EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO E. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

 

 

Protocolado nº 42.565/2015

 

Ementa:

1)     Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 4.204, de 10 de março de 2015, do Município de Guarujá, de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre a obrigatoriedade da reutilização da água retirada das caixas d’água de todos os prédios e edifícios do município de Guarujá, quando de sua limpeza, para abastecer os caminhões pipa da prefeitura para ser utilizada na lavagem de ruas de feiras e limpeza urbana e dá outras providências”.

2)     Encontra-se na reserva da Administração e na iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo a instituição de programas, campanhas e serviços administrativos, sendo ainda inconstitucional a lei de iniciativa parlamentar pela ausência de fonte para cobertura de novos gastos públicos (art. 25 da Constituição Estadual). 

3)     Violação do princípio da separação de poderes (arts. 5º; 24, § 2º, 2; 47, II, XIV e XIX; 144 e 176, I, da Constituição do Estado).  

 

 

O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, inciso VI, da Lei Complementar Estadual nº 734 de 26 de novembro de 1993, e em conformidade com o disposto no art. 125, § 2º, e no art. 129, inciso IV, da Constituição da República, e ainda no art. 74, inciso VI, e no art. 90, inciso III, da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado (PGJ nº 42.565/2015), que segue como anexo), vem perante esse Egrégio Tribunal de Justiça promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE da Lei nº 4.204, de 10 de março de 2015, do Município de Guarujá, pelos seguintes fundamentos:

1.     ATO NORMATIVO IMPUGNADO

O protocolado que instrui esta inicial de ação direta de inconstitucionalidade foi instaurado a partir de representação do cidadão Arthur Albino dos Reis (fls. 02/08).

A Lei nº 4.204, de 10 de março de 2015, do Município de Guarujá, de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre a obrigatoriedade da reutilização da água retirada das caixas d’água de todos os prédios e edifícios do município de Guarujá, quando de sua limpeza, para abastecer os caminhões pipa da prefeitura para ser utilizada na lavagem de ruas de feiras e limpeza urbana e dá outras providências”, foi promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal de Guarujá, após superado o veto do Executivo,  com a seguinte redação:

“(...)

Art. 1° - Fica obrigatório a reutilização da água retirada das caixas de água de todos os prédios e edifícios do Município de Guarujá, por ocasião de sua limpeza, para abastecer os caminhões pipa da prefeitura, para ser utilizada na lavagem de ruas de feiras livre e limpeza urbana em geral e dá outras providências.

Parágrafo único – A medida a que se refere o ‘caput’ deste artigo será de competência e responsabilidade do proprietário do estabelecimento, síndico ou administradora do condomínio.

Art. 2° - Os responsáveis pelo prédio ou edifício, deverão comunicar a prefeitura do município com o prazo de 15 (quinze) dias úteis, que providenciará o envio do caminhão pipa ao local para a coleta da água que será dispensada.

Parágrafo único – A falta de comunicação ao órgão da prefeitura acarretará a imposição de multa a ser definida pelo Poder Executivo.

Art. 3° - O Chefe do Poder Executivo regulamentará a presente Lei no prazo de 90 (noventa) dias, contados de sua publicação.

Art. 4° - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

(...)”

A lei é verticalmente incompatível com nosso ordenamento constitucional, como será demonstrado a seguir.

2.     FUNDAMENTAÇÃO

O ato normativo ora impugnado viola o princípio da separação de poderes, previsto no art. 5º, e art. 47, II e XIV, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista.

A matéria disciplinada pela lei impugnada encontra-se no âmbito da atividade administrativa do Município, cuja organização, funcionamento e direção superior cabem ao Prefeito Municipal, com auxílio dos Secretários Municipais.

A instituição de um programa municipal (reutilização de água para lavagem de ruas de feiras livre e limpeza urbana em geral), que acaba tendo reflexo na organização do serviço público é matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do Chefe do Executivo, porque muda a rotina e a forma de prestação dos serviços público. No caso, a limpeza das vias públicas.

Trata-se de atividade nitidamente administrativa, representativa de atos de gestão, de escolha política para a satisfação das necessidades coletivas, vinculadas aos direitos fundamentais. Assim, privativa do Poder Executivo e inserida na esfera do poder discricionário da administração.

Não se trata, evidentemente, de atividade sujeita à disciplina legislativa. Logo, o Poder Legislativo não pode através de lei ocupar-se da administração, sob pena de se permitir que o legislador administre, invadindo área privativa do Poder Executivo.

Quando o Poder Legislativo do Município edita lei disciplinando atuação administrativa, como ocorre, no caso em exame, em função de obrigar o Poder Executivo Municipal a coletar águas de caixas d’àgua de todos os prédios do município para utilizá-la na lavagem de ruas de feiras livre e limpeza urbana em geral, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do administrador público, violando o princípio da separação de poderes.

Cabe essencialmente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito da conveniência e da oportunidade da criação de programa de coleta de água retirada das caixas de água de todos os prédios e edifícios do Município. Trata-se de atuação administrativa que é fundada em escolha política de gestão, na qual é vedada intromissão de qualquer outro poder.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (arts. 5º, 47, II, XIV e XIX, a e 144).

É pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outro lado, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”.

Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que devem existir entre os poderes estatais.

A matéria tratada na lei encontra-se na órbita da chamada reserva da administração, que reúne as competências próprias de administração e gestão, imunes à interferência de outro poder (art. 47, II e IX da Constituição Estadual - aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144), pois privativas do Chefe do Poder Executivo.

