EXCELENTÍSSIMO
SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO E. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO
PAULO
Protocolado nº 37.338/2015
Ementa:
1. Ação
Direta de Inconstitucionalidade. Lei nº 5.056, de fevereiro de 2015, do
Município de Barretos, que revogou o art. 2º, da Lei nº 4.446, de 29 de
novembro de 2010.
2. Violação do Princípio da Proibição de Retrocesso. A proibição legal de realização, no Município em questão, de qualquer tipo de prova de laço e/ou vaquejada teve por escopo tutelar a saúde e o bem estar dos animais a ela submetidos, vale dizer, a proteção da fauna brasileira (art. 193, X, da Constituição Estadual).
3. Ao revogar tal dispositivo, a lei impugnada retrocedeu no sistema de proteção ambiental. O Princípio do Não Retrocesso Ambiental constitui um verdadeiro princípio geral constitucional do direito ambiental, uma vez que tem por objetivo salvaguardar os progressos obtidos, a fim de evitar a deterioração do ambiente, sendo inadmissível o retrocesso, visto que isso implicaria em ameaça à sadia qualidade de vida das presentes e futuras gerações.
O PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA DO
ESTADO DE SÃO PAULO, no exercício da atribuição prevista no art. 116,
inciso VI, da Lei Complementar Estadual n. 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei
Orgânica do Ministério Público de São Paulo), em conformidade com o disposto nos
arts. 125, § 2º, e 129, inciso IV, da Constituição Federal, e, ainda, nos arts.
74, inciso VI, e 90, inciso III, da Constituição do Estado de São Paulo, com
amparo nas informações colhidas no incluso protocolado, vem, respeitosamente,
perante esse Egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE em
face da Lei nº 5.056, de fevereiro
de 2015, do Município de Barretos, pelos fundamentos que passa a expor:
1.
DO
ATO NORMATIVO IMPUGNADO
O
protocolado que instrui esta inicial e a cujas folhas reportar-se-á foi
instaurado em face de representação da 3ª Promotoria de Justiça de Barretos (fl.
02).
A
Lei nº 5.056, de fevereiro de 2015, do Município de Barretos, tem a seguinte
redação:
“ART. 1.º - Fica revogado o artigo 2.º, da Lei n.º 4.446, de 29 de novembro de 2010.
ART. 2.º - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação”.
O
art. 2º, da Lei n.º 4.446, de 29 de novembro de 2010, que “Dispõe sobre as normas para a realização de rodeios no âmbito do Município
de Barretos e dá outras providências”, tinha, por sua vez a seguinte
redação:
“ART. 2.º - Fica expressamente vedada a realização de qualquer tipo de prova de laço e/ou vaquejada”.
O ato normativo transcrito padece de incompatibilidade vertical com a Constituição do Estado de São Paulo, como adiante será demonstrado.
2.
O parâmetro
da fiscalização abstrata de constitucionalidade
Os dispositivos
legais impugnados contrariam frontalmente a Constituição do Estado de São
Paulo, à qual está subordinada a produção normativa municipal ante a previsão
dos arts. 1º, 18, 29 e 31, da Constituição Federal.
Os preceitos da Constituição Federal e da
Constituição do Estado são aplicáveis aos Municípios por força do art. 29
daquela e do art. 144 desta.
Os dispositivos em comento encontram-se em
dissonância com os seguintes preceitos da Carta Bandeirante:
“Artigo
144 - Os Municípios, com
autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se
auto-organizarão por lei orgânica,
atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta
Constituição
(...)
Artigo 193 - O Estado, mediante lei, criará um
sistema de administração da qualidade ambiental, proteção, controle e
desenvolvimento do meio ambiente e uso adequado dos recursos naturais, para
organizar, coordenar e integrar as ações de órgãos e entidades da administração
pública direta e indireta, assegurada a participação da coletividade, com o fim
de:
(...)
X - proteger
a flora e a fauna, nesta compreendidos todos os animais silvestres, exóticos e
domésticos, vedadas as práticas que coloquem em risco sua função ecológica e
que provoquem extinção de espécies ou submetam os animais à crueldade,
fiscalizando a extração, produção, criação, métodos de abate, transporte,
comercialização e consumo de seus espécimes e subprodutos;
(...)”
