EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR
PRESIDENTE DO E. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
Protocolado nº 53.489/15
Ementa: CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO.
AÇÃO DIRETA INCONSTITUCIONALIDADE. LEI N. 3.555, DE 03 de agosto de 2004, DO
MUNICÍPIO DE caieiras. concessão DE USO DE BEM IMÓVEL PARA DESTINATÁRIO
ESPECÍFICO. VIOLAÇÃO À REGRA DA LICITAÇÃO. OFENSA AOS PRINCÍPIOS DA MORALIDADE,
IMPESSOALIDADE E IGUALDADE. 1. Lei que cria exceção à regra da
licitação ao favorecer particular como concessionário de uso de bem público que
não se investiu nessa qualidade a partir de processo seletivo objetivo, público
e imparcial. 2. Violação aos princípios da
impessoalidade, igualdade e moralidade na medida em que indicou o beneficiário
específico do ato de concessão de uso do bem público imóvel. 3. Constituição Estadual: artigos 111, 117
e 144.
O Procurador-Geral
de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no
art. 116, inciso VI, da Lei Complementar Estadual nº
734, de 26 de novembro de 1993, e em conformidade com o disposto no art. 125, §
2º, e art. 129, inciso IV, da Constituição da República, e ainda art. 74,
inciso VI, e art. 90, inciso III da Constituição do Estado de São Paulo, com
amparo nas informações colhidas no incluso protocolado (PGJ nº 53.489/2015, que
segue como anexo), vem perante esse Egrégio Tribunal de Justiça promover a
presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE em face da Lei
n. 3.555, de 03 de agosto de 2004, do Município de Caieiras, pelos
fundamentos expostos a seguir.
I - DO ATO NORMATIVO
IMPUGNADO
O
objeto da presente ação direta de inconstitucionalidade é a Lei n. 3.555,
de 03 de agosto de 2004, do Município de Caieiras, que tem a seguinte redação:
ARTIGO 1º - Fica o Poder Executivo autorizado a ceder a SOCIEDADE ESPORTIVA
LARANJEIRAS – S.E.L., a título de Concessão de Direito Real de Uso,
gratuitamente, para regularização da Permissão de Uso efetuada através do
Decreto nº 4.510, de 21 de Março de 2.000, nos termo do Processo nº 12553/2004,
um imóvel de propriedade do Município com área de 7.241,69 m², descrita no
Artigo 3º desta Lei.
ARTIGO 2º - A SOCIEDADE ESPORTIVA
LARANJEIRAS – S.E.L., encontra-se devidamente constituída na
forma de seus Estatutos Sociais.
ARTIGO 3º - O imóvel a ser cedido tem a
seguinte característica conforme Memorial Descritivo elaborado pela Secretaria
Municipal de Obras, Projetos e Planejamento, que fica fazendo parte integrante
desta Lei:
SITUAÇÃO: Localiza-se no prolongamento da
Rua Odécio Gardim,
Laranjeiras, Município de Caieiras, Comarca de Franco da Rocha, Estado de São
Paulo.
ÁREA: 7.241,69 m²
PROPRIETÁRIO: PREFEITURA DO MUNICÍPIO DE
CAIEIRAS
DIVISAS E CONFRONTAÇÕES: Com frente
para o prolongamento da Rua Odécio Gardim onde mede 13,98 metros, deflete à direita e mede
mais 15,34 metros, do lado direito de quem do referido prolongamento da Rua Odécio Gardim olha o imóvel mede
58,13 metros, confrontando com o remanescente da área; deflete à esquerda e
mede mais 21,06 metros com rumo de 10º28’43sw, confrontando com o loteamento
Vila Angélica, do lado esquerdo mede 60,17 metros confrontando com a área B,
deflete à direita e mede mais 80,29 metros confrontando com a Área de Uso
Institucional, nos fundos mede 24,93 metros, deflete à direita e mede mais
95,79 metros, confrontando em ambos os segmentos de reta com a área II,
perfazendo uma área total de 7.241,60 m².
ARTIGO 4º - A Concessão de que trata o Artigo
1º será pelo prazo de 30 (trinta) anos, podendo ser prorrogada por iguais
períodos permanecendo o interesse público, e regulamentada através de Contrato,
conforme minuta em anexo, que faz parte integrante do presente, em cumprimento
ao que dispõe a Lei Municipal nº 3.173, de 13 de Dezembro de 2.001, ficando,
entretanto, a entidade dispensada do cumprimento dos prazos nela previstos em
razão das benfeitorias já realizadas no local.
