EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO E. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

 

 

Protocolado nº 24.570/2015

                                              

Ementa:    

 

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Art. 155, caput e § 1º, da Lei nº 2.693, de 26 de agosto de 1997, e do art. 158, caput, § 1º e § 3º, da Lei nº 2.693, de 26 de agosto de 1997, com a redação dada pela Lei Complementar nº 104, de 05 de agosto de 2014, do Município de Bebedouro.

2)      Gratificação de “nível universitário” concedida a todos os servidores públicos com grau superior de instrução ocupantes de cargos, inclusive de provimento em comissão, para os quais seja exigida formação superior. Gratificação de representação prevista para outras situações em que a autoridade entender pertinente à sua representação.

3)      A concessão de gratificação a servidores públicos, sem critérios objetivos determinados ou que considera como critério objetivo requisito para provimento do cargo, viola os princípios da legalidade, moralidade, impessoalidade, razoabilidade, interesse público.

4)      Norma que confere indiscriminado aumento indireto e dissimulado da remuneração, estando alheada aos parâmetros de razoabilidade, interesse público e necessidade do serviço que devem presidir a concessão de vantagens pecuniárias aos servidores públicos.

5)      A concessão de gratificação a servidores públicos, por discricionariedade da autoridade, viola os princípios da legalidade e da separação dos poderes.

6)      Benefícios que não atendem à legalidade, interesse público e às exigências do serviço. Violação dos arts. 5º, 24, § 2º, 1, 111, 128 e 144 da Constituição Estadual.

 

O PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO, no exercício da atribuição prevista no art. 116, inciso VI, da Lei Complementar Estadual nº 734 de 26 de novembro de 1993, e em conformidade com o disposto no art. 125, § 2º, e no art. 129, inciso IV, da Constituição da República, e ainda no art. 74, inciso VI, e no art. 90, inciso III, da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado (PGJ nº 24.570/2015, que segue como anexo), vem perante esse Egrégio Tribunal de Justiça promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE em face do art. 155, caput e § 1º, da Lei nº 2.693, de 26 de agosto de 1997, do Município de Bebedouro; da expressão “bem como nas demais situações em que a autoridade entender pertinente à sua representação”, constante do § 1º do art. 158; e do § 3º do art. 158, da Lei nº 2.693, de 26 de agosto de 1997, com a redação dada pela Lei Complementar nº 104, de 05 de agosto de 2014, do Município de Bebedouro (e, por arrastamento, da redação original dos §§ 1º e 3º do art. 158 da Lei nº 2.693/1997, bem como daquelas posteriormente dadas pelas Leis Complementares nº 12/2004 e nº 04/2012, do Município de Bebedouro), pelos fundamentos expostos a seguir:

1.     DOS ATOS NORMATIVOS IMPUGNADOS

O protocolado que instrui esta inicial de ação direta de inconstitucionalidade foi instaurado a partir de representação do Promotor de Justiça de Bebedouro (fls. 02/10).

O art. 155, caput e o § 1º, da Lei nº 2.693/97, do Município de Bebedouro, tem a seguinte redação:

“Art. 155. Aos servidores ou funcionários titulares de funções ou cargos para cujo provimento a Administração exija nível universitário específico, poderá ser concedida uma gratificação correspondente a vinte por cento da respectiva referência.

§ 1º A gratificação de que trata o caput poderá ser concedida na mesma proporção aos ocupantes de cargos de direção ou chefia.”

O art. 158 e seus §§ 1º e 3º da Lei nº 2.693, de 26 de agosto de 1997, com a redação dada pela Lei Complementar nº 104, de 05 de agosto de 2014, do Município de Bebedouro, dispõem o seguinte:

“Art. 158. Aos diretores de Departamento, aos diretores de autarquias e àqueles servidores ou funcionários lotados no gabinete do prefeito ou no do presidente da Câmara Municipal será concedida gratificação a título de representação.

§ 1º A gratificação referida no caput poderá ser concedida também aos demais servidores ou funcionários da administração direta, indireta, autárquica e fundacional ocupantes de cargos de direção, chefia e assessoramento, bem como nas demais situações em que a autoridade entender pertinente à sua representação, e não poderá ser acumulável com a gratificação de função.

