EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO E.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
Protocolado nº 19.427/15
Ementa:
Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei nº 4.189, de 15 de dezembro de 2014, do Município de Guarujá, de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre a criação da Campanha Educativa ‘Multa Moral’ nos estacionamentos públicos e privados no Município de Guarujá e dá outras providências”. Iniciativa reservada do Chefe do Poder Executivo. Reserva da Administração. Princípio da Separação de Poderes. A instituição de programas, campanhas e serviços administrativos, a serem executados por órgãos do Poder Executivo, por meio de lei de iniciativa parlamentar é incompatível com a reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo e, ainda, invade matéria inserida na reserva da Administração. Ofensa ao princípio da separação de poderes. Violação aos artigos 5º, 24, § 2º, 2, 47, II, XIV e XIX, a, da Carta Paulista.
O Procurador-Geral de Justiça do Estado de
São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, inciso VI, da
Lei Complementar Estadual nº 734, de 26 de novembro de 1993, e em conformidade
com o disposto no art. 125, § 2º, e no art. 129, inciso IV, da Constituição da
República, e ainda no art. 74, inciso VI, e no art. 90, inciso III, da
Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no
incluso protocolado (PGJ nº 19.427/15, que segue anexo), vem perante esse
Egrégio Tribunal de Justiça promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE
em face da Lei n° 4.189, de 15 de dezembro de 2014, do Município de Guarujá, pelos fundamentos expostos a seguir:
I – DO ATO NORMATIVO
IMPUGNADO
O protocolado que instrui esta inicial de ação direta de inconstitucionalidade foi instaurado a partir de representação encaminhada por cidadão, na qual foi indicada a inconstitucionalidade da lei municipal acima referida.
A Lei n° 4.189, de 15 de dezembro de
2014, do Município de Guarujá, de iniciativa parlamentar,
possui a seguinte redação (fls. 06):
“Art. 1°. Fica criada a campanha “MULTA MORAL” de educação no trânsito, visando o respeito às vagas de estacionamento público reservadas a idosos, portadores de necessidades especiais e gestantes.
§ 1°. A campanha terá caráter permanente e consistirá na distribuição de folhetos informativos e educativos acerca dos direitos das pessoas às vagas especiais em áreas de estacionamento público e privado.
§ 2°. Os folhetos poderão ser confeccionados pela iniciativa privada em parceria com Órgão Executivo de Trânsito do Município, mediante modelo aprovado por este, podendo conter espaço para publicidade.
§ 3°. A distribuição dos folhetos será efetuada pelo Poder Público ou pela iniciativa privada ou ainda pelos idosos, portadores de necessidades especiais e gestantes que se sentirem lesados.
§ 4°. Os folhetos serão entregues em áreas de estacionamento público e privado, em especial:
I-
Em estabelecimentos industriais, comerciais e de
serviços;
II-
Em eventos públicos;
III-
Em estabelecimentos escolares;
IV-
Em igrejas e templos religiosos.
Art. 2º. Os veículos estacionados nas vagas especiais devem manter visíveis as credenciais fornecidas pelo Órgão Executivo de Trânsito do Município de Guarujá, referentes aos idosos e portadores de necessidades especiais.
Art. 3º. Os responsáveis pelos estacionamentos devem manter a sinalização referente à reserva de vagas visível e em perfeito estado de conservação.
Art. 4°. O Poder Público colocará instruções detalhadas de uso no próprio local com linguagem apropriada, clara e precisa para os usuários.
Art. 5°. A implantação ou alteração da sinalização referente à reserva das vagas especiais deverá ser submetida à análise e aprovação do Órgão Executivo de Trânsito do Município de Guarujá.
Art. 6°. As despesas com a execução da presente Lei correrão por conta de dotação orçamentária própria.
Art. 7°. Esta Lei deverá ser regulamentada pelo Poder Executivo.
Art. 8°. Esta Lei entrará em vigor na data da sua publicação, revogadas as disposições contrárias.”
II – DO PARÂMETRO DE FISCALIZAÇÃO ABSTRATA
DE CONSTITUCIONALIDADE
O dispositivo normativo impugnado, ao criar campanha pública de educação no trânsito, a ser executada por órgãos do Poder Executivo, é verticalmente incompatível com nosso ordenamento constitucional, por violar o princípio da separação de poderes, do qual decorrem as regras previstas nos arts. 5º, 24, § 2º, 2 e 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios, por força do art. 144, da Carta Paulista, os quais dispõem o seguinte, in verbis:
“(...)
Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
(...)
Art. 24 - A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou comissão da Assembleia Legislativa, ao Governador do Estado, ao Tribunal de Justiça, ao Procurador-Geral de Justiça e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.
