EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO E. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

 

 

Protocolado nº 35.720/2015

                                  

Ementa:

 

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 5.230, de 04 de dezembro de 2.003, do Município de São Bernardo do Campo, que "Altera o artigo 374, da Lei Municipal nº 4.974, de 31 de maio de 2001, e dá outras providências".

2)      Limitação temporal da incidência das normas de controle da poluição sonora.

3)        Existência de normas gerais editadas pelo legislador federal, com fundamento na competência concorrente prevista no art. 24, VI, da Constituição Federal, disciplinando a emissão de ruídos em decorrência de qualquer atividade. Os limites da autonomia municipal radicados nos incisos I e II do art. 30 da Constituição Federal não autorizam a restrição da aplicação de normas gerais federais relativas à proteção do meio ambiente e controle da poluição, por se tratar de matéria de competência concorrente da União e dos Estados.

4)      Inconstitucionalidade. Violação do princípio federativo (art. 1º e art. 144 da Constituição Paulista) decorrente da repartição constitucional de competências.

O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, inciso VI, da Lei Complementar Estadual nº 734 de 26 de novembro de 1993, e em conformidade com o disposto no art. 125, § 2º, e no art. 129, inciso IV, da Constituição da República, e ainda no art. 74, inciso VI, e no art. 90, inciso III, da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado (PGJ nº 35.720/2015, que segue como anexo), vem perante esse Egrégio Tribunal de Justiça promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE em face da Lei nº 5.230, de 04 de dezembro de 2.003, do Município de São Bernardo do Campo, pelos fundamentos expostos a seguir:

1.     DO ATO NORMATIVO IMPUGNADO

O protocolado que instrui esta inicial de ação direta de inconstitucionalidade e, a cujas folhas reportar-se-á, foi instaurado a partir de representação encaminhada pela Promotoria de Justiça de São Bernardo do Campo (fls. 2/8).

A Lei nº 5.230, de 04 de dezembro de 2.003, do Município de São Bernardo do Campo, que "Altera o artigo 374, da Lei Municipal nº 4.974, de 31 de maio de 2001, e dá outras providências", tem a seguinte redação:

“Art. 1º O artigo 374 da lei municipal nº 4974, de 31 de maio de 2001, passa a vigorar com a seguinte redação:

"Art. 374. Os ruídos causados por vozes, cânticos ou instrumentos musicais, produzidos no interior de escolas, clubes, igrejas, templos ou outros locais especialmente destinados a cultos religiosos, ficam sujeitos à vedação estabelecida no artigo 368, salvo no período compreendido entre 8h (oito horas) e 22h (vinte e duas horas)." (NR)

Art. 2º Esta lei entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

Entretanto, a lei é verticalmente incompatível com nosso ordenamento constitucional, como será demonstrado a seguir.

2.     FUNDAMENTAÇÃO

O ato normativo impugnado contraria frontalmente a Constituição do Estado de São Paulo, à qual está subordinada a produção normativa municipal ante a previsão dos arts. 1º, 18, 29 e 31, da Constituição Federal.

A autonomia municipal é condicionada pelo art. 29 da Constituição da República. O preceito estabelece que a Lei Orgânica Municipal e sua legislação deve observância ao disposto na Constituição Federal e na respectiva Constituição Estadual, sendo reproduzido pelo art. 144 da Constituição do Estado que dispõe que:

 “Artigo 144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição”.

O mencionado art. 144 da Constituição Estadual é denominado “norma estadual de caráter remissivo, na medida em que, para a disciplina dos limites da autonomia municipal, remete para as disposições constantes da Constituição Federal”, como averbou o Supremo Tribunal Federal ao credenciar o controle concentrado de constitucionalidade de lei municipal por esse ângulo (STF, Rcl 10.406-GO, Rel. Min. Gilmar Mendes, 31-08-2010, DJe 06-09-2010; STF, Rcl 10.500-SP, Rel. Min. Celso de Mello, 18-10-2010, DJe 26-10-2010).

Daí decorre a possibilidade de contraste da lei local com o art. 144 da Constituição Estadual, por sua remissão à Constituição Federal, se a tanto não bastasse como parâmetro, nesta ação, o art. 1° da Constituição Estadual.

Eventual ressalva à aplicabilidade das Constituições Federal e estadual só teria, ad argumentandum tantum, espaço naquilo que a própria Constituição da República reservou como privativo do Município, não podendo alcançar matéria não inserida nessa reserva nem em assunto sujeito aos parâmetros limitadores da auto-organização municipal ou aqueles que contém remissão expressa ao direito estadual.

Verifica-se que o ato normativo impugnado na presente ação restringe o controle da poluição sonora no período compreendido entre às 8 e às 22 horas, produzida no interior de escolas, clubes, igrejas, templos ou outros locais especialmente destinados a cultos religiosos.

O ato normativo ora impugnado viola o princípio federativo que se manifesta na repartição constitucional de competências (art. 1º e art. 144 da Constituição Paulista), uma vez que é competência da União e Estados legislar concorrentemente sobre proteção do meio ambiente e controle da poluição (art. 24, VI da Constituição Federal).

A Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, que “Dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, e dá outras providências”, recepcionada pela Constituição Federal e, posteriormente, alterada pela Lei nº 8.028/1990, encontra-se inserida na competência da União para legislar sobre proteção do meio ambiente e controle da poluição.

Ao instituir o Sistema Nacional de Meio Ambiente, a Lei nº 6.938/1981 estruturou-o em órgãos e entidades da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios, responsáveis pela proteção e melhoria da qualidade ambiental (art. 6º caput).

Dentre estes órgãos foi conferido ao Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) atribuição consultiva e deliberativa, dentre as quais a edição de normas e padrões compatíveis com o meio ambiente ecologicamente equilibrado e essencial à sadia qualidade de vida.

No uso desta prerrogativa, o CONAMA, através da Resolução nº 001/1990, disciplinou os critérios e diretrizes para a emissão de ruídos, em decorrência de quaisquer atividades industriais, comerciais, sociais ou recreativas, inclusive as de propaganda política, estabelecendo que são prejudiciais à saúde e ao sossego público os ruídos com níveis superiores aos considerados aceitáveis pela norma NBR 10.151 - Avaliação do Ruído em Áreas Habitadas, visando o conforto da comunidade, da Associação Brasileira de Normas Técnicas - ABNT.

A NBR 10.151 estabelece os níveis de ruído admissíveis para o período diurno e noturno (tabela I do item 6.2) de acordo com a área (sítios e fazendas; área estritamente residencial urbana ou de hospitais ou de escolas; área mista, predominantemente residencial; área mista, com vocação comercial e administrativa; área mista, com vocação recreacional e área predominantemente industrial), permitindo apenas aos Municípios definir os limites de horário para o período diurno e noturno de acordo com os hábitos da população (item 6.2.2).

Desta forma, a União, exercendo sua competência concorrente, disciplinou os níveis de ruídos aceitáveis no período diurno e noturno, através da Resolução Conama nº 001/1990 que determina a observância da NBR 10.151 e da NBR 10.152.

As normas editadas pelo CONAMA, no âmbito da proteção ambiental e do controle de poluição, têm supremacia sobre normas estaduais e municipais. A propósito, já se decidiu no Superior Tribunal de Justiça que:

“RECURSO ESPECIAL. PEDIDO DE REGISTRO DE LOTEAMENTO ÀS MARGENS DE HIDRELÉTRICA. AUTORIZAÇÃO DA MUNICIPALIDADE. IMPUGNAÇÃO OFERECIDA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. ÁREA DE PROTEÇÃO AMBIENTAL. RESOLUÇÃO N. 4/85-CONAMA. INTERESSE NACIONAL. SUPERIORIDADE DAS NORMAS FEDERAIS. No que tange à proteção ao meio ambiente, não se pode dizer que há predominância do interesse do Município. Pelo contrário, é escusado afirmar que o interesse à proteção ao meio ambiente é de todos e de cada um dos habitantes do país e, certamente, de todo o mundo. Possui o CONAMA autorização legal para editar resoluções que visem à proteção das reservas ecológicas, entendidas como as áreas de preservação permanentes existentes às margens dos lagos formados por hidrelétricas. Consistem elas normas de caráter geral, às quais devem estar vinculadas as normas estaduais e municipais, nos termos do artigo 24, inciso VI e §§ 1º e 4º, da Constituição Federal e do artigo 6º, incisos IV e V, e § § 1º e 2º, da Lei n. 6.938/81.” (REsp 194.617/PR – Rel. Min. Franciulli Netto, j. 16-04-2002)

A pretexto de exercer competência suplementar com fundamento no art. 30, II, da Constituição da República, não há espaço para o legislador municipal sobrepor normais locais à regulamentação da União, afastando o controle da emissão de ruídos provocados por escolas, clubes, igrejas, templos ou outros locais especialmente destinados a cultos religiosos, no período das 8 às 22 horas.

A competência suplementar do município aplica-se, nos assuntos que são da competência legislativa da União ou dos Estados, àquilo que seja secundário ou subsidiário relativamente à temática essencial tratada na norma superior.

Na hipótese em questão, caberia ao Município, diante dos usos e costumes locais, definir qual seria o período considerado como diurno ou noturno, mas não afastar a vedação de produção de ruídos em determinado período.

Não se pode afastar a limitação de produção de ruídos no período das 8 às 22 horas, sob pena de eliminar a tutela ao sossego e a saúde das pessoas.

 Já se decidiu que não pode o legislador municipal, contudo, a pretexto de legislar sobre assuntos de interesse local ou suplementar a legislação Federal ou Estadual de ordem geral, invadir a competência legislativa destes entes federativos superiores (RE 313.060, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 29-11-2005, Segunda Turma, DJ de 24-2-2006).

A autonomia das entidades federativas pressupõe repartição de competências legislativas, administrativas e tributárias. Trata-se de um dos pontos caracterizadores e asseguradores da existência e de harmonia do Estado Federal.