§ 2º O servidor ou funcionário efetivo que receber gratificação de representação equipara-se ao comissionado quanto à confiança e não fará jus a percepção de horas extras, nos termos do § 2º do art. 137.

§ 3º A gratificação será arbitrada pelo prefeito, presidente da Câmara e diretores de autarquias para os servidores públicos do Executivo, Legislativo e autarquias, respectivamente, em valor que não poderá exceder a 2 (duas) vezes o valor da referência do servidor.”

2.     DO PARÂMETRO DA FISCALIZAÇÃO ABSTRATA DE CONSTITUCIONALIDADE

Os atos normativos impugnados contrariam frontalmente a Constituição do Estado de São Paulo, à qual está subordinada a produção normativa municipal ante a previsão dos arts. 1º, 18, 29 e 31, da Constituição Federal.

Os preceitos da Constituição do Estado são aplicáveis aos Municípios por força de seu art. 144, que assim estabelece:

“Artigo 144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição”.

As regras jurídicas contestadas são incompatíveis com os seguintes preceitos da Constituição Estadual:

“Artigo 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

(...)

Artigo 24 - A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Assembleia Legislativa, ao Governador do Estado, ao Tribunal de Justiça, ao Procurador-Geral de Justiça e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.

(...)

§ 2º - Compete, exclusivamente, ao Governador do Estado a iniciativa das leis que disponham sobre:

1 - criação e extinção de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica, bem como a fixação da respectiva remuneração;

(...)

Artigo 111 - A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência.

(...)

Artigo 128 - As vantagens de qualquer natureza só poderão ser instituídas por lei e quando atendam efetivamente ao interesse público e às exigências do serviço.

(...)”.

3.     DA FUNDAMENTAÇÃO

a.  Da inconstitucionalidade da gratificação de nível universitário

Sabe-se que as vantagens pecuniárias são acréscimos permanentes ou efêmeros ao vencimento dos servidores públicos, compreendendo adicionais e gratificações.

O adicional significa recompensa ao tempo de serviço (ex facto temporis) ou retribuição ligada a determinados cargos ou funções que, para serem bem desempenhados, exigem um regime especial de trabalho, uma particular dedicação ou uma especial habilitação de seus titulares (ex facto officii). (Hely Lopes Meirelles. Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 2001, 26ª ed., p. 449; Diógenes Gasparini. Direito Administrativo, São Paulo: Saraiva, 2008, 13ª ed., p. 233; Marçal Justen Filho. Curso de Direito Administrativo, São Paulo: Saraiva, 2008, 3ª ed., p. 760).

A doutrina assinala que “o que caracteriza o adicional e o distingue da gratificação é o ser aquele uma recompensa ao tempo do serviço do servidor, ou uma retribuição pelo desempenho de funções especiais que refogem da rotina burocrática, e esta, uma compensação por serviços comuns executados em condições anormais para o servidor, ou uma ajuda pessoal em face de certas situações que agravam o orçamento do servidor” (Hely Lopes Meirelles. Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 2001, 26ª ed., p. 452).

Os adicionais são compensatórios dos encargos decorrentes de funções especiais apartadas da atividade administrativa ordinária e as gratificações dos riscos ou ônus de serviços comuns realizados em condições extraordinárias. Com efeito, “se o adicional de função (ex facto officii) tem em mira a retribuição de uma função especial exercida em condições comuns, a gratificação de serviço (propter laborem) colima a retribuição do serviço comum prestado em condições especiais” (Wallace Paiva Martins Junior. Remuneração dos agentes públicos, São Paulo: Saraiva, 2009, p. 85). 

Ademais, oportuno ressaltar que “as vantagens pecuniárias, sejam adicionais, sejam gratificações, não são meios para majorar a remuneração dos servidores, nem são meras liberalidades da Administração Pública. São acréscimos remuneratórios que se justificam nos fatos e situações de interesse da Administração Pública” (Diógenes Gasparini. Direito Administrativo, São Paulo: Saraiva, 2008, 13ª ed., p. 233).  