ARTIGO 5º - Findo o prazo de concessão em não
havendo prorrogação ou havendo resolução contratual, todas e quaisquer
benfeitorias já existentes ou que forem realizadas no imóvel descrito no Artigo
3º passarão a pertencer ao Patrimônio Público Municipal, sem que caiba à SOCIEDADE
ESPORTIVA LARANJEIRAS – S.E.L., direito a qualquer indenização ou
retenção.
ARTIGO 6º
- O imóvel descrito e
caracterizada no Artigo 3º fica desafetado de sua destinação original
passando a categoria de bem patrimonial disponível.
ARTIGO 7º - Esta Lei entra em vigor na data
de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.
Integra a lei o Termo de Contrato nº 167/2004, cujo texto consta de fls.
16/19 do anexo protocolado.
Entretanto, trata-se
de diploma normativo verticalmente incompatível com nossa sistemática
constitucional.
II – DO
PARÂMETRO DA FISCALIZAÇÃO ABSTRATA DE CONSTITUCIONALIDADE
A Lei Municipal n.
3.555/2004 contraria frontalmente a Constituição do Estado de São Paulo, à qual
está subordinada a produção normativa municipal, ante a previsão dos arts. 1º, 18, 29 e 31, da Constituição Federal.
Os dispositivos
legais mencionados são incompatíveis com os seguintes preceitos da Constituição
Estadual, aplicáveis aos Municípios por força de seu art. 144:
Art. 111 - A administração pública direta, indireta ou fundacional,
de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade,
impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação,
interesse público e eficiência.
(...)
Art. 117 - Ressalvados os casos
especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão
contratados mediante processo de licitação pública, que assegure igualdade de
condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de
pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o
qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das
obrigações.
(...)
Art. 144 – Os Municípios, com autonomia
política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão
por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal
e nesta Constituição”.
(...)
Note-se
que o art. 144 da Constituição Estadual, que determina a observância na
esfera municipal, além das regras da Constituição Estadual, dos princípios da
Constituição Federal, é denominado “norma estadual de caráter remissivo, na
medida em que, para a disciplina dos limites da autonomia municipal, remete
para as disposições constantes da Constituição Federal”, como averbou o Supremo
Tribunal Federal ao credenciar o controle concentrado de constitucionalidade de
lei municipal por esse ângulo (STF, Rcl 10.406-GO,
Rel. Min. Gilmar Mendes, 31-08-2010, DJe
06-09-2010; STF, Rcl 10.500-SP, Rel. Min. Celso de
Mello, 18-10-2010, DJe 26-10-2010).
III – DA VIOLAÇÃO À
REGRA DA LICITAÇÃO
Como
se sabe, o art. 117 da Constituição Estadual (que reproduz o art. 37, XXI da
Constituição Federal), estabelece como regra geral a exigência de licitação
para que o poder público contrate com particulares.
A
exigência de procedimento licitatório para a contratação pela Administração
Pública é verdadeiro princípio constitucional estabelecido, que deve,
obrigatoriamente, ser seguido pelos Estados e Municípios.
Tanto
assim que o artigo 175 da Constituição Federal, ao tratar especificamente da
permissão de serviços públicos, previu expressamente a necessidade de licitação.
Por
outro lado, é necessário lembrar que é da competência do legislador federal
estabelecer normas gerais a respeito de licitação (art. 22, XXVII da
Constituição Federal), competência esta efetivamente exercida com a edição da
Lei nº 8.666/93, que prevê a obrigatoriedade de licitação (art. 2º),
estabelecendo casos de dispensa e inexigibilidade.
As
hipóteses de dispensa e inexigibilidade de licitação, como é
cediço, estão previstas nos arts. 24 e 25 da
Lei nº 8.666/93, e, quando presentes, exigem a justificação formal, em processo
administrativo, nos termos do art. 26 da referida lei, a partir de hipóteses de
dispensa ou inexigibilidade previstas na própria Lei de Licitações.
Com
relação à hipótese de permissão de uso de bens imóveis, a Lei nº 8.666/93
prevê, especificamente, que a dispensa de licitação apenas poderá ocorrer em
situações específicas previstas no art. 17, I, “f”, no que diz respeito ao uso
de imóveis do poder público por particulares.
