o Supremo Tribunal Federal ao credenciar o controle concentrado de constitucionalidade de lei municipal por esse ângulo (STF, Rcl 10.406-GO, Rel. Min. Gilmar Mendes, 31-08-2010, DJe 06-09-2010; STF, Rcl 10.500-SP, Rel. Min. Celso de Mello, 18-10-2010, DJe 26-10-2010).

6.                Daí decorre a possibilidade de contraste da lei local com o art. 144 da Constituição Estadual, por sua remissão à Constituição Federal e a seu art. 24, VII, que expressa a competência normativa concorrente entre União e Estados como técnica elementar de repartição de competências no plano do pacto federativo inerente ao federalismo.

7.                O princípio federativo, estruturante da organização política e administrativa brasileira (arts. 1º e 18, Constituição Federal), albergado como cláusula pétrea (art. 60, § 4º, I, Constituição), assenta-se na repartição de competências.

8.                A Constituição Federal de 1988 inseriu no domínio da competência normativa concorrente da União e dos Estados (e do Distrito Federal) a proteção e a defesa da saúde (art. 24, XII).

9.                Apesar de o comércio em geral ser assunto da órbita da autonomia municipal, inclusive o de drogarias e farmácias, o objeto dessa atividade comercial por envolver diretamente a proteção e a defesa da saúde não se esgota no âmbito dos Municípios. Estes, a respeito, podem exercer sua plena autonomia normativa no tocante a aspectos como localização, segurança etc., mas, no tocante ao objeto da atividade comercial, há a intervenção de normas federais (gerais) e estaduais.

10.              Nisto não há concurso entre as competências federal, estadual e municipal, porque o objeto da atividade comercial de drogarias e farmácias é assunto integralmente sujeito à disciplina normativa da competência federal ou estadual por respeitar a proteção e a defesa da saúde.

11.              Logo, não há se cogitar de sustentáculo da constitucionalidade da lei impugnada no art. 30, I e II, da Constituição Federal.

12.              A competência normativa municipal plena requer se trate de matéria reveladora da predominância do interesse local, o que, decerto, não consubstancia os produtos do comércio de drogarias e farmácias, em razão das características da uniformidade e da generalidade. Assim também deve ser tratada a competência normativa municipal suplementar: a expressão “no que couber” denota a necessidade da predominância do interesse local no espaço consentido à suplementação e, ademais, não é lícito ir além daquilo que foi reservado à competência normativa concorrente federal e estadual.

13.              Com efeito, “a competência constitucional dos Municípios de legislar sobre interesse local não tem o alcance de estabelecer normas que a própria Constituição, na repartição das competências, atribui à União ou aos Estados” (RT 851/128).

14.              E bem a propósito do tema, elucidativa é a invocação do seguinte julgado, também da Suprema Corte:

“AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. COMERCIALIZAÇÃO DE ÁGUA MINERAL. LEI MUNICIPAL. PROTEÇÃO E DEFESA DA SAÚDE. COMPETÊNCIA CONCORRENTE. INTERESSE LOCAL. EXISTÊNCIA DE LEI DE ÂMBITO NACIONAL SOBRE O MESMO TEMA. CONTRARIEDADE. INCONSTITUCIONALIDADE. 1. A Lei Municipal n. 8.640/00, ao proibir a circulação de água mineral com teor de flúor acima de 0, 9 mg/l, pretendeu disciplinar sobre a proteção e defesa da saúde pública, competência legislativa concorrente, nos termos do disposto no art. 24, XII, da Constituição do Brasil. 2. É inconstitucional lei municipal que, na competência legislativa concorrente, utilize-se do argumento do interesse local para restringir ou ampliar as determinações contidas em texto normativo de âmbito nacional. Agravo regimental a que se nega provimento” (RT 892/119).