3.
Da inconstitucionalidade
O constituinte originário, quando esquadrinhou as linhas inaugurais da
vigente ordem constitucional, estabeleceu nesse novel arcabouço normativo uma
gama de direitos cuja observância seria fundamental ao equilíbrio de interesses
oriundos dos mais variados segmentos sociais do Estado brasileiro, buscando,
assim, concretizar os objetivos estabelecidos em seu texto, em especial o de
promover o bem de todos (art. 3º, IV, da CF).
Nesse diapasão, portanto, visualiza-se, no decorrer do texto magno de 1988,
mandados constitucionais de proteção a serem observados por todos os entes
federativos da república brasileira, dentre os quais se destaca, para os fins
perquiridos nesta ação direta, a proteção constitucional ao meio ambiente (art.
225 e seguintes, da Constituição Federal), bem como à fauna, cuja competência
legislativa é concorrente entre a União e os Estado-membros (art. 24, VI, da
CF).
Ex vi do disposto no art. 225, da CF, cujo
teor, em linhas gerais, fora reproduzido no decorrer do Capítulo IV, da Seção I,
da Carta Paulista, a preservação de um meio ambiente ecologicamente equilibrado
é imperiosa à existência do Estado brasileiro, pois sua defesa se revela
essencial à qualidade de vida das gerações presentes e futuras, devendo tanto o
Poder Público, como a coletividade zelar pela defesa desse interesse difuso.
Aliás, não por menos a proteção do meio ambiente está incluída no Título VIII
da CF/88 (Ordem Social), sendo rememorada, outrossim, no Título VII (Ordem
Econômica).
Partindo-se da premissa segundo a qual se revela impossível a perpetuação
da espécie humana dissociada dos recursos naturais e espécies biológicas presentes
na natureza, a tutela do meio ambiente se torna assaz relevante ao próprio
corpo social, de sorte que o constituinte procedeu com exímia diligência ao
insculpir em sua moldura normativa a proteção do bem jurídico em questão, devendo
sua guarida, assim, ser necessariamente promovida, sob pena de contrariedade ao
anseio de seu criador.
Importante ressaltar, por oportuno, que o E. STF já se posicionou nesse
sentido em inúmeros julgados, o que revela a envergadura constitucional da
tutela em exame. Apenas para clarificar a importância da proteção ambiental,
colacionam-se alguns julgados da lavra da Suprema Corte, verbis:
"O
direito à integridade do meio ambiente – típico direito de terceira geração –
constitui prerrogativa jurídica de titularidade coletiva, refletindo, dentro do
processo de afirmação dos direitos humanos, a expressão significativa de um
poder atribuído, não ao indivíduo identificado em sua singularidade, mas, num
sentido verdadeiramente mais abrangente, à própria coletividade social.
Enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) – que
compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais – realçam o princípio
da liberdade e os direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e
culturais) – que se identificam com as liberdades positivas, reais ou concretas
– acentuam o princípio da igualdade, os direitos de terceira geração, que
materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas
as formações sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um
momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento
dos direitos humanos, caracterizados, enquanto valores fundamentais
indisponíveis, pela nota de uma essencial inexauribilidade." (MS 22.164,
Rel. Min. Celso
de Mello, julgamento em 30-10-1995, Plenário, DJ de17-11-1995.)