A Constituição do Estado de São Paulo subordina a previsão de vantagens pecuniárias à concorrência de dois requisitos; devem atender ao interesse público (e não somente o do servidor) e às exigências do serviço.

Diante destas considerações, verifica-se incompatibilidade constitucional da gratificação denominada “nível universitário” prevista no art. 155, caput e § 1º, da Lei nº 2.693/97, do Município de Bebedouro.

Foram beneficiados pela gratificação de nível universitário, indiscriminadamente, todos os servidores que ocupam cargos cujo acesso reclama formação superior ou nível universitário específico. A mesma gratificação foi estendida aos ocupantes de cargos de direção ou chefia.

Os atos normativos impugnados instituem a gratificação de nível universitário, a qual não decorrente do caráter técnico específico exigido para o exercício de determinadas atividades da administração. Em outras palavras, referido adicional não se funda em habilitação específica para o exercício de determinada função na administração, mas sim em condição inerente ao próprio cargo. 

Assim, não se mostra razoável, tampouco moral, conceder vantagem pecuniária para quem possuiu formação universitária, sendo este um dos requisitos de investidura do respectivo cargo.

Se, para determinados cargos a escolaridade de nível superior é condição inerente ao seu provimento e exercício, não atende efetivamente ao interesse público e às exigências do serviço o estabelecimento de vantagem pecuniária a todo servidor, pelo simples fato de possuir qualificação, exigida pela própria natureza do cargo que ocupa.

Repita-se. A formação superior, sendo aspecto ordinário para a ocupação e exercício, não pode, por si só, fundamentar a instituição de vantagem pecuniária.

De outro lado, para os ocupantes de cargos de direção ou chefia, foi simplesmente estendido o direito a gratificação, nada dispondo acerca de eventual exigência de formação superior. E, mesmo que estivesse implícita a exigência, a norma seria inconstitucional, pois é da natureza dos cargos de direção e chefia superior a formação universitária.

Da forma como concebida pelos atos normativos impugnados, a gratificação de nível universitário não se justifica por não trazer nenhum benefício à atividade administrativa.

Para o emprego legítimo do dinheiro público, evitando concessão indiscriminada do adicional de nível universitário, a vantagem pecuniária deve estar relacionada à função exercida e não à condição de acessibilidade inerente ao próprio cargo.

Para ilustrar, não é razoável e moral que um médico receba o adicional apenas por ser formado em medicina, o dentista por ter curso superior em odontologia, nem o professor por ter curso de pedagogia ou licenciatura plena.

Cabe ressaltar que a moralidade administrativa está intimamente ligada ao conceito do “bom administrador”. Quando se trata da gestão do patrimônio público, todas as condutas devem concorrer para a criação do bem comum, e, para tanto, devem observar não somente o que é lícito ou ilícito, o justo ou injusto, mas atender a critérios morais que hoje dão valor jurídico à vontade psicológica do administrador. A gestão do dinheiro público exige do administrador prudência muito maior do que aquela que empregamos na gestão dos nossos bens.

Hoje a moralidade administrativa foi erigida em fator de legalidade não só do ato administrativo, mas também da produção normativa.

Assim, não basta a conformação do emprego e disponibilidade do dinheiro público à lei, mas também à moral administrativa e ao interesse coletivo.

A instituição do adicional de nível universitário para todos os servidores ocupantes de cargo para os quais a escolaridade superior consiste em requisito de seu próprio provimento e para os ocupantes de cargos de direção e chefia não se conforma com a moral administrativa e com o interesse público.

A necessidade de se verificar se a vantagem pecuniária atende efetivamente ao interesse público e às exigências do serviço está motivada pela sobriedade e prudência que os Municípios devem ter em relação à gestão do dinheiro público. Não se desconsidera a importância e necessidade de bem remunerar os servidores públicos, no entanto, devem ser observados os princípios orientadores da Administração Pública, constitucionalmente previstos.

Como ressaltado, a criação da gratificação de nível universitário não atende a nenhum interesse público, e tampouco às exigências do serviço, servindo apenas como mecanismo destinado a beneficiar interesses exclusivamente privados dos agentes públicos.