15.              A atividade comercial praticada por farmácias e drogarias está disciplinada em normas federais, com fundamento na competência concorrente da União e dos Estados prevista no art. 24, XII, da Constituição Federal, para legislar sobre “proteção e defesa da saúde”. No ponto, a Lei n. 5.991/73, que dispõe sobre “o Controle Sanitário do Comércio de Drogas, Medicamentos, Insumos Farmacêuticos e Correlatos, e dá outras Providências”, definiu em seu art. 4º, IV, produtos “correlatos” como sendo:

“(...)

IV - Correlato - a substância, produto, aparelho ou acessório não enquadrado nos conceitos anteriores, cujo uso ou aplicação esteja ligado à defesa e proteção da saúde individual ou coletiva, à higiene pessoal ou de ambientes, ou a fins diagnósticos e analíticos, os cosméticos e perfumes, e, ainda, os produtos dietéticos, óticos, de acústica médica, odontológicos e veterinários;

(...)”.

16.              Esta mesma lei federal disciplinou o conceito de “farmácia” e de “drogaria” no art. 4º, incisos X e XI, do modo a seguir transcrito:

“(...)

X - Farmácia - estabelecimento de manipulação de fórmulas magistrais e oficinais, de comércio de drogas, medicamentos, insumos farmacêuticos e correlatos, compreendendo o de dispensação e o de atendimento privativo de unidade hospitalar ou de qualquer outra equivalente de assistência médica;

XI - Drogaria - estabelecimento de dispensação e comércio de drogas, medicamentos, insumos farmacêuticos e correlatos em suas embalagens originais;

(...)”.

17.              Em outras palavras, a União, exercendo sua competência concorrente para disciplinar a proteção e a defesa da saúde estabeleceu precisamente os produtos que podem ser objeto de comercialização em farmácias e drogarias.

18.              Não há espaço para o legislador municipal, a pretexto de exercer competência suplementar com fundamento no art. 30, II, da Constituição da República, ampliar os produtos aptos a serem comercializados em farmácias e drogarias, sob pena de convolar-se a competência suplementar do Município em competência concorrente, da qual a comuna não dispõe.

19.              A competência suplementar do Município refere-se, nos assuntos que são da competência legislativa da União ou dos Estados, àquilo que seja secundário ou subsidiário relativamente à temática essencial tratada na norma superior.

20.              Não é lícito ao legislador municipal a pretexto de legislar sobre assuntos de interesse local ou suplementar a legislação Federal ou Estadual de ordem geral, invadir a competência legislativa destes entes federativos superiores (STF, RE 313.060, 2ª Turma, Rel. Min. Ellen Gracie, 29-11-2005, DJ 24-02-2006).

21.              Neste sentido, invocam-se os seguintes precedentes:

“Ação direta de inconstitucionalidade. Lei 6367/03.01.2006 do Município de Araraquara, que ‘Dispõe sobre a comercialização de produtos não farmacêuticos e prestação de serviços de menor complexidade útil ao público por farmácias e drogarias e dá outras providências’ – evidente invasão do Município na competência privativa da União e dos Estados de concorrentemente legislar sobre proteção e defesa da saúde (CF, art. 24, XII), pois esse campo compreende a vigilância ou o controle sanitário, este que obrigatoriamente há de mirar inclusive o que se vende nas farmácias e drogarias – controle tal que é regido, em todo o território nacional (art. 1º), pela Lei Federal 5991/73, nessa não se vendo a abertura que foi dada pela lei aqui atacada às mercadorias e aos serviços que as farmácias e drogarias de Araraquara puderam passar a vender e a prestar, num claro sinal de incompatibilidade vertical entre ambas, igualmente revelador da inconstitucionalidade da segunda – no setor sanitário cabe ao Município legislar suplementarmente à legislação federal e estadual; suplementar a legislação federal e estadual é completá-la, adaptá-la a um interesse local; não se pode entender como exercício de competência suplementar lei municipal que disponha contra a federal, como aqui induvidosamente se deu – violação aos artigos 1º e 144 da Constituição Federal. Ação procedente” (TJSP, ADI 990.10.057262-8, Órgão Especial, Rel. Palma Bisson, 03-11-2010).