"Meio
ambiente – Direito à preservação de sua integridade (CF, art. 225) – Prerrogativa
qualificada por seu caráter de metaindividualidade – Direito de terceira
geração (ou de novíssima dimensão) que consagra o postulado da solidariedade –
Necessidade de impedir que a transgressão a esse direito faça irromper, no seio
da coletividade, conflitos intergeneracionais – Espaços territoriais
especialmente protegidos (CF, art. 225, § 1º, III) – Alteração e supressão do
regime jurídico a eles pertinente – Medidas sujeitas ao princípio
constitucional da reserva de lei – Supressão de vegetação em área de
preservação permanente – Possibilidade de a administração pública, cumpridas as
exigências legais, autorizar, licenciar ou permitir obras e/ou atividades nos
espaços territoriais protegidos, desde que respeitada, quanto a estes, a
integridade dos atributos justificadores do regime de proteção especial –
Relações entre economia (CF, art. 3º, II, c/c o art. 170, VI) e ecologia (CF,
art. 225) – Colisão de direitos fundamentais – Critérios de superação desse
estado de tensão entre valores constitucionais relevantes – Os direitos básicos
da pessoa humana e as sucessivas gerações (fases ou dimensões) de direitos (RTJ 164/158, 160-161) – A
questão da precedência do direito à preservação do meio ambiente: uma limitação
constitucional explícita à atividade econômica (CF, art. 170, VI) – Decisão não
referendada – consequente indeferimento do pedido de medida cautelar. A
preservação da integridade do meio ambiente: expressão constitucional de um
direito fundamental que assiste à generalidade das pessoas." (ADI 3.540-MC,
Rel. Min. Celso
de Mello, julgamento em 1º-9-2005, Plenário, DJ de 3-2-2006.)”
Pois bem.
Dentre os segmentos de proteção ambiental elencados pelo texto
constitucional, lembrando que a tutela em exame não se restringe aos elementos
naturais presentes no mundo fenomênico, mas também engloba outros variados segmentos,
como o cultural, laboral e artificial, embora nesta ação direta tratar-se-á
apenas do aspecto natural de proteção ambiental, cumpre no momento trazer à
baila a guarida constitucional atribuída à fauna brasileira.
Conforme dispõe o art. 225, § 1º, VII, da Constituição Federal,
reproduzido com maior detalhamento no art. 193, X, da Constituição Estadual, é
dever de todos proteger a fauna nacional, vedadas quaisquer condutas que
atentem contra o aludido objeto de proteção. Vejamos:
“Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida,
impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-
lo para as presentes e futuras gerações.
§ 1º - Para assegurar a
efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
VII - proteger a fauna e a
flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função
ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais à crueldade.
Artigo 193 - O Estado, mediante lei, criará um
sistema de administração da qualidade ambiental, proteção, controle e
desenvolvimento do meio ambiente e uso adequado dos recursos naturais, para
organizar, coordenar e integrar as ações de órgãos e entidades da administração
pública direta e indireta, assegurada a participação da coletividade, com o fim
de:
(...)
X - proteger a flora e a fauna, nesta
compreendidos todos os animais silvestres, exóticos e domésticos, vedadas as
práticas que coloquem em risco sua função ecológica e que provoquem extinção de
espécies ou submetam os animais à crueldade, fiscalizando a extração, produção,
criação, métodos de abate, transporte, comercialização e consumo de seus
espécimes e subprodutos;”
Ou seja, é visível a preocupação das Cartas Federal e Estadual com a
proteção da fauna da terrae brasilis,
não fazendo distinção se silvestres, exóticos ou domésticos, sendo defeso
qualquer ato que prejudique sua função ecológica, promova sua extinção ou a submeta
a tratamento cruel, uma vez que, reflexamente, estar-se-ia a atentar contra o
próprio sistema ambiental, caracterizado pela sinergia entre seus elementos
componentes, cada qual com um respectivo papel de relevância nessa complexo
conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física,
química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas.
Aliás, a necessidade da tutela desses seres se revela tão imperiosa ao
complexo sistema normativo ambiental que a E. Corte Suprema, em reiterados
julgamentos, firmou precedente no sentido de se obstar qualquer conduta
dissonante do imperativo constitucional ora invocado, vide o teor das ementas
destacadas:
“A
obrigação de o Estado garantir a todos o pleno exercício de direitos culturais,
incentivando a valorização e a difusão das manifestações, não prescinde da
observância da norma do inciso VII do art. 225 da CF, no que veda prática que
acabe por submeter os animais à crueldade. Procedimento discrepante da norma
constitucional denominado ‘farra do boi’." (RE 153.531,
Rel. p/ o ac. Min. Marco
Aurélio,
julgamento em 3-6-1997, Segunda Turma, DJ de 13-3-1998.)
