EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO E.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
Protocolado:
0000.161/2015
Ementa:
Constitucional.
Administrativo. Licitação. Expressão “exceto se a transação for precedida de
licitação”, constante do inciso xiii, do art. 193, da Lei Complementar nº 061, do
Município de Meridiano. servidor público autorizado a contratar com a
administração, mediante procedimento licitatório. Invasão da competência
normativa federal. Normas gerais de licitação. Violação aos princípios da
impessoalidade, moralidade, interesse público e eficiência. 1. Lei
municipal que autoriza servidor público a contratar com a administração
municipal, mediante licitação, versa sobre normas gerais de licitação e invade
a esfera de competência do legislador federal (arts. 1º, 18 e 22, XXVII, da CR),
violando o princípio federativo. 2. A
autorização para contratação de servidores macula os princípios da
impessoalidade, moralidade, interesse público e eficiência (art. 111 da CE/89 e
37, “caput”, da CF/88).
O Procurador-Geral
de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no
art. 116, inciso VI, da Lei Complementar Estadual nº 734, de 26 de novembro de
1993, e em conformidade com o disposto no art. 125, § 2º, e no art. 129, inciso
IV, da Constituição da República, e ainda no art. 74, inciso VI, e no art. 90,
inciso III, da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações
colhidas no incluso protocolado (PGJ nº 0000.161/2015, que segue anexo), vem
perante esse Egrégio Tribunal de Justiça promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE em face da expressão
“ exceto se a transação for precedida de licitação”, constantes do inciso XIII,
do art. 193, da Lei Complementar nº 061, de 18 de janeiro de 2011, do Município
de Meridiano, pelos fundamentos expostos a seguir:
1.
DO
ATO NORMATIVO IMPUGNADO
A Lei Complementar nº 061, de 18 de janeiro de 2011, do Município de Meridiano, “Estabelece o regime jurídico e organiza o quadro de pessoal do Município de Meridiano e dá nova redação a Lei Municipal nº 16, de 07 de outubro de 1971 e dá outras providências”.
O inciso XIII, do art. 193, da Lei Complementar nº 061, de 18 de janeiro de 2011, do Município de Meridiano, tem a seguinte redação (fls. 24/85 e 95/164):
“(...)
CAPÍTULO II
DAS PROIBIÇÕES
Art. 193 – Ao servidor é proibido:
XIII – participar de gerência ou de
administração de empresa privada, de sociedade civil, ou exercer comércio e,
nessa qualidade, transacionar com o Município, exceto se a transação for precedida de licitação; (g.n)
(...)”
A expressão “exceto se a transação for precedida de licitação”, constante do inciso XIII, do art. 193, da Lei Complementar nº 061, 18 de janeiro de 2011, do Município de Meridiano, é verticalmente incompatível com a Constituição do Estado de São Paulo.
II – dO parâmetro da
fiscalização abstrata de constitucionalidade
O dispositivo legal
mencionado é incompatível com o seguinte preceito da Constituição Estadual,
aplicáveis aos Municípios por força de seu art. 144:
Art. 111 - A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência.
E com os seguintes dispositivos da Constituição Federal:
“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
(...)
Art. 18. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.
(...)
Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
(...)
XXVII – normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o disposto no art. 37, XXI, e para as empresas públicas e sociedades de economia mista, nos termos do art. 173, § 1°, III;”
A expressão “exceto se a transação for precedida de licitação”, constante do inciso XIII, do art. 193, da Lei Complementar nº 061, de 18 de janeiro de 2011, do Município de Meridiano, é inconstitucional, na medida em que trata de questão que está na esfera de competência do legislador federal.
A participação de servidor público em licitação é vedada pelo art. 9º, da Lei nº 8.666/93, nos termos abaixo:
“Art. 9º. Não poderá participar, direta
ou indiretamente, da licitação ou da execução de obra ou serviço e do
fornecimento de bens a eles necessários:
(...)
III - servidor ou dirigente de órgão ou entidade contratante ou responsável pela
licitação.” (g.n)
Legislar a respeito de normas gerais de licitação insere-se na competência privativa do legislador federal, nos termos do art. 22, inc. XXVII, da Constituição Federal.
Note-se: não se trata de invocar parâmetro contido na
Constituição da República para fins de declaração de inconstitucionalidade de
lei municipal. A
impugnada lei viola o disposto no art. 144 da Constituição Paulista, que tem a
seguinte redação:
“(...)
Art. 144. Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.
(...)”
Um dos princípios constitucionais estabelecidos é o denominado princípio federativo, que está assentado nos arts. 1º e 18 da Constituição da República, bem como no art. 1º da Constituição Paulista.
Como
é cediço, a Constituição da República estabelece a repartição constitucional de
competências entre as diversas esferas da federação brasileira. E a repartição
de competências entre os entes federados é o corolário mais evidente do
princípio federativo.