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - Lei n. 2.547, de 23 de dezembro de 2005, do Município de Pedreira, disciplinando o comércio de artigos de conveniência em farmácias e drogarias - Evidente invasão do Município na competência privativa da União e dos Estados de concorrentemente legislar sobre proteção e defesa da saúde (CF, art. 24, XII) - No setor sanitário cabe ao Município legislar suplementarmente à legislação federal e estadual - Violação aos artigos 1º e 144 da Constituição Estadual – ação procedente” (TJSP, ADI 0509054-84.2010.8.26.0000, Órgão Especial, Rel. Des. Antônio Carlos Malheiros, 20-04-2011).

22.              Há outro aspecto de relevo.

23.              A lei impugnada contraria o princípio da razoabilidade, previsto no art. 111 da Constituição do Estado de São Paulo.

24.              Por força desse princípio é necessário que a norma passe pelo denominado “teste de razoabilidade”, de maneira que preencha os seguintes elementos: adequação (aptidão a produção do resultado desejado), necessidade (não substituição por outro meio menos gravoso e igualmente eficaz) e proporcionalidade em sentido estrito (relação ponderada entre o grau de restrição de um princípio e o grau de realização do princípio contraposto).

25.              Pela disciplina da lei municipal contestada, a comercialização em farmácias de artigos de conveniência traz implicitamente, como consequência, a vedação de comercialização para outros produtos análogos e igualmente inócuos que não tenham sido discriminados expressamente, sem que se apresente critério razoável a demonstrar que tal discriminação se mostra legítima.

26.              O ato normativo, dessa forma, não passa pelo teste de razoabilidade, visto ser desproporcional em sentido estrito, na medida em que elege aleatoriamente alguns produtos que poderiam ser comercializados, sem que haja razão para a exclusão de tantos outros igualmente inócuos para os consumidores.

III – Pedido liminar

27.              À saciedade demonstrado o fumus boni iuris, pela ponderabilidade do direito alegado, soma-se a ele o periculum in mora. 28.          A atual tessitura do preceito normativo municipal apontado como violador de princípios e regras da Constituição do Estado de São Paulo é sinal, de per si, para suspensão de sua eficácia até final julgamento desta ação, evitando-se atuação desconforme o ordenamento jurídico, criadora de lesão irreparável ou de difícil reparação.

29.              À luz deste perfil, requer a concessão de liminar para suspensão da eficácia, até final e definitivo julgamento desta ação, da Lei n. 3.984, de 16 de fevereiro de 2012, do Município de Dracena.

IV – Pedido

30.              Face ao exposto, requerendo o recebimento e o processamento da presente ação para que, ao final, seja julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei n. 3.984, de 16 de fevereiro de 2012, do Município de Dracena.

31.              Requer-se ainda sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Prefeito Municipal de Dracena, bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para se manifestar sobre o ato normativo impugnado, protestando por nova vista, posteriormente, para manifestação final.

                   Termos em que, pede deferimento.

                   São Paulo, 21 de agosto de 2012.

 

 

 

 

Márcio Fernando Elias Rosa

Procurador-Geral de Justiça

wpmj

 

Protocolado nº 87.234/12

Interessado: Conselho Regional de Farmácia do Estado de São Paulo

Assunto: Inconstitucionalidade da Lei n. 3.984, de 16 de fevereiro de 2012, do Município de Dracena

 

 

 

 

 

1.     Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade, em face de dispositivos da Lei n. 3.984, de 16 de fevereiro de 2012, do Município de Dracena, junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

2.     Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.

 

                        São Paulo, 21 de agosto de 2012.

 

 

 

 

Márcio Fernando Elias Rosa

Procurador-Geral de Justiça

eaa