“A promoção de briga de
galos, além de caracterizar prática criminosa tipificada na legislação
ambiental, configura conduta atentatória à Constituição da República, que veda
a submissão de animais a atos de crueldade, cuja natureza perversa, à
semelhança da “farra do boi” (RE 153.531/SC), não permite sejam eles
qualificados como inocente manifestação cultural, de caráter meramente
folclórico. Precedentes. - A proteção jurídico-constitucional dispensada à
fauna abrange tanto os animais silvestres quanto os domésticos ou domesticados,
nesta classe incluídos os galos utilizados em rinhas, pois o texto da Lei
Fundamental vedou, em cláusula genérica, qualquer forma de submissão de animais
a atos de crueldade. - Essa especial tutela, que tem por fundamento legitimador
a autoridade da Constituição da República, é motivada pela necessidade de
impedir a ocorrência de situações de risco que ameacem ou que façam periclitar
todas as formas de vida, não só a do gênero humano, mas, também, a própria vida
animal, cuja integridade restaria comprometida, não fora a vedação
constitucional, por práticas aviltantes, perversas e violentas contra os seres
irracionais, como os galos de briga (“gallus-gallus”). Magistério da doutrina. (...)”
(ADI 1.856,
Rel. Min. Celso
de Mello, julgamento em 26-05-2011,
Plenário, DJ de 14-10-2011.)”
Desse último julgado, aliás, extrai-se lição tão profícua aos anseios desta propositura, principalmente pela erudição de seu relator ao tratar sobre a temática, que se pede vênia para transcrever excertos subtraídos de seu v. acórdão:
“(...)
Vê-se,
daí, que o constituinte objetivou, com a proteção da fauna e com a vedação,
dentre outras, de práticas que “submetam os animais a crueldade”, assegurar a
efetividade do direito fundamental à preservação da integridade do meio
ambiente, que traduz conceito amplo e abrangente das noções de meio ambiente
natural, de meio ambiente cultural, de meio ambiente artificial (espaço urbano)
e de meio ambiente laboral, consoante ressalta o magistério doutrinário (CELSO
ANTÔNIO PACHECO FIORILLO, “Curso de Direito Ambiental Brasileiro”, p. 20/23,
item n. 4, 6ª ed., 2005, Saraiva; JOSÉ AFONSO DA SILVA, “Direito Ambiental
Constitucional”, p. 21/24, itens ns. 2 e 3, 4ª ed./2ª tir., 2003, Malheiros;
JOSÉ ROBERTO MARQUES, “Meio Ambiente Urbano”, p. 42/54, item n. 4. 2005,
Forense Universitária, v.g.).
Importante
assinalar, neste ponto, que a cláusula inscrita no inciso VII do § 1º do art.
225 da Constituição da República, além de veicular conteúdo impregnado de alto
significado ético-jurídico, justifica-se em função de sua própria razão de ser,
motivada pela necessidade de impedir a ocorrência de situações de risco que
ameacem ou que façam periclitar todas
as formas de vida, não só a do gênero humano, mas, também, a própria vida
animal, cuja integridade restaria comprometida por práticas aviltantes,
perversas e violentas contra os seres irracionais.
Resulta,
pois, da norma constitucional invocada como parâmetro de confronto (CF, art.
225, § 1º, VII), o sentido revelador
do vínculo que o constituinte quis estabelecer ao dispor que o respeito pela
fauna em geral atua como condição inafastável de subsistência e preservação do
meio ambiente em que vivem os próprios seres humanos.
Evidente,
desse modo, a íntima conexão que há entre o dever ético-jurídico de preservar a
fauna (e de não incidir em práticas de crueldade contra animais), de um lado, e
a própria subsistência do gênero humano em um meio ambiente ecologicamente
equilibrado, de outro.