(...)
§ 2º - Compete, exclusivamente, ao Governador do Estado a iniciativa das leis que disponham sobre:
(...)
2 - criação e extinção das Secretarias de Estado e órgãos da administração pública, observado o disposto no artigo 47, XIX;
(...)
Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:
(...)
II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;
(...)
XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;
(...)
XIX - dispor, mediante decreto, sobre:
a) organização e funcionamento da administração estadual, quando não implicar em aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos;
(...)
Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”
Inicialmente, importante ressaltar que “as regras do processo legislativo federal, especialmente as que dizem respeito à iniciativa reservada, são normas de observância obrigatória pelos Estados-membros” (STF, ADI 2.719-1-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 20-03-2003, v.u.).
Como desdobramento do princípio da separação dos
poderes (art. 5º, da Constituição Estadual), a Constituição do Estado de São
Paulo prevê, no seu art. 24, § 2º, 2, iniciativa legislativa reservada do Chefe
do Poder Executivo (aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144)
para “a criação e extinção das Secretarias
de Estado e órgãos da administração pública, observado o disposto no art. 47,
XIX”, o que compreende a fixação ou alteração das atribuições dos órgãos da
Administração Pública direta.
A Constituição Bandeirante também prevê, em seu art. 47 (aplicável na órbita municipal por obra do art. 144), competências administrativas privativas do Chefe do Poder Executivo. O dispositivo consagra a atribuição de governo do Chefe do Poder Executivo, traçando suas competências próprias de administração e gestão, que compõem a denominada reserva da Administração, pois veiculam matérias de sua alçada exclusiva, imunes à interferência do Poder Legislativo.
A alínea a, do
inciso XIX, do art. 47 fornece ao Chefe do Poder Executivo a prerrogativa de
dispor mediante decreto sobre “organização
e funcionamento da administração estadual, quando não implicar aumento de
despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos”, em preceito
semelhante ao art. 84, VI, a, da
Constituição Federal.
Por sua vez, os incisos II e XIV, do art. 47, da Carta Paulista estabelecem competir ao Chefe do Poder Executivo o exercício da direção superior da administração e a prática dos demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo.
A inconstitucionalidade transparece exatamente pelo
divórcio da iniciativa parlamentar da lei local impugnada com esses preceitos
da Constituição Estadual, conforme será acima exposto.
III – DO VÍCIO DE INICIATIVA LEGISLTIVA E
DA USURPAÇÃO DA RESERVA DA ADMINISTRAÇÃO
A lei impugnada, ao criar campanha pública de
trânsito, diz respeito
à direção da administração, à organização e ao funcionamento do Poder
Executivo, matéria essa que é da alçada da denominada reserva da Administração,
em afronta ao art. 47, II, XIV e XIX, a,
da Carta Paulista.
Com efeito, as eventuais atividades que possam ser realizadas pelo Município, a fim de propiciar a educação no trânsito, estão exclusivamente relacionadas à Administração Pública, a cargo do Chefe do Executivo e seus Secretários.
Trata-se de atividade
nitidamente administrativa, representativa de atos de gestão, de escolha
política para a satisfação das necessidades essenciais coletivas, vinculadas
aos direitos fundamentais. Assim, privativa do Poder Executivo e inserida na esfera do poder discricionário da
administração.
Não se trata, evidentemente, de
atividade sujeita à disciplina legislativa. Assim, o Poder Legislativo não pode
através de lei ocupar-se da administração, sob pena de se permitir que o
legislador administre invadindo área privativa do Poder Executivo.
Quando o Poder Legislativo local edita lei disciplinando atuação administrativa, como ocorre, no caso em exame, em função da instituição de campanha a ser desenvolvida pelo Poder Executivo, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do Administrador Público, violando o princípio da separação de poderes.
Cabe essencialmente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito da conveniência e oportunidade da realização de programas e campanhas públicas. Trata-se de atuação administrativa fundada em escolha política de gestão, na qual é vedada intromissão de qualquer outro poder.
É
pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe
primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento,
organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De
outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar
leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.
Cumpre
recordar o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a
Câmara não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo
pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a
harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º)
extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara,
realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza,
ademais, que “todo ato do Prefeito que
infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que
invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por
ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art.
2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed.,
atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo,
Malheiros, 2006, p. 708 e 712).
