EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO E. TRIBUNAL DE
JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
Protocolado nº
117.301/2015
Ementa:
1)
Ação direta de inconstitucionalidade. Expressão
“públicos ou” do art. 1º da Lei nº 714, de 10 de outubro de 2011, do Município
de Estiva Gerbi, de iniciativa parlamentar, que “OBRIGA A AFIXAÇÃO DE AVISOS SOBRE O SEGURO CONTRA DANOS PESSOAIS
CAUSADOS POR VEÍCULOS AUTOMOTORES DE VIA TERRESTRE (DPVAT) EM ÁREAS DE PRONTO
ATENDIMENTO”.
2) Obrigatoriedade imposta a clínicas, hospitais e consultórios médicos públicos. Violação dos arts. 5º, 24, § 2º, 2 e 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista. Encontra-se na reserva da Administração e na iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo a organização e regulamentação dos serviços públicos, sendo ainda inconstitucional a lei de iniciativa parlamentar pela ausência de fonte para cobertura dos custos decorrentes das medidas exigidas (art. 25 da Constituição Estadual).
O Procurador-Geral
de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no
art. 116, inciso VI, da Lei Complementar Estadual nº 734 de 26 de novembro de
1993, e em conformidade com o disposto no art. 125, § 2º, e no art. 129, inciso
IV, da Constituição da República, e ainda no art. 74, inciso VI, e no art. 90,
inciso III, da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações
colhidas no incluso protocolado (PGJ nº 117.301/2015), que segue como anexo),
vem perante esse Egrégio Tribunal de Justiça promover a presente AÇÃO DIRETA
DE INCONSTITUCIONALIDADE da expressão “públicos ou” do art. 1º da
Lei nº 714, de 10 de outubro de 2011, do Município de Estiva Gerbi, pelos
seguintes fundamentos:
1. ATO NORMATIVO IMPUGNADO
O
protocolado que instrui esta inicial de ação direta de inconstitucionalidade
foi instaurado a partir de representação do cidadão Juvenal Alves Corrêa Neto
(fls. 02/13).
A
Lei nº 714, de 10 de outubro de 2011, do Município de Estiva Gerbi, de
iniciativa parlamentar, que “OBRIGA A
AFIXAÇÃO DE AVISOS SOBRE O SEGURO CONTRA DANOS PESSOAIS CAUSADOS POR VEÍCULOS
AUTOMOTORES DE VIA TERRESTRE (DPVAT) EM ÁREAS DE PRONTO ATENDIMENTO”, foi promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal de Estiva
Gerbi, possui a seguinte redação:
“(...)
Art. 1° - Ficam as clínicas, hospitais e consultórios médicos, públicos ou particulares, que atuam na modalidade pronto atendimento, obrigados a afixar, em local visível e de fácil acesso aos transeuntes, cartaz contendo os seguintes dizeres em letras destacadas: ‘VÍTIMA DE ACIDENTES TEM DIREITO À INDENIZAÇÃO (PROCURE O SEGURO DPVAT)’.
Parágrafo único – Os dizeres especificados no caput serão seguidos dos seguintes comentários e informações, em letras menores, mas legíveis:
‘Um acidente causa transtorno e dor, mas até nesse instante o
cidadão atingido e seus familiares devem estar conscientes dos seus
direitos. Você pode ter direito a
uma indenização, o Seguro DPVAT, contra Danos Pessoais Causados por Veículos
Automotores de Via Terrestre. Tanto o passageiro quanto o pedestre tem direito
à indenização, tendo culpa ou não pelo acidente de trânsito.
As indenizações são pagas individualmente, não importando quantas
vítimas estejam envolvidas. O DPVAT prevê as seguintes indenizações: por Morte
R$ 13.500,00; por Invalidez permanente R$ 13.500,00; para Assistência Médica e
Despesas Suplementares R$ 2.700,00. Atenção: O Seguro DPVAT não cobre danos
materiais nem acidentes ocorridos fora do país. DOCUMENTOS:
Em caso de morte, é preciso apresentar atestado de óbito, constando
explicitamente que a morte foi causada pelo acidente. Em caso de ferimento, é
preciso fazer o boletim de ocorrência (B.O.) do acidente e apresentar notas
fiscais dos gastos com atendimento médico-hospitalar. Não há necessidade de
intermediário: o interessado pode ir diretamente a uma seguradora. A entidade responsável
pela emissão e recebimento do DPVAT é a FENASEG – Federação Nacional das
Empresas de Seguros Privados e de Capitalização.
Informações pelo site (endereço eletrônico na internet):
http://www.depvatseguro.com.br ou pelo telefone: 0880-221204.’
Art. 2º - Os valores constantes do cartaz referido no art. 1º deverão ser atualizados sempre que a legislação o fizer.