Cabe
reconhecer, portanto, Senhor Presidente, o impacto altamente negativo que
representaria, para a incolumidade do patrimônio ambiental dos seres humanos, a
prática de comportamentos predatórios e lesivos à fauna, seja colocando em
risco a sua função ecológica, seja provocando a extinção de espécies, seja,
ainda, submetendo os animais a atos de crueldade.
(...)
Impende
assinalar que a proteção conferida aos animais pela parte final do art. 225, §
1º, inciso VII, da Constituição abrange, consoante bem ressaltou o eminente
Ministro CARLOS VELLOSO, em voto proferido, em sede cautelar, neste processo,
tanto os animais silvestres quanto os domésticos ou domesticados, nesta classe
incluídos os galos utilizados em rinhas, pois o texto constitucional, em
cláusula genérica, vedou qualquer forma de submissão de animais a atos de
crueldade.” (grifo nosso)
Ora, no referido caso levado à apreciação da Corte
Constitucional, a leitura feita do art. 225, § 1º, VII, da CF por seus
ministros é tão clara em favor da proteção do direito em jogo, que se faz
despiciendo tecer maiores considerações voltadas a seu patrocínio.
Conforme indicou o E. STF, comportamentos atentatórias
aos direitos dos animais, ainda que de lesividade mínima ou lastreados em
fundamentos estritamente antropocêntricos, não mais encontram complacência em
nossa res pública, porquanto a
natureza a ninguém pertence, é bem difuso, direito de todos, sendo defeso, por
conseguinte, o assenhoramento do destino desses seres vivos, independente do
embasamento invocado em sua defesa.
Assim, se o cerne da questão reside na possibilidade
de adequação do ato normativo impugnado ao desiderato constitucional protecionista,
a partir das considerações anteriormente esposadas, não pode ser patrocinado
outro entendimento, senão o de que o mesmo é incompatível com o texto
constitucional.
Verifica-se, na hipótese em análise, que ao revogar o
art. 2º da Lei nº 4.446/2010, ficou permitido, no Município de Barretos, a
realização de provas de laço e/ou vaquejada.
Segundo o conteúdo da enciclopédia livre Wikipédia:
“A
Vaquejada é uma atividade recreativa-competitiva com características de esporte
do Nordeste brasileiro, no qual dois vaqueiros a cavalo têm de alinhar o animal
(boi) até emparelhá-lo entre os cavalos e conduzi-lo ao objetivo (duas últimas
faixas de cal do parque de vaquejada), onde o animal deve ser derrubado. Muito
popular na segunda metade do século XX, passou a ser questionada a partir da
década de 2010 por ativistas dos direitos dos animais em virtude dos maus
tratos aos bois, que muitas vezes têm o rabo arrancado ou sofrem fraturas na
queda.” (Sítio eletrônico: https://pt.wikipedia.org/wiki/Vaquejada.
Consulta em 17/07/2015).
De outro lado, as provas de laço, conhecidas por team roping, cal roping, eu-down roaping,
laçada de bezerro e laço em dupla, são
aquelas nas quais ganha o participante que em menor tempo consiga laçar e
amarrar as patas do animal que, muitas vezes, conta poucos meses de vida,
suportando além de estresse, dor física, possibilidade de danos físico e até
morte.
A inovação no ordenamento jurídico do Município é absolutamente
dissonante do atual estágio constitucional de nossa república, demonstrando flagrante
retrocesso ao sistema de proteção determinado pela norma constitucional e que
havia sido observado pelo Município.
Importante ressaltar que a norma do art. 2º, da Lei nº
4.446/2010, decorreu da sensibilidade e convencimento dos legisladores
municipais acerca de questão debatida há muito tempo, desde 2003, entre o Ministério Público e organizadores da
famosa Festa do Peão no Município de Barretos (fls. 09/11, 18/20).
Se a jurisprudência remansosa do E. STF veda qualquer
conduta que ponha em risco, ainda que minimamente, a integridade física de
animais em território nacional, a exemplo do que ocorreu nos casos levados à
Suprema Corte relacionados a “rinhas de
galo” e “farra do boi”, é evidente
que permissivo legislativo direcionado a permitir determinadas provas de
rodeio, outrora proibidas para a tutela da saúde física e psíquica dos animais,
sem que houvesse um elemento justificador plausível, revela flagrante
retrocesso e inconstitucionalidade, por violação ao art. 193, X, da Constituição
Estadual.