Acrescente-se,
ademais, que ao tratar da exigência de procedimento licitatório, a Lei nº
8.666/93 se refere aos casos em que há formação de contrato entre a
Administração Pública e terceiros (art. 2º, “caput” da Lei nº 8.666/93).
Esclarece,
entretanto, que deve ser considerado contrato “todo e qualquer ajuste entre
órgãos ou entidades da Administração Pública e particulares, em que haja um
acordo de vontades para a formação de vínculo e a estipulação de obrigações
recíprocas, seja qual for a denominação utilizada”.
Ou
seja, o negócio jurídico bilateral (contrato público) estará caracterizado
sempre que houver ajuste e obrigações recíprocas entre a Administração Pública
e o particular, ainda que não tenham elas sido formalizadas em instrumento
escrito.
CONCESSÃO
É
pacífico o entendimento doutrinário segundo o qual concessão de uso é ato
administrativo unilateral, discricionário e precário, pelo qual a administração
autoriza a utilização privativa de bem público, atendendo ao mesmo tempo
interesse público e privado.
A
precariedade do ato é relativizada na hipótese de permissão qualificada ou
condicionada, isto é, a prazo determinado. Nessa circunstância, a permissão
assemelha-se muito à concessão, na medida que, em
ambos os casos, a rescisão prematura do negócio acarreta direito subjetivo à
indenização, titularizado pelo permissionário. Daí a
razão de se exigir licitação sempre que a permissão esboçar forma
contratual.
“É verdade que a Lei 8.666/93, no artigo 2º, inclui a permissão entre os
ajustes que, quando contratados com terceiros, serão necessariamente precedidos
de licitação. Tem-se, no entanto, que entender a norma em seus devidos termos.
Em primeiro lugar, deve-se atentar para o fato de que a Constituição Federal,
no artigo 175, parágrafo único, I, refere-se a
permissão de serviço público como contrato; talvez por isso se justifique a
norma do artigo 2º da Lei nº 8.666/93. Em segundo lugar, deve-se considerar
também que este dispositivo, ao mencionar os vários tipos de ajustes em que a
licitação é obrigatória, acrescenta a expressão quando contratados com
terceiros, o que faz supor a existência de um contrato. Além disso, a
permissão de uso, embora seja ato unilateral, portanto excluído da abrangência
do artigo 2º, às vezes assume a forma contratual, com características iguais ou
semelhantes à concessão de uso; é o que ocorre na permissão qualificada, com
prazo estabelecido. Neste caso, a licitação torna-se obrigatória. A Lei
8.666/93 parece ter em vista precisamente essa situação quando, no artigo 2º,
parágrafo único, define o contrato como “todo e qualquer ajuste entre órgãos ou
entidades da Administração Pública e particulares, em que haja acordo de
vontades para a formação de vínculo e a estipulação de obrigações recíprocas,
seja qual for a denominação utilizada”. Quer dizer: ainda que se fale em
permissão, a licitação será obrigatória se a ela for dada forma contratual
(...)” (Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito Administrativo, 23ªed., São
Paulo: Atlas, 2010, p. 697).
Celso
Antônio adota postura ainda mais rígida, exigindo procedimento licitatório para
toda permissão de uso, qualificada ou não.
“Sempre que possível, será outorgada mediante licitação, ou
no mínimo, como obediência a procedimento em que se assegure tratamento
isonômico aos administrados (como, por exemplo, outorga na conformidade de
ordem de inscrição)”.
In
casu, o art. 4º da Lei n.
3.555/04 fixa que o prazo será de 30 (trinta) anos, renováveis por iguais
períodos, prazo este estabelecido na Cláusula 2ª do Termo de Permissão de Uso,
o qual integra a lei, demonstrando o caráter contratual da permissão outorgada
pela lei. Evidente que se trata de permissão qualificada.
Dessa
forma, esclarecido sobre a imprescindibilidade da licitação, conclui-se que a lei impugnada cria exceção à regra da licitação, ao favorecer
como “concessionário” de uso privativo de bem público aquele que não se
investiu nessa qualidade a partir de processo seletivo objetivo, público e
imparcial.
Ao
permitir à Sociedade Esportiva Laranjeiras o uso de bem imóvel do patrimônio
público municipal, criando uma hipótese sui generis de
dispensa, violou-se o princípio constitucional estabelecido, por força do
qual a licitação é a regra na Administração Pública (art. 117 e 144 da
Constituição Paulista).