Referindo-se
aos princípios fundamentais da Constituição, que revelam as opções políticas
essenciais do Estado, José Afonso da Silva aponta que entre eles podem ser
inseridos, entre outros, “os princípios
relativos à existência, forma, estrutura e tipo de Estado: República Federativa do Brasil, soberania, Estado Democrático de
Direito (art. 1º)” (Curso de direito
constitucional positivo, 13. ed., São Paulo, Malheiros, 1997, p. 96, g.n.).
Um
dos aspectos de maior relevo, e que representa a dimensão e alcance do
princípio do pacto federativo, adotado pelo Constituinte em 1988, é justamente
o que se assenta nos critérios adotados pela Constituição Federal para a
repartição de competências entre os entes federativos, bem como a fixação da
autonomia e dos respectivos limites, dos Estados, Distrito Federal, e
Municípios, em relação à União.
Anota
a propósito Fernanda Dias Menezes de Almeida que “avulta, portanto, sob esse ângulo, a importância da repartição de
competências, já que a decisão tomada a respeito é que condiciona a feição do
Estado Federal, determinando maior ou menor grau de descentralização.” Daí
a afirmação de doutrinadores no sentido de que a repartição de competências é “‘a chave da estrutura do poder federal’, ‘o
elemento essencial da construção federal’, ‘a grande questão do federalismo’,
‘o problema típico do Estado Federal” (Competências
na Constituição Federal de 1988, 4. ed., São Paulo, Atlas, 2007, p. 19/20).
Não
pairaria qualquer dúvida a respeito da inconstitucionalidade de proposta de
emenda constitucional ou de lei que sugerisse, por exemplo, a extinção da
própria Federação: a Constituição veda proposta de emenda “tendente a abolir”, entre outros, “a forma federativa de Estado” (art. 60, § 4º, I, da CR/88).
A
preservação do princípio federativo tem contado com a anuência do C. Supremo Tribunal
Federal, como destacado em julgado relatado pelo Min. Celso de Mello:
"(...) a idéia de Federação — que tem, na autonomia dos Estados-membros, um de seus cornerstones — revela-se elemento cujo sentido de fundamentalidade a torna imune, em sede de revisão constitucional, à própria ação reformadora do Congresso Nacional, por representar categoria política inalcançável, até mesmo, pelo exercício do poder constituinte derivado (CF, art. 60, § 4º, I)." (HC 80.511, voto do Min. Celso de Mello, julgamento em 21-8-01, DJ de 14-9-01).
Por essa linha de raciocínio, pode-se também afirmar que a lei municipal que regula matéria cuja competência é do legislador federal e do estadual está, ao desrespeitar a repartição constitucional de competências, a violar o princípio federativo.
A
prescrição de que os Municípios devem observar os princípios constitucionais
estabelecidos não se encontra apenas no art. 144 da Constituição Paulista. O
art. 29, caput, da Constituição
Federal prevê que “O Município reger-se-á
por lei orgânica, votada em dois turnos, com interstício mínimo de dez dias, e
aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará,
atendidos os princípios estabelecidos
nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado, e os seguintes
preceitos (g.n.).”
Relevante
anotar que quando do julgamento da ADI 130.227.0/0-00 em 21.08.07, rel. des.
Renato Nalini, esse E. Tribunal de Justiça acolheu a tese no sentido da possibilidade
de declaração de inconstitucionalidade
de lei municipal por violação do
princípio da repartição de competências estabelecido pela Constituição
Federal. É relevante trazer excerto de voto do i. Desembargador Walter de
Almeida Guilherme, imprescindível para a elucidação da questão:
“(...)
Ora, um dos princípios da Constituição Federal – e de capital importância – é o princípio federativo, que se expressa, no Título I, denominado ‘Dos Princípios Fundamentais’, logo no art.1º: ‘A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito...’.
Sendo a organização federativa do Estado brasileiro um princípio fundamental da República do Brasil, e constituindo elemento essencial dessa forma de estado a distribuição de competência legislativa dos entes federados, inescapável a conclusão de ser essa discriminação de competência um princípio estabelecido na Constituição Federal.
Assim, quando o referido art. 144 ordena que os Municípios, ao se organizarem, devem atender os princípios da Constituição Federal, fica claro que se estes editam lei municipal fora dos parâmetros de sua competência legislativa, invadindo a esfera de competência legislativa da União, não estão obedecendo ao princípio federativo, e, pois, afrontando estão o art. 144 da Constituição do Estado (...) (trecho do voto do i. des. Walter de Almeida Guilherme, no julgamento da ADI 130.227.0/0-00).
(...)”
A norma impugnada contraria também os princípios da impessoalidade, moralidade, eficiência e interesse público, os quais norteiam a atuação da Administração pública, insculpidos no artigo 111 da CE, que assim dispõe:
“Artigo 111 – A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência.”
Com efeito, a autorização legislativa para a participação de servidores públicos em procedimentos licitatórios dá ensejo a conchavos e favorecimentos calcados em relações pessoais entre os sujeitos que definem o destino da licitação e o servidor público, potencialmente causadores de prejuízo ao erário e à moralidade administrativa.