A condenação dos atos cruéis não possui origem na necessidade do equilíbrio ambiental, mas sim no reconhecimento de que os animais são dotados de uma estrutura orgânica que lhes permite sofrer, sentir dor. Vale dizer, são seres sencientes. A rejeição a tais atos, aflora, na verdade, dos sentimentos de justiça, de compaixão, de piedade, que orientam o ser humano a repelir toda e qualquer forma de mal radical, evitável sem justificativa razoável.
A permissão à realização de provas de laço e/ou vaquejadas no Município de Barretos representa evidente violação ao princípio constitucional da PROIBIÇÃO DE RETROCESSO que, no dizer de Carlos Alberto Molinaro (Direito ambiental: proibição de retrocesso, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 100.), “é o sintagma proposicional de todos os demais princípios do direito ambiental”.
E não pode haver dúvida: é inconstitucional por violação também ao art. 193, da Constituição Estadual, que exige a criação de um sistema de proteção à fauna, nela compreendidos todos os animais silvestres, exóticos e domésticos, vedando práticas que os submetam à crueldade.
Já criado no Município, conhecido em todo o país, pela sua Festa do Peão de Boiadeiro, um sistema legal de proteção aos animais nele envolvidos, a revogação de normas de tutela dos animais, configura violação ao Princípio da Proibição de Retrocesso, brilhantemente exposto por Mário De Conto (“O princípio da proibição de retrocesso social: uma análise a partir dos pressupostos da hermenêutica filosófica”, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, pp. 146-147):
“A vinculação exercida pelo Princípio da Proibição de Retrocesso Social é
inerente a toda a atividade estatal. O Poder Legislativo, em decorrência da
idéia de uma Constituição Dirigente, tem consideravelmente diminuída sua
liberdade de conformação, que fica adstrito ao texto constitucional. O Poder
Executivo, igualmente, em face da postura intervencionista do Estado, do
respeito aos Direitos Fundamentais e da observância do Princípio Constitucional
da Dignidade da Pessoa Humana, tem sua conduta vinculada ao texto
constitucional. E, finalmente, ao Poder Judiciário cabe, nessa trilha, exercer
um intervencionismo substancialista, no sentido de que os Direitos Fundamentais
Sociais sejam realizados, procurando diminuir o déficit existente entre a
realidade social e as promessas da modernidade não cumpridas, declarando
inconstitucionais medidas estatais de cunho retrocessivo”.
Nem se pode cogitar competência privativa da União na
questão, que teria permitido irrestritamente a realização das provas
mencionadas através da Lei nº 10.519/2002, ao disciplinar a realização de
rodeios de animais vedando práticas impedindo maus tratos e injúrias de
qualquer ordem (art. 3º, II) e exigindo, ainda, que as cordas utilizadas nas
provas de laço deverão dispor de redutor de impacto para o animal (§ 3º, art.
4º). Assim, está claro que a Lei Federal não deixou de reconhecer a
potencialidade lesiva das provas de laço.
Se o Município através de lei buscou inicialmente uma
proteção mais integral aos animais utilizados no rodeio, não se pode admitir o
retrocesso.
Não existe competência concorrente exclusiva da União
e Estados para legislar sobre a fauna (art. 24, VI, da CF/88), pois fundados na
competência político administrativa comum de preservação da fauna e na
competência legislativa suplementar, os Municípios estão legitimados, atendendo
ao interesse local, a suplementar o regramento federal e estadual sobre a
matéria, conferindo proteção maior aos animais, especialmente o Município de Barretos
na disciplina da famosa Festa do Peão Boiadeiro.