Ademais, o ato normativo impugnado que a instituiu contraria o princípio da razoabilidade e moralidade, que devem nortear a Administração Pública e a atividade legislativa e tem assento no art. 111 da Constituição do Estado, aplicável aos Municípios por força do art. 144 da mesma Carta.

Por força desse princípio, é necessário que a norma passe pelo denominado “teste” de razoabilidade, ou seja, que ela seja: (a) necessária (a partir da perspectiva dos anseios da Administração Pública); (b) adequada (considerando os fins públicos que com a norma se pretende alcançar); e (c) proporcional em sentido estrito (que as restrições, imposições ou ônus dela decorrentes não sejam excessivos ou incompatíveis com os resultados a alcançar).

O adicional de nível universitário não passa por nenhum dos critérios do teste de razoabilidade: (a) não atende a nenhuma necessidade da Administração Pública, vindo em benefício exclusivamente da conveniência dos servidores públicos beneficiados por essa vantagem pecuniária; (b) é, por consequência, inadequada na perspectiva do interesse público; (c) é desproporcional em sentido estrito, pois cria ônus financeiros que naturalmente se mostram excessivos e inadmissíveis, tendo em vista que não acarretarão benefício algum para a Administração Pública.

Manifesta-se claramente o desrespeito ao princípio da razoabilidade, pela desnecessidade de previsão normativa e por sua inadequação do ponto de vista do Poder Público, bem ainda pela falta de proporcionalidade em sentido estrito, ao criar encargos que não se justificam: não se pode efetuar o pagamento de verba em função de escolaridade superior que é condição inerente ao próprio cargo.

A ofensa ao princípio da razoabilidade tem servido, em julgados desse C. Órgão Especial, ao reconhecimento da inconstitucionalidade de leis que criam ônus excessivos e desnecessários para seus destinatários ou para o próprio Poder Público. Confira-se: ADI 0136976-34.2011.8.26.0000, Rel. Des. Renato Nalini, j. 16 de novembro de 2011, ADI 152.442-0/1-00, j. 07.05.08, v.u., rel. des. Penteado Navarro; ADI 150.574-0/9-00, j. 07.05.08, v.u., rel; des. Debatin Cardoso.

A propósito da matéria, no julgamento da Arguição de Inconstitucionalidade nº 0063358-56.2011.8.26.0000 (julgado em 24/08/2011, este C. Órgão Especial proclamou inconstitucionalidade de dispositivo legal do Município de Pedreira que instituía gratificação de nível universitário para servidores ocupantes de cargos que exigem formação superior. Convém a transcrição do seguinte trecho do v. acórdão da lavra do Des. Campos Mello: 

 “(...)

Todavia, isso não é tudo. O exame do ato normativo questionado revela que a própria instituição da gratificação ali prevista acarreta ofensa aos princípios constitucionais acima mencionados. E que, nos termos dos fundamentos já externados no acórdão a fls. 120/128, da lavra do eminente Des. Guerrieri Rezende, "... essa gratificação não pode favorecer titular de cargo, cuja lei criadora já exija, para seu preenchimento, nível universitário" (cf. fls. 123). Vale lembrar ainda o que este Órgão Especial já deixou assentado, em caso que versava sobre gratificação análoga, verbis: "Esse adicional constitui uma vantagem anômala, instituída apenas para cortejar o servidor público, pois não atende ao interesse público e às exigências do serviço, como prevê o art. 128 da Carta Paulista, que, assim, restou afrontado." (Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 153.532-0/0, São Paulo, Rei. Sousa Lima, j . 01.04.2009).

No mesmo sentido, merece destaque o acórdão mais recente:

“Funcionário público - Leis locais do Município de São João de Iracema, Comarca de General Salgado, deferindo gratificação de nível universitário a qualquer servidor que ostente esse grau - Inexistência de causa eficiente a justificar a concessão da benesse, já que as funções do servidor continuarão as mesmas, sem qualquer plus a justificar a regalia, sem que o cargo exercido reclame diploma universitário ou demande qualquer esforço suplementar inerente à graduação superior - Ação procedente, para reconhecer írritos os diplomas legais respectivos, de quinze e treze anos atrás. Com a necessária modulação para que o desfazimento não retroaja à data do presente julgamento, subsistindo os pagamentos anteriores uma vez recebidos de boa-fé.” (Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 2074272-43.2014.8.26.0000, São Paulo, Rel. Luiz Ambra, j . 20.8.2014).