Neste sentido, entendeu este
Colendo Órgão Especial e o E. STF, em casos análogos a este:
“AÇÃO DIRETA DE
INCONSTITUCIONALIDADE - Cuida-se de ação direta de inconstitucionalidade
ajuizada pela Douta e Nobre Prefeita do Município de Guarujá/SP, visando à
declaração de inconstitucionalidade da Lei Municipal n° 3.703, de 28 de
novembro de 2008, que dispõe sobre o funcionamento de creches no horário
noturno e adota outras providências - INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL - Matéria de
competência privativa do Chefe do Poder Executivo local - Presença de vício de
inconstitucionalidade formal na produção da norma impugnada. AÇÃO DIRETA DE
INCONSTITUCIONALIDADE PROCEDENTE” (ADI 0151911-11.2013.8.26.0000, Rel. Des.
Roberto Mac Cracken, v.u., 27-11-2013).
“Ação direta
de inconstitucionalidade - Ajuizamento pelo Prefeito de São José do Rio Preto -
Lei Municipal n° 10.241/08 cria o serviço de fisioterapia e terapia ocupacional
nas unidades básicas de saúde e determina que as despesas decorrentes 'correrão
por conta das dotações orçamentárias próprias, suplementadas se necessário' -
Matéria afeta à administração pública, cuja gestão é de competência do Prefeito
- Vício de iniciativa configurado - Criação, ademais, de despesas sem a devida
previsão de recursos - Inadmissibilidade - Violação dos artigos 5° e 25, ambos
da Constituição Estadual - Inconstitucionalidade da lei configurada - Ação
procedente” (ADI 172.331-0/1-00, Órgão Especial, Rel. Des. Walter de Almeida
Guilherme, v.u., 22-04-2009).
“RESERVA DE ADMINISTRAÇÃO E SEPARAÇÃO
DE PODERES. - O princípio constitucional da reserva de administração impede a
ingerência normativa do Poder Legislativo em matérias sujeitas à exclusiva
competência administrativa do Poder Executivo. É que, em tais matérias, o
Legislativo não se qualifica como instância de revisão dos atos administrativos
emanados do Poder Executivo. Precedentes. Não cabe, desse modo, ao Poder
Legislativo, sob pena de grave desrespeito ao postulado da separação de
poderes, desconstituir, por lei, atos de caráter administrativo que tenham sido
editados pelo Poder Executivo, no estrito desempenho de suas privativas
atribuições institucionais. Essa prática legislativa, quando efetivada,
subverte a função primária da lei, transgride o princípio da divisão funcional
do poder, representa comportamento heterodoxo da instituição parlamentar e
importa em atuação ultra vires do Poder Legislativo, que não pode, em sua
atuação político-jurídica, exorbitar dos limites que definem o exercício de
suas prerrogativas institucionais” (STF, ADI-MC 2.364-AL, Tribunal Pleno, Rel. Min.
Celso de Mello, 01-08-2001, DJ 14-12-2001, p. 23).
Deste
modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando
leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a
harmonia e independência que devem existir entre os poderes estatais.
Ainda
que se imaginasse que haveria necessidade de disciplinar por lei alguma matéria
típica de gestão municipal, a iniciativa seria privativa do Chefe do Poder
Executivo, mesmo quando ele não possa discipliná-la por decreto, nos termos do
art. 47, XIX, da Constituição Estadual.
Em
suma, a Lei impugnada, ao fixar obrigações ao Poder Executivo, de um lado,
viola o art. 47, II e XIV, no estabelecimento de regras que respeitam a direção
da administração, a organização e o funcionamento do Poder Executivo, matéria
essa que é da alçada da reserva da Administração, e de outro, ofende o art. 24,
§ 2º, 2, na medida em que impõe atribuição ao Poder Executivo.
IV - DO PEDIDO
Posto
isso, aguarda-se o recebimento e processamento da presente ação declaratória,
para que, ao final, seja julgada procedente, reconhecendo-se a
inconstitucionalidade da Lei n° 4.189, de 15 de dezembro de 2014, do
Município de Guarujá.
Requer-se, ainda, sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Prefeito Municipal de Guarujá, bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para manifestar-se sobre o ato normativo impugnado.
Após,
pugna-se por nova vista para manifestação final.
Termos
em que,
Aguarda-se
deferimento.
São Paulo, 21 de agosto de
2015.
Márcio Fernando Elias Rosa
Procurador-Geral de Justiça
ms/ts
Protocolado nº
19.427/15
Interessado: Paulo Cezar da Silva Moura
Assunto: Inconstitucionalidade da Lei n° 4.189, de 15 de
dezembro de 2014, do Município de Guarujá.
1. Distribua-se a inicial da ação direta de inconstitucionalidade em face da Lei n° 4.189, de 15 de dezembro de 2014, do Município de Guarujá, junto ao E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
2. Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.
São Paulo, 21 de agosto de
2015.
Márcio Fernando Elias Rosa
Procurador-Geral de Justiça
ms/ts