Nesse sentido, já decidiu esse Colendo Órgão Especial,
verbis:
“ADIN- Inconstitucionalidade alegada pelo Prefeito do Município de Mauá quanto à Lei n° 3.967, de 24/04/06, que “Dispõe sobre a proibição de realização de rodeios, touradas e atividades similares no Município de Mauá que envolvem maus tratos e atos de crueldade em animais”- Inadmissibilidade- Competência suplementar conferida à Câmara de Vereadores para legislar sobre matéria de proteção à fauna e, ainda, de interesse local (...)- Ação julgada improcedente”. (ADI n° 138553-0/5; Des. Rel. Celso Limongi; D.J. 13/06/07). - g.n.
Não se questiona a finalidade protetiva do dispositivo
legal revogado, que se achava em conformidade com todo o sistema constitucional
voltado à proteção dos animais.
Ao Município compete dispor sobre os assuntos de seu
interesse local. Neles se insere inegavelmente a atividade de disciplinar a
Festa do Peão do Boaideiro, que tornou o Município conhecido em todo o país,
sobretudo porque é a Municipalidade quem diretamente suportaria o ônus de
eventuais críticas e consequências decorrentes de possíveis tragédias em provas
de rodeio inadequadas, que colocam em risco a saúde física e psíquica dos
animais.
De outro lado, embora não se negue a existência de Lei
Federal, que disciplina parcialmente a matéria, pois não cuida especificamente
das provas permitidas em rodeio, mas da promoção e da fiscalização da defesa
sanitária animal quando da realização de rodeio, a mesma não deixou de
considerar as provas de laço potencialmente lesivas e nem mesmo veda que outras
unidades da Federação estabeleçam um sistema de proteção mais amplo.
A propósito da matéria,
oportuno consignar que, quando do julgamento do Agravo Regimental no Recurso
Extraordinário nº 665.688
AGR / SC, Segunda
Turma, j. 02/12/2014, DJe 17/12/2014, o relator Ministro Celso de Melo
ressaltou que:
“(...)
Impende assinalar, por relevante, que o Supremo Tribunal Federal, corroborando a manifestação do Ministério Publico Federal, consagrou diretriz jurisprudencial que torna inacolhível a pretensão recursal ora deduzida (ADI 3.338/DF, Red. p/ o acórdão Min. EROS GRAU – RE 474.922-segundo-AgR/SC, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA, v.g.):
“AGRAVO
REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. 1.
COMPETÊNCIA CONCORRENTE PARA LEGISLAR SOBRE DIREITO AMBIENTAL. PRECEDENTES.
(…). 3. AGRAVO REGIMENTAL AO QUAL SE NEGA PROVIMENTO.” (AI 856.768-AgR/MG, Rel.
Min. CÁRMEN LÚCIA – grifei)
Cumpre destacar, por oportuno, ante a inquestionável procedência de suas observações, a seguinte passagem do voto do eminente Ministro AYRES BRITTO, proferido por ocasião do julgamento plenário da ADI 3.338/DF, no sentido de que: “(...) além de a Constituição conferir a competência material aos Estados e Municípios para ‘proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas’ (art. 23, VI), ela, Constituição Federal, também na matéria, confere a competência de ordem legislativa, expressamente, art. 24, inciso VI.” (grifei)
Essa mesma compreensão do tema é também perfilhada por autorizado
magistério doutrinário (JOSÉ AFONSO DA SILVA, “Direito Ambiental
Constitucional”, p. 81/82, item n. 14, 9ª ed., 2011, Malheiros; CELSO ANTONIO PACHECO
FIORILLO, “Curso de Direito Ambiental Brasileiro”, p. 219/220, item n. 4.2,
2012, Saraiva; PAULO AFFONSO LEME MACHADO, “Direito Ambiental Brasileiro”, p.
442/444, item n. 3, 2013, Malheiros), como se depreende da expressiva lição de PAULO
DE BESSA ANTUNES (“Direito Ambiental”, p. 110/111, item n. 2.3, 15ª ed., 2013, Atlas):
“O
artigo 30 da Constituição Federal atribui aos Municípios competência para
legislar sobre: assuntos de interesse local; suplementar a legislação federal e
estadual no que couber; promover, no que couber, adequado ordenamento
territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da
ocupação do solo urbano; promover a proteção do patrimônio histórico-cultural
local, observadas a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.
