EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO E. TRIBUNAL DE
JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
Protocolado nº
72.955/2015
Ementa:
1)
Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 4.561,
de 08 de abril de 2015, do Município de Guaratinguetá, de iniciativa
parlamentar, que “Dispõe sobre o controle
do desperdício de água potável distribuída pela rede pública municipal em
períodos de estiagem e secas prolongadas e dá outras providências”.
2) Encontra-se na reserva da Administração e na iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo a instituição de programas, campanhas e serviços administrativos, sendo ainda inconstitucional a lei de iniciativa parlamentar pela ausência de fonte para cobertura de novos gastos públicos (art. 25 da Constituição Estadual).
3) Violação do princípio da separação de poderes (arts. 5º; 24, § 2º, 2; 47, II, XIV e XIX; 144 e 176, I, da Constituição do Estado).
O Procurador-Geral
de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no
art. 116, inciso VI, da Lei Complementar Estadual nº 734 de 26 de novembro de
1993, e em conformidade com o disposto no art. 125, § 2º, e no art. 129, inciso
IV, da Constituição da República, e ainda no art. 74, inciso VI, e no art. 90,
inciso III, da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações
colhidas no incluso protocolado (PGJ nº 72.955/2015), que segue como anexo),
vem perante esse Egrégio Tribunal de Justiça promover a presente AÇÃO DIRETA
DE INCONSTITUCIONALIDADE em face da Lei nº 4.561, de 08 de abril de 2015,
do Município de Guaratinguetá, pelos seguintes fundamentos:
1. ATO NORMATIVO IMPUGNADO
O
protocolado que instrui esta inicial de ação direta de inconstitucionalidade
foi instaurado a partir de representação encaminhada pelo Prefeito do Município
de Guaratinguetá (fls. 02/22).
A Lei
nº 4.561, de 08 de abril de 2015, do Município de Guaratinguetá, de iniciativa
parlamentar, que “Dispõe sobre o controle
do desperdício de água potável distribuída pela rede pública municipal em
períodos de estiagem e secas prolongadas e dá outras providências”, foi promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal de Guaratinguetá,
após superado o veto do Executivo, com a seguinte redação:
“Lei nº 4.561, de 08 de abril de 2015
(...)
Art. 1° - O uso não racionalizado de água potável, em escala residencial, comercial e industrial, de modo a desperdiçá-la, será rigorosamente proibido, mediante:
I – a divulgação de informações a respeito de seus prejuízos ao público consumidor.
II – fiscalização e aplicação de multas.
Parágrafo único – Entende-se por desperdício de água potável a sua utilização de modo não racionalizado, tal como a lavagem de calçadas, ruas, veículos, rega de jardins e gramados com o emprego de mangueira e máquinas de pressão a jato.
Art. 2° - O não cumprimento desta Lei implicará em em advertência com notificação e, na reincidência, multa aos proprietários, locatários ou possuidores de imóveis residenciais, comerciais ou industriais que infringirem o disposto nesta Lei, respectivamente nos valores de:
I – vinte e cinco Unidades Fiscais do Estado de São Paulo – UFESP´s para a escala residencial;
II – cinquenta Unidades Fiscais do Estado de São Paulo – UFESP´s para a escala comercial;
III – cem Unidades Fiscais do Estado de São Paulo – UFESP´s.
Art. 3° - O Poder Executivo regulamentará esta Lei, definindo os órgãos responsáveis por sua fiscalização e os critérios para sua realização, inclusive estabelecendo o rol dos casos de uso não racionalizado da água potável a serem observados.
Art. 4° - As despesas decorrentes da execução desta Lei correrão por conta de dotações orçamentárias próprias, consignadas no orçamento e suplementadas, se necessário, devendo os orçamentos futuros destinarem recursos específicos para o seu fiel cumprimento.
Art. 5º - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.
(...)”.
A
lei é verticalmente incompatível com nosso ordenamento constitucional, como
será demonstrado a seguir.
2. FUNDAMENTAÇÃO
O
ato normativo ora impugnado apresenta vício de iniciativa, viola o princípio da
separação de poderes e a reserva da administração, bem ainda cria despesa sem
indicação da respectiva fonte de cobertura, contrariando os seguintes
dispositivos, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta
Paulista:
“(...)
Art. 5º - São Poderes do Estado,
independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
(...)
Art. 24 – A
iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou
Comissão da Assembleia Legislativa, ao Governador do Estado, ao Tribunal de
Justiça, ao Procurador-Geral de Justiça e aos cidadãos, na forma e nos casos
previstos nesta Constituição.
(...)
§ 2º -
Compete, exclusivamente, ao Governador do Estado a iniciativa das leis que
disponham sobre:
(...)