Art. 3° - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
(...)” (g.n.)
A expressão “públicos ou”
presente no art. 1º da lei é verticalmente incompatível com nosso ordenamento
constitucional, como será demonstrado a seguir.
2. FUNDAMENTAÇÃO
A obrigatoriedade de afixação de cartaz, contendo
informações sobre os procedimentos a serem adotados pelos familiares ou
responsáveis nos casos de ocorrência de óbito de pacientes, em clínicas,
hospitais e consultórios médicos públicos do Município é
inconstitucional por violar o princípio federativo e o da separação de poderes,
previstos nos arts. 5º e 47, II, XIV e XIX, a,
da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da
Carta Paulista.
A matéria disciplinada pela lei
encontra-se no âmbito da atividade administrativa do Município, Estado ou
União, na hipótese de se tratar de instituição pública, cuja organização,
funcionamento e direção superior cabe ao Prefeito Municipal, Governador ou
Presidente da República, com auxílio dos Ministros de Estado, Secretários
Estaduais ou Municipais.
As informações ao público do procedimento a ser adotado nos casos de óbito, instituída pelo dispositivo legal mencionado, é matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do Chefe do Poder Executivo.
Trata-se de atividade
nitidamente administrativa, representativa de atos de gestão, de escolha
política para a satisfação das necessidades essenciais coletivas, vinculadas
aos direitos fundamentais. Assim, privativa do Poder Executivo e inserida na esfera do poder discricionário da
administração.
Não se trata, evidentemente, de
atividade sujeita a disciplina legislativa. Assim, o Poder Legislativo não pode
através de lei ocupar-se da administração, sob pena de se permitir que o
legislador administre invadindo área privativa do Poder Executivo.
Quando o Poder Legislativo do Município edita lei disciplinando atuação administrativa, como ocorre, no caso em exame, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do Administrador Público, violando o princípio da separação de poderes.
Cabe essencialmente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito da conveniência e oportunidade de veicular informação ao público acerca de procedimentos a serem adotados em casos de óbito. Trata-se de atuação administrativa que fundada em escolha política de gestão, na qual é vedada intromissão de qualquer outro poder.
Assim, a expressão “públicos ou” presente no dispositivo legal impugnado, é verticalmente incompatível com nosso ordenamento constitucional por conter vício de iniciativa e por violar o princípio da separação de poderes, previsto nos arts. 5º, 47, II, XIV e XIX da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista, os quais dispõem o seguinte:
“Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos
entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
(...)
Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de
outras atribuições previstas nesta Constituição:
(...)
II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a
direção superior da administração estadual;
(...)
XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites
da competência do Executivo;
(...)
XIX - dispor, mediante decreto, sobre:
a) organização e funcionamento da administração estadual,
quando não implicar em aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos
públicos;
b) extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos.
(...)
Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política,
legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica,
atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta
Constituição.”
É
pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe
primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento,
organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De
outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar
leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.
Cumpre
recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a
Câmara não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo
pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a
harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º)
extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara,
realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza,
ademais, que “todo ato do Prefeito que
infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que
invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por
ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF,
art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed.,
atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo,
Malheiros, 2006, p. 708 e 712).
Deste
modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando
leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a
harmonia e a independência que deve existir entre os poderes estatais.
A
matéria tratada na lei encontra-se na órbita da chamada reserva da Administração, que reúne as competências próprias de
administração e gestão, imunes a interferência de outro poder (art. 47, II e
IX, da Constituição Estadual - aplicável na órbita municipal por obra de seu
art. 144), pois privativas do Chefe do Poder Executivo.
Ainda
que se imagine que houvesse necessidade de disciplinar por lei alguma matéria
típica de gestão municipal, a iniciativa seria privativa do Chefe do Poder
Executivo, mesmo quando ele não possa discipliná-la por decreto nos termos do
art. 47, XIX, da Constituição Estadual.
Assim,
a lei, ao impor a clínicas, hospitais e consultórios médicos públicos
obrigatoriedade de fixação de cartazes informativos, de um lado, viola o art.
47, II e XIV, no estabelecimento de regras que respeitam à direção da
administração e à organização e ao funcionamento do Poder Executivo, matéria
essa que é da alçada da reserva da Administração, e de outro, ela ofende o art.
24, § 2º, 2, na medida em que impõe atribuição ao Poder Executivo.
De outro lado, e não menos importante, a lei impugnada ao prever no parágrafo único do art. 1º que os cartazes serão confeccionados e distribuídos pela Secretaria Municipal de Saúde, cria, evidentemente, novas despesas por parte do Município, do Estado ou da União, sem que tenha havido a indicação das fontes específicas de receita para tanto e a inclusão do programa na lei orçamentária anual.