Dessa forma, no conflito normativo aqui analisado, conclui-se que a Lei nº 5.230, de 04 de dezembro de 2.003, do Município de São Bernardo do Campo, violou a repartição constitucional de competências, que é a manifestação mais contundente do princípio federativo, operando, por consequência, desrespeito a princípio constitucional estabelecido.

Essa é a razão pela qual restou configurada, no caso, a ofensa ao disposto no art. 1º e no art. 144, ambos da Constituição do Estado de São Paulo.

Cumpre recordar que um dos princípios constitucionais estabelecidos é o denominado princípio federativo, que está assentado nos arts. 1º e 18 da Constituição da República, bem como no art. 1º da Constituição Paulista.

Referindo-se aos princípios fundamentais da Constituição, que revelam as opções políticas essenciais do Estado, José Afonso da Silva aponta que entre eles podem ser inseridos, entre outros, “os princípios relativos à existência, forma, estrutura e tipo de Estado: República Federativa do Brasil, soberania, Estado Democrático de Direito (art. 1º)” (Curso de direito constitucional positivo, 13. ed., São Paulo, Malheiros, 1997, p. 96, g.n.).

Um dos aspectos de maior relevo, que representa a dimensão e alcance do princípio do pacto federativo adotado pelo Constituinte em 1988, é justamente o que se assenta nos critérios adotados pela Constituição Federal para a repartição de competências entre os entes federativos, bem como a fixação da autonomia e dos respectivos limites, dos Estados, Distrito Federal e Municípios, em relação à União.

Anota, a propósito, Fernanda Dias Menezes de Almeida que “avulta, portanto, sob esse ângulo, a importância da repartição de competências, já que a decisão tomada a respeito é que condiciona a feição do Estado Federal, determinando maior ou menor grau de descentralização.” Daí a afirmação de doutrinadores no sentido de que a repartição de competências é “’a chave da estrutura do poder federal’, ‘o elemento essencial da construção federal’, ‘a grande questão do federalismo’, ‘o problema típico do Estado Federal’” (Competências na Constituição Federal de 1988, 4. ed., São Paulo, Atlas, 2007, p. 19/20).

A preservação do princípio federativo tem contado com a anuência do C. Supremo Tribunal Federal, pois como destacado em julgado relatado pelo Min. Celso de Mello:

"(...)

a idéia de Federação — que tem, na autonomia dos Estados-membros, um de seus cornerstones — revela-se elemento cujo sentido de fundamentalidade a torna imune, em sede de revisão constitucional, à própria ação reformadora do Congresso Nacional, por representar categoria política inalcançável, até mesmo, pelo exercício do poder constituinte derivado (CF, art. 60, § 4º, I). (HC 80.511, voto do Min. Celso de Mello, julgamento em 21-8-01, DJ de 14-9-01). (...)”

Por essa linha de raciocínio, pode-se afirmar que a Lei Municipal que trate de matéria cuja competência é do legislador federal ou estadual está, ao desrespeitar a repartição constitucional de competências, a violar o princípio federativo.

A prescrição de que os municípios devem observar os princípios constitucionais estabelecidos não se encontra apenas no art. 144 da Constituição Paulista. O art. 29, caput, da Constituição da República, prevê que os municípios, ao editarem suas leis orgânicas deverão respeitar os “princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado”.

A Lei nº 5.230, de 04 de dezembro de 2.003, do Município de São Bernardo do Campo, suplanta os limites da autonomia municipal radicados nos incisos I e II do art. 30 da Constituição Federal e invade a competência concorrente legislativa da União e Estados relativa a proteção do meio ambiente e controle da poluição contida no art. 24, VI, da Constituição Federal, ao permitir sem qualquer limite a propagação de ruídos das 08 às 22 horas por determinados estabelecimentos.

3.     DO PEDIDO PRINCIPAL

Diante de todo o exposto, aguarda-se o recebimento e o processamento da presente ação declaratória, para que ao final seja ela julgada procedente, reconhecendo-se a inconstitucionalidade da Lei nº 5.230, de 04 de dezembro de 2.003, do Município de São Bernardo do Campo, que "Altera o artigo 374, da Lei Municipal nº 4.974, de 31 de maio de 2001, e dá outras providências".

Requer-se, ainda, sejam requisitadas informações ao Prefeito e à Câmara Municipal de São Bernardo do Campo, bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para manifestar-se sobre o ato normativo impugnado.

Posteriormente, aguarda-se vista para fins de manifestação final.

Termos em que,

Aguarda-se deferimento.

São Paulo, 30 de junho de 2015.

 

        

         Márcio Fernando Elias Rosa

         Procurador-Geral de Justiça

aca

Protocolado nº 35.720/2015

Assunto: Inconstitucionalidade da Lei nº 5.230, de 04 de dezembro de 2.003, do Município de São Bernardo do Campo, que "Altera o artigo 374, da Lei Municipal nº 4.974, de 31 de maio de 2001, e dá outras providências

 

 

 

 

 

1.     Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade.

2.     Oficie-se a interessada, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.

 

                   São Paulo, 30 de junho de 2015.

 

 

 

 

Márcio Fernando Elias Rosa

Procurador-Geral de Justiça

 

 

aca