2 – criação e
extinção das Secretarias de Estado e órgãos da administração pública, observado
o disposto no artigo 47, XIX;
(...)
Art. 25 –
Nenhum projeto de lei que implique a criação ou o aumento de despesa pública
será sancionado sem que dele conste a indicação dos recursos disponíveis,
próprios para atender aos novos encargos.
(...)
Art. 47 –
Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas
nesta Constituição:
(...)
II – exercer,
com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração
estadual;
(...)
XIV – praticar
os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;
(...)
XIX - dispor,
mediante decreto, sobre:
a) organização
e funcionamento da administração estadual, quando não implicar em aumento de
despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos;
(...)
Art. 176 – São
vedados:
I – o início
de programas, projetos e atividades não incluídos na lei orçamentária anual;
(...)”.
O art. 144 da Constituição Estadual, que
determina a observância na esfera municipal, além das regras da Constituição
Estadual, dos princípios da Constituição Federal, é denominado “norma estadual
de caráter remissivo, na medida em que, para a disciplina dos limites da
autonomia municipal, remete para as disposições constantes da Constituição
Federal”, como averbou o Supremo Tribunal Federal ao credenciar o controle
concentrado de constitucionalidade de lei municipal por esse ângulo (STF, Rcl
10.406-GO, Rel. Min. Gilmar Mendes, 31-08-2010, DJe 06-09-2010; STF, Rcl 10.500-SP,
Rel. Min. Celso de Mello, 18-10-2010, DJe 26-10-2010).
A
matéria disciplinada pela lei impugnada encontra-se no âmbito da atividade
administrativa do Município, cuja organização, funcionamento e direção superior
cabem ao Prefeito Municipal, com auxílio dos Secretários Municipais.
A instituição de verdadeiro programa municipal, objetivando regulamentar o uso racionalizado de água potável, a partir da obrigatoriedade do Poder Executivo em promover campanhas informativas e cuidar da fiscalização e punição dos infratores, ainda que louvável seja, acaba tendo reflexos na organização do serviço público e consiste em matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do Chefe do Executivo.
A determinação de novas atribuições aos órgãos públicos
municipais, no que diz respeito aos serviços públicos correlatos, trata-se de atividade nitidamente administrativa, representativa
de atos de gestão, de escolha política para a satisfação das necessidades
coletivas, vinculadas aos direitos fundamentais. Assim, privativa do Poder
Executivo e inserida na esfera do poder
discricionário da administração.
Não se trata, evidentemente, de
atividade sujeita à disciplina legislativa. Logo, o Poder Legislativo não pode,
através de lei, ocupar-se da administração, sob pena de se permitir que o
legislador acabe invadindo área privativa do Poder Executivo.
Quando o Poder Legislativo do Município edita lei disciplinando atuação administrativa, como ocorre, no caso em exame, em função de criar programa relacionado ao uso de água potável, impondo obrigações ao Poder Executivo Municipal, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do administrador público, violando o princípio da separação de poderes.
Cabe essencialmente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito da conveniência e da oportunidade da criação de políticas públicas municipais. Trata-se de atuação administrativa que é fundada em escolha política de gestão, na qual é vedada intromissão de qualquer outro poder.
A
inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da separação de
poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (arts.
5º, 47, II, XIV e XIX, a e 144).
É
pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente
a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização,
direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outro lado, ao
Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja,
atos normativos revestidos de generalidade e abstração.
Cumpre
recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a
Câmara não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo
pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a
harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º)
extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara,
realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”.
Sintetiza,
ademais, que “todo ato do Prefeito que
infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que
invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por
ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF,
art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed.,
atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo,
Malheiros, 2006, p. 708 e 712).
Deste
modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando
leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a
harmonia e independência que devem existir entre os poderes estatais.
A
matéria tratada na lei encontra-se na órbita da chamada reserva da administração, que reúne as competências próprias de
administração e gestão, imunes à interferência de outro poder (art. 47, II e IX
da Constituição Estadual - aplicável na órbita municipal por obra de seu art.
144), pois privativas do Chefe do Poder Executivo.
Ainda
que se imagine que houvesse necessidade de disciplinar por lei alguma matéria
típica de gestão municipal, a iniciativa seria privativa do Chefe do Poder
Executivo, mesmo quando ele não possa discipliná-la por decreto nos termos do
art. 47, XIX, da Constituição Estadual.
Assim,
a Lei, ao regulamentar ainda que parcialmente um serviço público, de um lado,
viola o art. 47, II e XIV, no estabelecimento de regras que respeitam à direção
da administração, à organização e ao funcionamento do Poder Executivo, matéria
essa que é da alçada da reserva da Administração, e de outro, ela ofende o art.