A norma combatida ao impor ao Município a confecção e distribuição dos cartazes não indicou especificamente os recursos orçamentários necessários para a cobertura dos gastos advindos que, no caso, são evidentes porquanto ordenam atividades novas na Administração Pública, cuja produção, distribuição e instalação demandam meios financeiros que não foram previstos, não servindo a tanto a genérica menção a dotações orçamentárias próprias de determinada secretaria.
Isso implica contrariedade ao disposto no art. 25 e 176, I, da Constituição do Estado de São Paulo.
3. DO PEDIDO
Diante de
todo o exposto, aguarda-se o recebimento e processamento da presente ação
declaratória, para que ao final seja ela julgada procedente, reconhecendo-se a
inconstitucionalidade da expressão “públicos ou” do art. 1º da Lei nº
714, de 10 de outubro de 2011, do Município de Estiva Gerbi.
Requer-se
ainda que sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Senhor
Prefeito Municipal de Estiva Gerbi, bem como posteriormente citado o
Procurador-Geral do Estado para manifestar-se sobre o dispositivo normativo
impugnado.
Posteriormente,
aguarda-se vista para fins de manifestação final.
Termos em
que,
Aguarda-se
deferimento.
São Paulo, 10 de setembro de 2015.
Márcio Fernando Elias Rosa
Procurador-Geral de Justiça
iccb/dcm
Protocolado nº
117.301/2015
Assunto: Análise de Ação de Inconstitucionalidade, em face da Lei Nº 714, de 10 de outubro e 2011.
1. Distribua-se a inicial da ação direta de inconstitucionalidade.
2. Comunique-se a propositura da ação ao interessado.
3. Arquive-se no que se refere à obrigação imposta às clínicas, hospitais e consultórios médicos particulares, pois, nesses casos, a lei não tratou de nenhuma matéria cuja iniciativa legislativa seja reservada ao Chefe do Poder Executivo, e tampouco houve violação ao princípio da separação de poderes por invasão da esfera da gestão administrativa.
A matéria sujeita à iniciativa reservada do Chefe do Poder Executivo, por ser direito estrito, deve ser interpretada restritivamente. Nesse sentido é o entendimento pacífico do Colendo STF, ao interpretar o art. 61, § 1º, da CR/88.
As matérias em que há iniciativa legislativa reservada ao Chefe do Poder Executivo, em conformidade com a Constituição do Estado de São Paulo, são indicadas taxativamente: (a) criação e extinção de cargos e funções na administração direta ou indireta autárquica, bem como a fixação da respectiva remuneração; (b) criação de órgãos públicos; (c) organização da Procuradoria-Geral do Estado e da Defensoria Pública; (d) servidores públicos e seu regime jurídico; (e) regime jurídico dos servidores militares; (e) criação, alteração e supressão de cartórios.
Isso decorre do art. 24, § 2º, ns. 1, 2, 3, 4, 5, 6, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da própria Carta Estadual (configurando reprodução das diretrizes contidas no art. 61, § 1º, da CR/88).
A leitura da
lei impugnada permite ver claramente que ela
não trata de nenhum desses assuntos.
Trata-se de questão atinente às posturas municipais, consistente na imposição de obrigação positiva a estabelecimentos dotados de acesso livre ao público em prol dos consumidores dos serviços de saúde privada.
Não há, nas hipóteses apontadas, qualquer vestígio nem mesmo tênue de desrespeito ao princípio da separação de poderes, estabelecido no art. 5º da Constituição do Estado (que reproduz o art. 2º da Constituição Federal).
Seria possível afirmar a ocorrência de quebra da separação de poderes, caso a lei interferisse diretamente na gestão administrativa.
Em síntese: só é possível identificar a ocorrência da quebra do princípio da separação de poderes quando da lei resulta interferência direta por parte do legislador na atividade do administrador.
A lei impugnada não coacta a atuação administrativa, ao contrário, disciplina aspecto da prestação de serviço pelos hospitais e clínicas privadas no interesse dos consumidores.
Trata-se de iniciativa exercida dentro do escopo de aprimorar as condições de prestação de serviços aos munícipes. Esse aprimoramento das condições de atendimento por parte dos hospitais e clínicas privadas revela interesse local. Pode, portanto, ser objeto de lei municipal cuja iniciativa não é exclusiva do Poder Executivo.
Em suma, a lei impugnada não cria diretamente cargos, órgãos, ou encargos para a administração pública, nem regula diretamente a prestação de serviços pelo Poder Público, e tampouco gera diretamente qualquer despesa para a administração pública.
4. Cumpra-se.
São Paulo, 10 de setembro de 2015.
Márcio Fernando Elias Rosa
Procurador-Geral de Justiça
iccb/dcm