         Posto isso, o caput e o § 1º do art. 155 da Lei nº 2.693/97, do Município de Bebedouro, são inconstitucionais uma vez que contrariam os artigos 111 e 128 da Constituição Estadual, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da mesma Carta.

b.  Da violação ao princípio da separação de poderes e ao da legalidade

O § 1º do art. 158 da Lei nº 2.693/97, com a redação dada pela Lei Complementar nº 104/204, estabelece que a gratificação de representação poderá ser concedida nas demais situações em que a autoridade entender pertinente à sua representação.

E o § 3º do art. 158 da Lei nº 2.693/97, com a redação dada pela Lei Complementar nº 104/204, estabelece que o valor da gratificação será arbitrada pelo prefeito, presidente da Câmara e diretores de autarquias para os servidores públicos do Executivo, Legislativo e autarquias, respectivamente, em valor que não poderá exceder a 2 (duas) vezes o valor da referência do servidor.

Os vencimentos dos servidores públicos devem ser fixados em lei específica, assim como as vantagens pecuniárias, até porque accessorium sequitur principale.

De qualquer modo, nessa compreensão, incluem-se as vantagens pecuniárias e seus respectivos valores porque a dimensão da reserva de lei - da tradição jurídico-constitucional brasileira (art. 15, n. 17, Constituição de 1824; art. 34, n. 24, art. 72, n. 32, Constituição de 1891; art. 65, IV, Constituição de 1946; arts. 43, V, e 57, II, Constituição de 1967; art. 37, X, Constituição de 1988) - abrange quaisquer espécies remuneratórias e, aliás, quaisquer estipêndios pagos pelo poder público sob qualquer rubrica, alcançando acréscimos e vantagens pecuniários, indenizações, auxílios, abonos que só podem ser concedidos por ato normativo da exclusiva alçada do Poder Legislativo, pois a ele compete a integralidade da disciplina da matéria.

Ubi eadem ratio, ibi eadem legis dispositio: se à lei é reservada, com exclusividade, a função de fixação da remuneração do servidor público, inclusive de seu valor, pela mesma razão pertence-lhe fixar adicional ou a gratificação e seus respectivos valores (ainda que fracionário ou percentual e até com diferenciações em razão do cargo situar-se em maior ou menor grau de hierarquia, de complexidade etc.), sob pena, inclusive, de inviabilidade do planejamento e da execução orçamentária (art. 169, Constituição Estadual).

Houve, portanto, ofensa aos princípios da separação dos poderes e ao da legalidade, em afronta aos arts. 5º e 24, § 2º, 1, da Constituição do Estado, pois os dispositivos impugnados autorizam inicialmente a autoridade conceder a gratificação naquilo que entender pertinente à sua representação, permitindo, ainda, a critério do Chefe do Executivo, do presidente da Câmara e dos diretores de autarquias, a fixação do percentual da gratificação, até o limite de 2 (duas) vezes o valor da referência do servidor.

Em torno do tema, o Supremo Tribunal Federal prestigia a prevalência da reserva legal na remuneração dos servidores públicos e sua indelegabilidade:

“O tema concernente à disciplina jurídica da remuneração funcional submete-se ao postulado constitucional da reserva absoluta de lei, vedando-se, em conseqüência, a intervenção de outros atos estatais revestidos de menor positividade jurídica, emanados de fontes normativas que se revelem estranhas, quanto à sua origem institucional, ao âmbito de atuação do Poder Legislativo, notadamente quando se tratar de imposições restritivas ou de fixação de limitações quantitativas ao estipêndio devido aos agentes públicos em geral. - O princípio constitucional da reserva de lei formal traduz limitação ao exercício das atividades administrativas e jurisdicionais do Estado. A reserva de lei - analisada sob tal perspectiva - constitui postulado revestido de função excludente, de caráter negativo, pois veda, nas matérias a ela sujeitas, quaisquer intervenções normativas, a título primário, de órgãos estatais não-legislativos. Essa cláusula constitucional, por sua vez, projeta-se em uma dimensão positiva, eis que a sua incidência reforça o princípio, que, fundado na autoridade da Constituição, impõe, à administração e à jurisdição, a necessária submissão aos comandos estatais emanados, exclusivamente, do legislador. Não cabe, ao Poder Executivo, em tema regido pelo postulado da reserva de lei, atuar na anômala (e inconstitucional) condição de legislador, para, em assim agindo, proceder à imposição de seus próprios critérios, afastando, desse modo, os fatores que, no âmbito de nosso sistema constitucional, só podem ser legitimamente definidos pelo Parlamento. É que, se tal fosse possível, o Poder Executivo passaria a desempenhar atribuição que lhe é institucionalmente estranha (a de legislador), usurpando, desse modo, no contexto de um sistema de poderes essencialmente limitados, competência que não lhe pertence, com evidente transgressão ao princípio constitucional da separação de poderes” (STF, ADI-MC 2.075-RJ, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 07-02-2001, v.u., DJ 27-06-2003, p. 28).

“Em tema de remuneração dos servidores públicos, estabelece a Constituição o princípio da reserva de lei. É dizer, em tema de remuneração dos servidores públicos, nada será feito senão mediante lei, lei específica. CF, art. 37, X, art. 51, IV, art. 52, XIII. Inconstitucionalidade formal do Ato Conjunto n. 01, de 5-11-2004, das Mesas do Senado Federal e da Câmara dos Deputados” (STF, ADI 3.369-MC, Rel. Min. Carlos Velloso, 16-12-2004, DJ 01-02-2005).

“Ação direta de inconstitucionalidade. Resoluções n.ºs 26, de 22/12/94; 15, de 23/10/97, e 16, de 30/10/97, todas do Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo, havendo a primeira criado a gratificação de representação, correspondente a 40% do valor global atribuído a diversos cargos, estendendo-a, inclusive, aos inativos que se aposentaram em cargos de igual denominação ou equivalente. 2. Alegação de ofensa a funções privativas dos Poderes Legislativo e Executivo. 3. Medida cautelar deferida e suspensa, com eficácia ex nunc, a eficácia das Resoluções impugnadas. 4. Procedência da alegação de ofensa a funções privativas dos Poderes Legislativo e Executivo, eis que há necessidade de lei em sentido formal para a criação de vantagens pecuniárias a servidores do Poder Judiciário. 5. A Lei Magna não assegura aos Tribunais fixar, sem lei, vencimentos ou vantagens a seus membros ou servidores. 6. Jurisprudência do STF no sentido de que ‘não cabe ao Poder Judiciário, que não tem função legislativa, aumentar vencimentos de servidores públicos, sob o fundamento da isonomia’ (Súmula 339 e ADINs n.º 1776, 1777 e 1782). 7. Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente” (STF, ADI 1.732-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Néri da Silveira, 17-04-2002, v.u., DJ 07-06-2002, p. 81).

Perfilhando esta orientação, merece destaque julgamento deste egrégio Tribunal de Justiça, cuja ementa é a seguinte:

“Ação Direta de Inconstitucionalidade – Ato normativo municipal que confere ao Chefe do Poder Executivo a possibilidade de, mediante portaria e a seu alvedrio, conceder gratificações de 20 e até 100% sobre os vencimentos dos servidores – Violação da cláusula da reserva legal, visto que somente por lei, em sentido formal, podem ser fixadas gratificações e vantagens – Precedente do Colendo Supremo Tribunal Federal – Preceito normativo que, ademais, vulnera a moralidade, o princípio da impessoalidade e da razoabilidade – Ofensa aos artigos 5º, 24, § 2º, nº 1, 111, 115, XI, todos da Constituição Estadual, aplicáveis aos Municípios ex vi o artigo 144 da mesma Carta – Inconstitucionalidade do § 1º do artigo 5º da Lei nº 3.122 do Município de Cruzeiro reconhecida – Inconstitucionalidade também do § 2º do mesmo preceito por arrastamento – Ação procedente” (TJSP, ADI 169.057-0/3-00, Órgão Especial, Rel. Des. A. C. Mathias Coltro, 28-01-2009, v.u.).