24, § 2º, 2, na medida em que impõe atribuição ao Poder Executivo.
Criar programas e disciplinar serviços públicos –
precisamente o que se verifica na hipótese em exame – é matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do
Chefe do Executivo.
Ademais, para o efetivo cumprimento da lei impugnada, são necessárias diversas providências a cargo do Poder Executivo, tais como a elaboração de material destinado a eventos informativos (inciso I, art. 1º), a organização da administração para que proceda à fiscalização e aplicação de multas (II, art. 1º e art. 2º), a regulamentação no prazo de 90 dias contados da publicação da lei (art. 3º), entre outros.
Por tais razões, a matéria de que cuida o ato normativo impugnado é de atribuição privativa do Poder Executivo.
De outro lado, e não menos importante, a lei impugnada cria, evidentemente, novas despesas por parte da Municipalidade, sem que tenha havido a indicação das fontes específicas de receita para tanto e a inclusão do programa na lei orçamentária anual.
A norma combatida, ao impor ao Município referidos encargos, relacionados à divulgação de informações e à fiscalização e aplicação de multas, não indicou especificamente os recursos orçamentários necessários para a cobertura dos gastos advindos, que, no caso, são evidentes porquanto ordenam atividades novas na Administração Pública, cujo desenvolvimento demanda meios financeiros que não foram previstos.
Isso implica contrariedade ao disposto no art. 25 e 176, I, da Constituição do Estado de São Paulo.
A
inconstitucionalidade transparece exatamente pelo divórcio da iniciativa
parlamentar da lei local com os preceitos mencionados da Constituição Estadual.
3. DOS PEDIDOS
a. Do pedido liminar
Estão presentes os pressupostos para a concessão da liminar, determinando-se a suspensão da Lei nº 4.561, de 08 de abril de 2015, do Município de Guaratinguetá.
A razoável fundamentação jurídica evidencia-se pelos motivos que lastreiam a propositura desta ação direta.
Quanto ao perigo da demora, evidencia-se pelo fato de que, a prevalecer, por ora, a presunção de constitucionalidade das normas glosadas nesta ação direta, atos materiais serão realizados no sentido de concretização de suas previsões normativas, gerando situações cuja reversão ao status quo ante, futuramente, será de considerável grau de dificuldade.
As situações consolidadas, muitas vezes, criam espaço para argumentação no sentido da improcedência da ação, ou mesmo afastamento de seus efeitos concretos, desprestigiando, em última análise, o próprio sistema de controle concentrado de constitucionalidade, bem como esvaziando a autoridade da Corte Constitucional, seja no plano federal, como no estadual.
De resto, ainda que não houvesse essa singular situação de risco, restaria, ao menos, a excepcional conveniência da medida.
Com efeito, no contexto das ações diretas e da outorga de provimentos cautelares para defesa da Constituição, o juízo de conveniência é um critério relevante, que vem condicionando os pronunciamentos mais recentes do Supremo Tribunal Federal, preordenados à suspensão liminar de leis aparentemente inconstitucionais (cf. ADIN-MC 125, j. 15.2.90, DJU de 4.5.90, p. 3.693, rel. Min. Celso de Mello; ADIN-MC 568, RTJ 138/64; ADIN-MC 493, RTJ 142/52; ADIN-MC 540, DJU de 25.9.92, p. 16.182).
Requer-se, destarte, a concessão da liminar,
determinando-se a suspensão da Lei nº 4.561, de 08 de abril
de 2015, do Município de Guaratinguetá.
b. Do Pedido Principal
Diante de
todo o exposto, aguarda-se o recebimento e processamento da presente ação
declaratória, para que ao final seja ela julgada procedente, reconhecendo-se a
inconstitucionalidade da Lei nº 4.561, de 08 de abril de 2015, do Município de
Guaratinguetá.
Requer-se
ainda que sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Senhor
Prefeito Municipal de Guaratinguetá, bem como posteriormente citado o
Procurador-Geral do Estado para manifestar-se sobre o ato normativo impugnado.
Posteriormente,
aguarda-se vista para fins de manifestação final.
Termos em
que,
Aguarda-se
deferimento.
São Paulo, 24 de novembro de 2015.
Márcio Fernando Elias Rosa
Procurador-Geral de Justiça
aca/mjap
Protocolado nº
72.955/2015
Assunto: apurar inconstitucionalidade da Lei n. 4.561, de 08 de abril de 2015, do Município de Guaratinguetá
1. Distribua-se a inicial da ação direta de inconstitucionalidade.
2. Comunique-se a propositura da ação ao interessado.
3. Cumpra-se.
São Paulo, 24 de novembro de 2015.
Márcio Fernando Elias Rosa
Procurador-Geral de Justiça