No que diz respeito à moralidade administrativa, em especial, anota Maria Sylvia Zanella Di Pietro que “sempre que em matéria administrativa se verificar que o comportamento da Administração ou do administrado que com ela se relaciona juridicamente, embora em consonância com a lei, ofende a moral, os bons costumes, as regras de boa administração, os princípios de justiça e de equidade, a idéia comum de honestidade, estará havendo ofensa ao princípio da moralidade administrativa” (Direito Administrativo, 19. ed., São Paulo, Atlas, 2006, p. 94) (sic).
Anota a propósito Rogério Pacheco Alves e Emerson Garcia “Sensível a essa realidade, o art. 9º, III, da Lei nº 8.666/93 veda que o ‘servidor ou dirigente de órgão ou entidade contratante ou responsável pela licitação’ participe, direta ou indiretamente, da licitação ou da execução da obra ou serviço e do fornecimento de bens a eles necessários. Ainda que inexistisse norma expressa, tal vedação seria um imperativo de justiça e de moralidade, pois seria insensato que o cão que zela pelo galinheiro tenha íntimos laços com a raposa que pretende nele se fartar. Frise-se, ainda, que o dispositivo é de meridiana clareza ao dispor que o servidor não poderá participar da licitação de nenhuma forma, quer seja direta ou indireta”. (Improbidade Administrativa, 4ª. ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2008, p. 344/345)
Assim, a permissão para a celebração de contratos pelo Município com servidores públicos vulnera o artigo 111 da Constituição Estadual - em especial, aos princípios da moralidade, impessoalidade, interesse público e eficiência - sendo patente a inconstitucionalidade da expressão “exceto se a transação for precedida de licitação”, constante do inciso XIII, do art. 193, da Lei Complementar nº 061, de 18 de janeiro de 2011, do Município de Meridiano.
3. DOS PEDIDOS
a.
DO PEDIDO LIMINAR
À saciedade demonstrado o fumus boni iuris, pela ponderabilidade
do direito alegado, soma-se a ele o periculum
in mora. A atual tessitura dos preceitos legais do Município de Meridiano
apontados como violadores de princípios e regras da Constituição do Estado de
São Paulo é sinal, de per si, para
suspensão de sua eficácia até final julgamento desta ação, evitando-se a
atuação desconforme o ordenamento jurídico, criadora de lesão irreparável ou de
difícil reparação, consistente na ilegítima participação de servidores em
procedimentos licitatórios assim como pagamentos indevidos advindos desta
contratação, com a consequente oneração financeira do erário.
De resto, ainda que não houvesse essa singular situação de risco, restaria, ao menos, a excepcional conveniência da medida.
Com efeito, no contexto das ações diretas e da outorga de provimentos cautelares para defesa da Constituição, o juízo de conveniência é um critério relevante, que vem condicionando os pronunciamentos do Supremo Tribunal Federal, preordenados à suspensão liminar de leis aparentemente inconstitucionais (cf. ADIN-MC 125, j. 15.2.90, DJU de 4.5.90, p. 3.693, rel. Min. Celso de Mello; ADIN-MC 568, RTJ 138/64; ADIN-MC 493, RTJ 142/52; ADIN-MC 540, DJU de 25.9.92, p. 16.182).
À luz deste perfil, requer-se a
concessão de liminar para a suspensão parcial da eficácia, até o final e
definitivo julgamento desta ação, da expressão
“exceto se a transação for precedida de licitação”, constante do inciso XIII, do
art. 193, da Lei Complementar nº 061, de 18 de janeiro de 2011, do Município de
Meridiano.
DO PEDIDO PRINCIPAL.
Diante
de todo o exposto, aguarda-se o recebimento e processamento da presente ação
declaratória, para que ao final seja ela julgada procedente, reconhecendo-se a
inconstitucionalidade da expressão “exceto se a
transação for precedida de licitação”, constante do inciso XIII, do art. 193, da
Lei Complementar nº 061, de 18 de janeiro de 2011, do Município de Meridiano.
Requer-se,
ainda, sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Senhor Prefeito
Municipal de Meridiano, bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do
Estado para manifestar-se sobre os atos normativos impugnados.
Posteriormente,
aguarda-se vista para fins de manifestação final.
Termos
em que,
Aguarda-se
deferimento.
São Paulo, 26 de março de 2015.
Márcio Fernando Elias Rosa
Procurador-Geral de Justiça
aaamj/mi
Protocolado nº 0000.161/2015
Interessado: Dr. Daniel Azadinho Palmezan Calderaro - 5º Promotor
de Justiça de Fernandópolis
1. Distribua-se a inicial da ação direta de inconstitucionalidade.
2. Comunique-se a propositura da ação ao interessado.
3. Cumpra-se.
São Paulo, 26 de
março de 2015.
Márcio Fernando Elias Rosa
Procurador-Geral de Justiça
aaamj/mi