c.   Da inconstitucionalidade por arrastamento

Não se pode olvidar que, acaso acolhido o pedido da presente ação direta de inconstitucionalidade, serão automaticamente restauradas as redações originais dos §§ 1º e 3º do art. 158 da Lei nº 2.693/1997, bem como daquelas posteriormente dadas pelas Leis Complementares nº 12/2004 e nº 04/2012, que possuem o mesmo vício de constitucionalidade.

Torna-se, portanto, necessário que se reconheça a inconstitucionalidade por arrastamento ou atração dos referidos dispositivos, sob pena de se instaurar situação mais gravosa do que aquela que se busca combater.

A respeito da inconstitucionalidade por arrastamento, tem-se que: 

"(...) se em determinado processo de controle concentrado de constitucionalidade for julgada inconstitucional a norma principal, em futuro processo, outra norma dependente daquela que foi declarada inconstitucional em processo anterior - tendo em vista a relação de instrumentalidade que entre elas existe - também estará eivada pelo vício da inconstitucionalidade 'conseqüente', ou por 'arrastamento' ou por 'atração'" (Pedro Lenza, "Direito Constitucional Esquematizado", Saraiva, 13ª Edição, p. 208).

Segundo precedentes do Pretório Excelso, é perfeitamente possível a declaração de inconstitucionalidade por arrastamento (ADI 1.144-RS, Rel. Min. Eros Grau, DJU 08-09-2006, p. 16; ADI-3.645-R, Rel. Min. Ellen Gracie, DJU 01-09-2006, p. 16; ADI-QO 2.982-CE, Rel. Min. Gilmar Mendes, LexSTF, 26/105; ADI 2.895-AL, Rel. Min. Carlos Velloso, RTJ 194/533; ADI 2.578-MG, Rel. Min. Celso de Mello, DJU 09-06-2005, p. 4).

A declaração de inconstitucionalidade por arrastamento é possível sempre que: a) o reconhecimento da inconstitucionalidade de determinado dispositivo legal torne despidos de eficácia e utilidade outros preceitos do mesmo diploma, ainda que não tenham sido impugnados; b) nos casos em que o efeito repristinatório restabelece dispositivos já revogados pela lei viciada que ostentem o mesmo vício; c) quando há na lei dispositivos que não foram impugnados, mas guardam direta relação com aqueles cuja inconstitucionalidade é reconhecida.

Restabelecidos os efeitos da lei revogada, dá-se o que se chama de efeito indesejado, já havendo assentado o Supremo Tribunal Federal que:

"A reentrada em vigor da norma revogada nem sempre é vantajosa. O efeito repristinatório produzido pela decisão do Supremo, em via de ação direta, pode dar origem ao problema da legitimidade da norma revivida. De fato, a norma reentrante pode padecer de inconstitucionalidade ainda mais grave que a do ato nulificado. Previne-se o problema com o estudo apurado das eventuais conseqüências que a decisão judicial haverá de produzir. O estudo deve ser levado a termo por ocasião da propositura, pelos legitimados ativos, de ação direta de inconstitucionalidade. Detectada a manifestação de eventual eficácia repristinatória indesejada, cumpre requerer igualmente, já na inicial da ação direta, a declaração da inconstitucionalidade, e, desde que possível, a do ato normativo ressuscitado" (STF, ADI-MC 2.621-DF, Rel. Min. Celso de Mello, 01-08-2002).

4.     DOS PEDIDOS

a.  Do pedido liminar

À saciedade demonstrado o fumus boni iuris, pela ponderabilidade do direito alegado, soma-se a ele o periculum in mora. A atual tessitura da norma impugnada, apontada como violadora de princípios e regras da Constituição do Estado de São Paulo é sinal, de per si, para suspensão de sua eficácia até final julgamento desta ação porque permite dispêndio público de maneira ilegítima, periclitando as forças do erário com a potencialidade real e concreta de danos irreversíveis ou de difícil reparação.