IV – DA VIOLAÇÃO DOS
PRINCÍPIOS DA MORALIDADE, IMPESSOALIDADE E IGUALDADE
Não bastasse isso, a
Lei n. 3.555/2004 violou princípios previstos no art. 111 da Constituição do
Estado, aplicável ao Município por força do art. 144 da mesma Carta, na medida
em que indicou o beneficiário específico do ato de permissão de uso de bem
público imóvel.
A respeito do
princípio da impessoalidade, anota Edmir Netto de Araújo que seu sentido é o da
“imparcialidade, significando que a Administração não pode agir motivada por
interesses particulares, interesses políticos, de grupos, por animosidades ou
simpatias pessoais, políticas, ideológicas, etc., implicando sempre em regra de
agir objetiva para o administrador” (Curso de direito
Administrativo, São Paulo, Saraiva, 2005, p. 56).
Ou então, como pontua
Maria Sylvia Zanella Di Pietro, “o princípio estaria relacionado com a
finalidade pública que deve nortear toda a atividade administrativa. Significa
que a Administração não pode atuar com vistas a prejudicar ou beneficiar
pessoas determinadas, uma vez que é sempre o interesse público que tem que
nortear o seu comportamento” (Direito administrativo, 19ª ed.,
São Paulo, Atlas, 2006, p. 85).
É assente no E. STF,
ser imperativo o respeito aos princípios constitucionais da Administração,
tendo ficado assentado que:
"A Administração Pública é norteada por princípios conducentes à
segurança jurídica — da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da
publicidade e da eficiência. A variação de enfoques, seja qual for a justificativa, não se coaduna com os citados princípios,
sob pena de grassar a insegurança." (MS 24.872, voto do Min. Marco
Aurélio, julgamento em 30-6-05, DJ de 30-9-05).
"Não podem a lei, o decreto, os atos regimentais ou instruções
normativas, e muito menos acordo firmado entre partes, superpor-se a preceito
constitucional, instituindo privilégios para uns em detrimento de outros, posto
que além de odiosos e iníquos, atentam contra os princípios éticos e morais que
precipuamente devem reger os atos relacionados com a administração pública. O
art. 37, XXI, da CF, de conteúdo conceptual extensível primacialmente aos
procedimentos licitatórios, insculpiu o princípio da isonomia assecuratória da
igualdade de tratamento entre todos os concorrentes, em sintonia com o seu
caput – obediência aos critérios da legalidade, impessoalidade e moralidade – e
ao de que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza." (MS 22.509, Rel. Min. Maurício Corrêa, julgamento em 26-9-1996,
Plenário, DJ de 4-12-1996.)
“Recurso extraordinário. Ação direta de inconstitucionalidade de artigos
de lei municipal. Normas que determinam prorrogação automática de permissões e
autorizações em vigor, pelos períodos que especifica. (...) Prorrogações que
efetivamente vulneram os princípios da legalidade e da moralidade, por
dispensarem certames licitatórios previamente à outorga do direito de
exploração de serviços públicos” (RE 422.591, Rel. Min. Dias Toffoli, julgamento em 1º-12-2010, Plenário, DJE de
11-3-2011.)
Não é aceitável,
pois, que determinado diploma legal estabeleça cláusula que crie favorecimento
a particular determinado, sob pena de violar os
princípios da moralidade, impessoalidade e igualdade.
Daí a
inconstitucionalidade da regra, tomando como parâmetro o art. 111 da
Constituição do Estado.
V – PEDIDO
Diante de todo o
exposto, aguarda-se o recebimento e processamento da presente ação
declaratória, para que ao final seja ela julgada procedente, reconhecendo-se a
inconstitucionalidade da Lei n. 3.555, de 3
de junho de 2004, do Município de Caieiras.
Requer-se ainda sejam
requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Senhor Prefeito Municipal de Caieiras,
bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para manifestar-se
sobre o ato normativo impugnado.
Posteriormente,
aguarda-se vista para fins de manifestação final.
São Paulo, 18 de
agosto de 2015.
Márcio
Fernando Elias Rosa
Procurador-Geral
de Justiça
iccb
Protocolado nº 53.489/15
1. Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade,
em face da Lei n. 3.555, de 3 de junho de 2004,
do Município de Caieiras, junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São
Paulo.
2. Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com
cópia da petição inicial.
São
Paulo, 18 de agosto de 2015.
Márcio
Fernando Elias Rosa
Procurador-Geral
de Justiça