Ainda que se imagine que houvesse necessidade de disciplinar por lei alguma matéria típica de gestão municipal, a iniciativa seria privativa do Chefe do Poder Executivo, mesmo quando ele não possa discipliná-la por decreto nos termos do art. 47, XIX, da Constituição Estadual.

Assim, a Lei, ao regulamentar ainda que parcialmente um serviço público, de um lado, viola o art. 47, II e XIV, no estabelecimento de regras que respeitam à direção da administração, à organização e ao funcionamento do Poder Executivo, matéria essa que é da alçada da reserva da Administração, e de outro, ela ofende o art. 24, § 2º, 2, na medida em que impõe atribuição ao Poder Executivo.

Criar programas e disciplinar serviços públicos – precisamente o que se verifica na hipótese em exame – é matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do Chefe do Executivo.

Ademais, para o efetivo cumprimento da lei impugnada, são necessárias diversas providências a cargo do Poder Executivo, como o envio do caminhão pipa ao local para a coleta da água que será dispensada (art. 2º), a imposição de multa em caso de falta de comunicação dos responsáveis pelo prédio ou edifício da água disponível ao órgão da prefeitura (art. 2º, parágrafo único), bem como a obrigação de regulamentação da presente Lei no prazo de 90 dias contados de sua publicação (art. 3º). Por este motivo, a matéria de que cuida o ato normativo impugnado é de atribuição privativa do Poder Executivo.

De outro lado, e não menos importante, a lei impugnada cria, evidentemente, novas despesas por parte da Municipalidade, sem que tenha havido a indicação das fontes específicas de receita para tanto e a inclusão do programa na lei orçamentária anual.

A norma combatida, ao impor ao Município encargos, como a disponibilização de caminhão pipa para a coleta da água que será dispensada (art. 2º), não indicou especificamente os recursos orçamentários necessários para a cobertura dos gastos advindos, que, no caso, são evidentes porquanto ordenam atividades novas na Administração Pública, cujo desenvolvimento demanda meios financeiros que não foram previstos.

Isso implica contrariedade ao disposto no art. 25 e 176, I, da Constituição do Estado de São Paulo.

A inconstitucionalidade transparece exatamente pelo divórcio da iniciativa parlamentar da lei local com os preceitos mencionados da Constituição Estadual.

3.     DOS PEDIDOS

a.    Do pedido liminar

Estão presentes os pressupostos para a concessão da liminar, determinando-se a suspensão da Lei nº 4.204, de 10 de março de 2015, do Município de Guarujá.

A razoável fundamentação jurídica evidencia-se pelos motivos que lastreiam a propositura desta ação direta.

Quanto ao perigo da demora, evidencia-se pelo fato de que, a prevalecer, por ora, a presunção de constitucionalidade das normas glosadas nesta ação direta, atos materiais serão realizados no sentido de concretização de suas previsões normativas, gerando situações cuja reversão ao status quo ante, futuramente, será de considerável grau de dificuldade.

As situações consolidadas, muitas vezes, criam espaço para argumentação no sentido da improcedência da ação, ou mesmo afastamento de seus efeitos concretos, desprestigiando, em última análise, o próprio sistema de controle concentrado de constitucionalidade, bem como esvaziando a autoridade da Corte Constitucional, seja no plano federal, como no estadual.

De resto, ainda que não houvesse essa singular situação de risco, restaria, ao menos, a excepcional conveniência da medida.

Com efeito, no contexto das ações diretas e da outorga de provimentos cautelares para defesa da Constituição, o juízo de conveniência é um critério relevante, que vem condicionando os pronunciamentos mais recentes do Supremo Tribunal Federal, preordenados à suspensão liminar de leis aparentemente inconstitucionais (cf. ADIN-MC 125, j. 15.2.90, DJU de 4.5.90, p. 3.693, rel. Min. Celso de Mello; ADIN-MC 568, RTJ 138/64; ADIN-MC 493, RTJ 142/52; ADIN-MC 540, DJU de 25.9.92, p. 16.182).

Requer-se, destarte, a concessão da liminar, determinando-se a suspensão da Lei nº 4.204, de 10 de março de 2015, do Município de Guarujá.

 

b.    Do Pedido Principal

Diante de todo o exposto, aguarda-se o recebimento e processamento da presente ação declaratória, para que ao final seja ela julgada procedente, reconhecendo-se a inconstitucionalidade da Lei nº 4.204, de 10 de março de 2015, do Município de Guarujá.

Requer-se ainda que sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Senhor Prefeito Municipal de Guarujá, bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para manifestar-se sobre o ato normativo impugnado.

Posteriormente, aguarda-se vista para fins de manifestação final.

Termos em que,

Aguarda-se deferimento.

 

São Paulo, 25 de junho de 2015.

 

 

         Márcio Fernando Elias Rosa

         Procurador-Geral de Justiça

 

 

 

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Protocolado nº 42.565/2015

Assunto: apurar inconstitucionalidade da Lei n. 4.204/2015 do Município de Guarujá

 

 

 

 

1.     Distribua-se a inicial da ação direta de inconstitucionalidade.

2.     Comunique-se a propositura da ação ao interessado.

3.     Cumpra-se.

São Paulo, 25 de junho de 2015.

 

 

 

 

         Márcio Fernando Elias Rosa

         Procurador-Geral de Justiça

 

aca/dcm