Parece
claro, na minha análise, que o meio ambiente está incluído no conjunto de
atribuições legislativas e administrativas municipais e, em realidade, os
Municípios formam um elo fundamental na complexa cadeia de proteção ambiental.
A importância dos Municípios é evidente por si mesma, pois as populações e as
autoridades locais reúnem amplas condições de bem conhecer os problemas e
mazelas ambientais de cada localidade, sendo certo que são as primeiras a
localizar e identificar o problema. É através dos Municípios que se pode
implementar o princípio ecológico de agir localmente, pensar globalmente. Na
verdade, entender que os Municípios não têm competência ambiental específica é
fazer uma interpretação puramente literal da Constituição Federal.”
O exame da presente causa evidencia que o acórdão
impugnado em sede recursal extraordinária ajusta-se à diretriz jurisprudencial
que esta Suprema Corte firmou na matéria em referência.”
Portanto,
a Lei impugnada na presente ação direta é inconstitucional por afrontar o
sistema de proteção animal determinado pelo art. 193, X, da Constituição
Estadual, e violar o princípio constitucional do não retrocesso em matéria
social e ambiental.
4. DOS PEDIDOS
a. Do
pedido de liminar
Estão presentes, na hipótese examinada, os pressupostos do fumus boni iuris e do periculum in mora, a justificar a
suspensão liminar da vigência e eficácia da lei impugnada.
A razoável fundamentação jurídica decorre dos motivos expostos, que
indicam, de forma clara, a inconstitucionalidade da lei impugnada.
O perigo da demora decorre especialmente da ideia de que, sem a imediata
suspensão da vigência e eficácia do preceito legal questionado, subsistirá a
sua aplicação com a possível realização das provas de laço e/ou vaquejadas, impondo
sofrimento físico e psíquicos aos animais empregados.
De resto, ainda que não houvesse essa singular situação de risco,
restaria, ao menos, a excepcional conveniência da medida.
Com efeito, no contexto das ações diretas e da outorga de provimentos cautelares
para defesa da Constituição, o juízo de conveniência é um critério relevante,
que vem condicionando os pronunciamentos do Supremo Tribunal Federal,
preordenados à suspensão liminar de leis aparentemente inconstitucionais (cf.
ADIN-MC 125, j. 15.2.90, DJU de 4.5.90, p. 3.693, rel. Min. Celso de Mello;
ADIN-MC 568, RTJ 138/64; ADIN-MC 493, RTJ 142/52; ADIN-MC 540, DJU de 25.9.92,
p. 16.182).
Diante do exposto, requer-se a concessão da liminar, para fins de suspensão
imediata da eficácia da Lei nº 5.056, de fevereiro de 2015, do Município de
Barretos.
b. Do pedido principal
Por todo o exposto, aguarda-se o recebimento e processamento da presente ação
declaratória, para que ao final seja julgada procedente com a declaração da
inconstitucionalidade da Lei nº 5.056, de fevereiro de 2015, do Município de
Barretos.
Requer-se, ainda, sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao
Prefeito Municipal, bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado
para se manifestar sobre o ato normativo impugnado.
Posteriormente, aguarda-se vista para fins de manifestação final.
Termos em que, pede
deferimento.
São Paulo, 17 de julho de 2015.
Márcio Fernando Elias Rosa
Procurador-Geral de
Justiça
aca
Protocolado nº 37.338/2015
Interessado: Promotoria de Justiça de Barretos
Objeto: representação para controle de constitucionalidade da
Lei nº 5.056, de fevereiro de 2015, do Município de Barretos que revoga o art.
2º da Lei nº 4.446, de 29 de novembro de 2.010.
1. Promova-se a distribuição de ação direta
de inconstitucionalidade, instruída com o protocolado incluso, em face da Lei
nº 5.056, de fevereiro de 2015, do Município de Barretos que revoga o art. 2º
da Lei nº 4.446, de 29 de novembro de 2.010.
2. Oficie-se a interessada, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.
São
Paulo, 17 de julho de 2015.
Márcio Fernando Elias Rosa
Procurador-Geral de
Justiça
aca