O perigo da demora decorre, especialmente, da ideia de que, sem a imediata suspensão da vigência e da eficácia das disposições normativas questionadas, continuarão sendo aplicadas. Serão realizadas despesas que, dificilmente, poderão ser revertidas aos cofres públicos na hipótese provável de procedência da ação direta.

Basta lembrar que os pagamentos relativos às gratificações impugnadas não serão revertidos ao erário pela argumentação usual, em casos desta espécie, no sentido do caráter alimentar da prestação e da efetiva prestação dos serviços.

A ideia do fato consumado, com repercussão concreta, guarda relevância para a apreciação da necessidade da concessão da liminar na ação direta de inconstitucionalidade.

Note-se que, com a procedência da ação, pelas razões declinadas, não será possível restabelecer o status quo ante.

Assim, a imediata suspensão da eficácia das normas impugnadas evitará a ocorrência de maiores prejuízos, além dos que já se verificaram.

À luz deste perfil, requer-se a concessão de liminar para suspensão da eficácia, até final e definitivo julgamento desta, do art. 155, caput e § 1º, da Lei nº 2.693, de 26 de agosto de 1997, do Município de Bebedouro; da expressão “bem como nas demais situações em que a autoridade entender pertinente à sua representação”, constante do § 1º do art. 158; bem como do § 3º do art. 158 da Lei nº 2.693, de 26 de agosto de 1997, com a redação dada pela Lei Complementar nº 104, de 05 de agosto de 2014, do Município de Bebedouro.

b.  Do Pedido Principal

Diante de todo o exposto, aguarda-se o recebimento e processamento da presente ação declaratória, para que ao final seja ela julgada procedente, reconhecendo-se a inconstitucionalidade do art. 155, caput e § 1º, da Lei nº 2.693, de 26 de agosto de 1997, do Município de Bebedouro; da expressão “bem como nas demais situações em que a autoridade entender pertinente à sua representação”, constante do § 1º do art. 158; bem como do § 3º do art. 158, da Lei nº 2.693, de 26 de agosto de 1997, com a redação dada pela Lei Complementar nº 104, de 05 de agosto de 2014, do Município de Bebedouro (e, por arrastamento, da redação original dos §§ 1º e 3º do art. 158 da Lei nº 2.693/1997, bem como daquelas posteriormente dadas pelas Leis Complementares nº 12/2004 e nº 04/2012, do Município de Bebedouro).

Requer-se ainda que sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Prefeito Municipal de Bebedouro, bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para manifestar-se sobre o ato normativo impugnado.

Posteriormente, aguarda-se vista para fins de manifestação final.

Termos em que,

Aguarda-se deferimento.

São Paulo, 18 de junho de 2015.

 

         Márcio Fernando Elias Rosa

         Procurador-Geral de Justiça

 

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Protocolado nº 24.570/2015

Assunto: inconstitucionalidade do art. 155, caput e § 1º, da Lei nº 2.693, de 26 de agosto de 1997, e do art. 158, caput, § 1º e § 3º, da Lei nº 2.693, de 26 de agosto de 1997, com a redação dada pela Lei Complementar nº 104, de 05 de agosto de 2014, do Município de Bebedouro.

 

 

1.    Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade em face do art. 155, caput e § 1º, da Lei nº 2.693, de 26 de agosto de 1997, do Município de Bebedouro; da expressão “bem como nas demais situações em que a autoridade entender pertinente à sua representação”, constante do § 1º do art. 158; bem como do § 3º do art. 158, da Lei nº 2.693, de 26 de agosto de 1997, com a redação dada pela Lei Complementar nº 104, de 05 de agosto de 2014, do Município de Bebedouro (e, por arrastamento, da redação original dos §§ 1º e 3º do art. 158 da Lei nº 2.693/1997, bem como daquelas posteriormente dadas pelas Leis Complementares nº 12/2004 e nº 04/2012, do Município de Bebedouro).

2.    Oficie-se ao representante, informando a propositura da ação, com cópia da petição inicial.

                   São Paulo, 18 de junho de 2015.

 

Márcio Fernando Elias Rosa

Procurador-Geral de Justiça

 

 

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